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Meu objetivo no segundo dia de andanças era visitar a própria cidade de Porto União/SC, bem como a Ferrovia do Contestado entre Porto União/SC e Calmon/SC, com especial atenção ao trecho entre PU e Matos Costa.
Porto União/SC e União da Vitória/PR são "cidades gêmeas", divididas artificialmente pelo acordo de limites entre SC e PR, que adotou a ferrovia como parte da fronteira justamente no trecho que cortava a cidade original de Porto União da Vitória.
Na ausência de um obstáculo natural como um rio, as duas são muito mais conurbadas que outras gêmeas como Mafra/SC+Rio Negro/PR, ou Juazeiro/BA+Petrolina/PE.
Porto União é uma cidade muito bonita. O jejum de cidades bonitas do dia anterior tinha me deixado levemente apreensivo, mas não fui decepcionado.
Em geral, toda cidade bonita de Santa Catarina tem influência germânica. Pode ser bias, mas até minha esposa (nordestina) aprendeu a soltar frases chauvinistas do tipo "que lugar feio! Aqui deve ter pouco alemão", ao passarmos por lugarejos menos vistosos.
Pois bem, Porto União é uma boa exceção à regra. Eu não entendo nada disso, mas posso ver que a arquitetura local tem múltiplas influências, além de numerosos exemplares de art deco, raríssimos em outras paragens de SC. Meu amigo Raul Herbster ia gostar :)
A própria estação ferroviária de União, construída exatamente sobre a divisa entre as duas cidades, é um belo exemplar de arquitetura art deco. Construída em 1940, não é um prédio incrivelmente antigo, mas isto não tira nadinha do seu valor.
Devido à importância passada da ferrovia e do rio Iguaçu, as coisas mais interessantes da cidade estão bem próximas à estação e/ou às margens do rio, numa área total de uns 15 quarteirões. A dica é hospedar-se num hotel central e percorrer a área à pé.
Há passeios de maria-fumaça sobre um curto trecho da Ferrovia do Contestado. Então um programa ainda mais interessante é visitar a cidade por ocasião de um destes passeios. UPDATE: os passeios foram suspensos no início da década de 2010 e até agora não foram retomados. Existe o projeto do "Trem das Etnias" que está em gestação desde o início dos anos 2020.
É fácil dirigir dentro de Porto União/União da Vitória, porque a maioria das ruas ainda é de mão dupla, o tráfego é leve, e os motoristas são muito corteses. Coisa rara hoje em dia, e digna de nota.
Porto União tem um morro alto no meio da cidade, onde há inúmeras antenas. Chama-se Morro da Cruz porque lá está a cruz que o monge João Maria mandou fincar. Profetizou ele que, quando a cruz caísse, o rio inundaria tudo. Por coincidência ou conhecimento real, em 1983 choveu a ponto da terra amolecer, e a cruz tombou. Sobreveio a enchente que inundou SC inteira na época.
Na Figura 10 pode-se ver a língua de terra delimitada pela curva do rio Iguaçu. Ali está o "centrão" da cidade que mencionei antes.
Parece uma estupidez sem tamanho criar uma cidade na beira de um rio que enche. Porto União da Vitória foi fundada ali porque é um trecho particularmente raso do rio Iguaçu, que era usado para atravessar gado.
Hora de parar de fazer turismo "baunilha", e ir atrás da ferrovia.
Saindo do centro de Porto União, os bairros e distritos não são lá muito bonitos, mas o distrito de São Miguel da Serra, às margens da rodovia SC-302, é um ponto fora da curva. Não sei exatamente por quê, mas agradei-me imediatamente do lugar.
Apesar de ser um povoado minúsculo, tem até agência bancária. (Para colocar isto na devida perspectiva: Porto União não tem shopping.) Não sei qual é o "molho secreto" deste lugar. Seria perfeito se a rodovia estadual SC-135, único acesso asfaltado ao distrito, estivesse em boas condições.
Choveu muito durante a noite, e a chuva ameaçou estragar meu segundo dia de peregrinação. Assim, procurei visitar o que era acessível por asfalto, para depois avaliar o que fazer. Quem sabe a chuva desse uma trégua...
Assim, fui até Matos Costa/SC e Calmon/SC, cidades que se formaram em torno da estação ferroviária. A foto na Figura 12 é um anacronismo porque foi tirada dois anos depois da escrita deste texto, e num dia de sol. Porém, faz bem mais justiça à estação de Matos Costa.
Visitar toda a Ferrovia do Contestado, até a fronteira com o Rio Grande do Sul, tomaria vários dias. Assim, procurei me concentrar no primeiro trecho, mais montanhoso e mais interessante sob diversos aspectos.
Calmon carrega o simbolismo de ser um "ordálio do Contestado", pois foi completamente destruída pelos caboclos durante o conflito.
Calmon também tinha abrigado uma serraria da Lumber, e a estação também foi convertida em museu. Mas, novamente, o museu estava fechado, e a chuva prejudicou um pouco as fotos.
Tanto Matos Costa quanto Calmon são cidades muito pequenas e sem muitos atrativos na área urbana. As respectivas áreas rurais parecem ser mais "turistáveis", com muitas cachoeiras etc. Meu celular Vivo ficou sem sinal em ambas as cidades. Descobri a posteriori que a TIM tem cobertura.
Por estarem a 1200m de altura, sobre a Serra Geral, estas cidades têm uma vantagem sutil: a temperatura. Havia uma terrível onda de calor em SC por aqueles dias, coisa de 36 graus em Joinville, enquanto isso fazia 18 graus em Calmon :)
Toda esta região é completamente arada e reflorestada. A madeira ainda é um dos pilares da economia local.
O trecho crítico da Ferrovia do Contestado é entre Porto União e Matos Costa, devido ao desnível a ser vencido (de 750m para 1200m) em apenas 30km. O leito original tinha declividade de até 3,7% e bastante variável.
Mas este trecho foi completamente retificado nos anos 1940. O novo leito é conhecido como "variante de São João" e apresenta declividade constante de 1,3%.
O leito original foi convertido em estrada de rodagem, de terra. Isto facilita o passeio pela região, e de certa forma permite visitar duas ferrovias ao mesmo tempo: a velha e a nova. O fetiche de percorrer o leito original da famigerada ferrovia e tal.
Quando voltei de Calmon para Matos Costa, a chuva parou. Sinal verde para voltar a Porto União pelo caminho velho.
Não é difícil perceber que a estrada foi ferrovia um dia. As curvas são "redondinhas", os cortes são estreitos, e a inclinação é sempre pouca e constante (3,7% é ruim para um trem, mas é quase nada para um automóvel.) Filmei uns trechos e compus o video abaixo:
Também é interessante notar que a estrada, apesar de não pavimentada, é muito bem consolidada. Estava perfeita mesmo com toda a chuva da noite anterior. Em parte por ter sido ferrovia, portanto há um século de saibro em cima. Ou talvez porque o terreno da região é realmente mais pedregoso.
As estações originais, como se poderia esperar, desapareceram completamente. As estações da variante ainda "existem", embora quase todas em estado deplorável. As casas de ferroviários, onde estão de pé, estão ocupadas por posseiros.
A propósito, eu deveria explicar porque a inclinação de uma ferrovia tem de ser tão baixa. O problema básico é que as rodas de ferro de uma locomotiva patinam muito fácil. Isto limita o empuxo (força de tração) a 20% do peso da locomotiva, grosso modo.
Por exemplo, uma máquina de 100 toneladas pode gerar um empuxo de 20 toneladas. Já um automóvel ou caminhão, por ter rodas de borracha, consegue puxar 90% do seu peso no asfalto.
Numa rampa de 5%, esta locomotiva poderia rebocar, em teoria, 400t (20 / 0.05). Mas a própria locomotiva pesa 100t, então sobra apenas 300t para os vagões. Um quarto do esforço é perdido. Mudar o peso da locomotiva muda os valores absolutos, mas não muda as proporções.
Esta mesma locomotiva, numa rampa de 2%, reboca 1000t brutos (20 / 0.02), ou 900t líquidos. Apenas 10% do esforço é perdido, e o gasto de combustível por tonelada líquida (que paga frete) é 17% menor.
A variante margeia a linha original em alguns trechos, mas em outros pontos a linha moveu-se alguns quilômetros para leste. Naturalmente, as estações também mudaram de lugar. Isto criou um problema social semelhante à extinção do serviço de passageiros. As colônias originais ficaram meio isoladas, e o resultado foi o progressivo despovoamento.
Como é de se esperar, o cemitério de Nova Galícia permaneceu onde estava.
O distrito de Nova Galícia foi colonizado basicamente por ucranianos, o que reflete na arquitetura da igreja da Figura 19. A colônia, inicialmente pujante, com 700 almas, chegou a ser visitada pelo presidente estadunidente Theodore Roosevelt, amigo de Farquhar. Hoje em dia, mora ali um punhadinho de gente.
A igreja da antiga Achiles Stenghel também permaneceu no local "velho" e também tem aquele estilo "russo" na cúpula:
A região de Stenghel Velho parece ter uma boa concentração de casas de campo e chácaras bem-cuidadas.
Próximo à região da Galícia, temos a região conhecida hoje por "Quilômetro 13". Não é uma estação, mas sim um local que concentra notáveis obras de arte e paisagens, como a Cachoeira do km 13 que infelizmente só visitei noutra oportunidade. Nessa região eu consegui me perder, porque o mapa do IBGE não tinha muitos detalhes e justo ali o GPS do celular resolveu me deixar na mão. No dia anterior eu usei bússola para fiscalizar a direção genérica, mas no segundo dia tinha esquecido a dita no hotel :(
Em determinado momento vi um galho atravessado na rua. Normalmente isto é sinal de "estrada bloqueada", mas segui em frente. Passei por um riacho bastante cheio devido à chuva. A estrada sobe, desce. Mais um galho atravessado, este bem mais grosso, praticamente uma mensagem gritada :)
E então esta ponte:
Pelo nível dos riachos, aquele trecho da estrada estava prestes a ficar ilhado; imagino que os galhos estavam a sinalizar este problema. Eu podia ter ficado preso ali, com uma garrafa de água e um chocolate diet.
Torci para a estrada ter saída e não precisar voltar. Acabei saindo num lugar bastante familiar: perto da igreja ucraniana — por onde eu já tinha passado quase 2h antes. Cumprindo a sina de todo aquele que se perde, eu tinha feito uma volta redonda.
Aliás, a ponte foi reformada em 2015 e não represa mais a água:
O problema do GPS do celular eram na verdade dois: precisei desligar/religar, e cada mudança de orientação da tela faz o GPS Test Plus recomeçar a busca por satélites. Travar a orientação da tela resolveu. Ainda tenho de reportar o bug.
Daí por diante, foi mais tranquilo achar o caminho, e logo cheguei na zona urbana de Porto União (ou União da Vitória?). Para manter o padrão, a descida final da antiga ferrovia virou a rua das casas mais pobres da cidade.
Saindo de Porto União, a ferrovia "nova" passa muito mais ao leste, e algumas estações são mais facilmente encontráveis vindo da rodovia SC-302, como a de Achiles Stenghel:
Também é possível chegar na famosa cachoeira do "km 13" por ali, e percorrendo este caminho consegui descobrir como e onde eu tinha me perdido.
Achiles Stenghel apresenta um viaduto logo antes da estação. Não é ponte (a estrada passa a poucos metros, encostada no morro). É o tipo de obra que se faz necessária quando se quer uma ferrovia de mais qualidade técnica.
A estação mais próxima de Porto União é a Eugênio de Melo. Ela está mais bem conservada e foi transformada em ponto turístico, quase um parque linear, muito frequentada pelos locais nos fins-de-semana.
Havia uma estação homônima na linha velha, bastante distante da foto da Figura 29 mas o local é conhecido por "Legru". Segundo este site a própria geografia do local mudou na enxurrada de 1983. Eu mesmo já passei por ali três vezes e não consegui reconhecer o local da antiga estação. Apenas as curvas da estrada, redondinhas e bem visíveis no Google Maps, "entregam" que ali já passou uma ferrovia.
Há dois túneis relativamente próximos da estação Eugênio de Melo, andando pelo trilho. (O leito original não tinha nenhum túnel neste trecho; a variante tem seis deles.) O túnel 1 é bem pertinho, o túnel 2 já implica numa caminhada saudável. Se quiser andar bem mais, também dá para chegar ao famoso "km 13" por ali.
A paisagem do entorno é muito bonita. A linha, que neste trecho está em reforma para a implantação do turístico Trem das Etnias (tomara que saia mesmo!), parece limpa e bem cuidada.
O gabarito dos túneis, o gradiente suave e as curvas de grande raio mostram que essa variante tem qualidade técnica até melhor que ferrovias em operação (como o Rio Natal da linha São Francisco). O que só aumenta nossa tristeza pelo abandono da Ferrovia do Contestado.
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