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Inteligência artificial vs. o programador de computador

Os arautos do apocalipse dizem que a IA vai acabar com as profissões de colarinho branco, inclusive com o "dev", o desenvolvedor de software, que eu ainda chamo de "programador de computador" porque sou velho.

Ainda estou meio cético, porque ouço esse tipo de ameaça desde que comecei nesta profissión. Sou do tempo que diziam até que o futuro era trabalhar com hardware, não com desenvolvimento de software, que viraria trabalho de secretária tal qual datilografia.

4GL, LISP, PROLOG, CASE, SQL, desenvolvimento visual, UML, Excel, MS-Access, no-code, low-code. Todas essas tecnologias já foram alardeadas como exterminadores da carreira de programador. E o que realmente aconteceu foi que a carreira só fez aumentar em importância e prestígio.

O que não quer dizer que essas tecnologias sejam inúteis. Muitas foram largamente utilizadas, algumas continuam conosco até hoje. Algumas inclusive foram reabilitadas aos olhos dos programadores, como SQL e Excel.

Sob esse ponto de vista, IA (tecnicamente, deep learning, não é realmente inteligência no sentido estrito da palavra) é mais uma ferramenta, e muito útil por sinal. Eu mesmo, que não sei muito a respeito, estou usando para aproveitar melhor as câmeras de vigilância. Existe uma classe de problemas que a IA resolve, ou resolve melhor, ou resolve parcialmente, que não é possível tratar com algoritmos tradicionais.

Vejo o ChatGPT e o Gemini como ferramentas melhoradas de busca, inclusive muito mais acessíveis, pois entregam a resposta mais ou menos mastigada, não uma árida lista de sites. (Menção honrosa ao Gemini que cita os links de onde ele tirou as respostas que gera. Uma e outra ele inclusive linka para este site aqui!) Não sou fã de Alexa, Siri e ferramentas ativadas por voz em geral, mas não se pode negar que elas fazem maravilhas pela acessibilidade.

E sempre existe o consolo de que as profissões morrem e depois ressuscitam. Sapateiros, seleiros, ferreiros, cuteleiros foram quase extintos, mas hoje em dia os que ainda existem são extremamente requisitados. Quem sabe em 2060 escrever um programa à mão seja algo fashion, assim como tinha gente pagando US$ 40 para apontar um lápis? De repente, aos 90 anos, vão me pagar para escrever um Hello World em BASIC, de cabeça, sem consultar o ChatGPT, para assombro dos jovens de então.

As pessoas têm medo de perder o emprego pela mão da IA. Mas os problemas reais e prementes da sociedade vão na direção oposta: baixa natalidade; pouca gente qualificada e disposta a trabalhar, seja qual for a profissão. Um emburrecimento geral tão grande, que talvez o problema seja a IA não avançar rápido o suficiente para cobrir o déficit.

O que me incomoda

Por ora, o que me incomoda mesmo é essa tendência de achar que tudo se resolve com IA, que IA é a primeira resposta para todo e qualquer problema computacional.

Isso não mata a profissão, mas a torna mais chata, e quiçá mais inacessível.

Torna mais chata porque ninguém mais quer criar ou pesquisar algoritmos. Executar algoritmos é o que um computador sabe fazer de melhor, trabalhando rápido e gastando pouquíssima energia.

Acredito que ainda não chegamos "lá" em termos de linguagens de programação e engenharia de software. Mas esse tipo de discussão está agora em terceiro plano.

Um exemplinho das câmeras de vigilância: estou pesquisando como detectar neblina, para pré-filtrar a filmagem e excluir falsos positivos. Uma pesquisa rápida sobre o assunto só traz artigos sobre como fazer isso usando IA. Que é justamente o que eu quero evitar — rodar o YOLO sobre 100% da filmagem "resolveria" meu problema, mas não quero comprar um computador com 4 GPUs só para isso. Fora o custo recorrente de 300kWh ou 400kWh a mais na conta de luz.

IA torna a computação mais inacessível porque é um jogo de força bruta. Qualquer brincadeirinha em IA implica em possuir um punhado de GPUs da nVidia, que são caríssimas, exigem computadores grandes para funcionar, e gastam muita energia. "Ah mas tem a nuvem"... Cada instância vai custar vários dólares por hora.

Fora o fato desse mercado aquecido encarecer as GPUs para quem quer simplesmente jogar Rocket League. Quando eu achei que isso ia melhorar devido ao esfriamento do mercado de criptomoedas... (De um ponto de vista algorítmico, eu acho as criptomoedas mais interessantes que IA, porém não acredito nelas de um ponto de vista econômico-financeiro, não sou um "hodler", enquanto IA tem inegáveis e numerosas utilidades reais e imediatas.)

Pode até ser que isto seja uma progressão natural da indústria conforme ela amadurece, onde o progresso tecnológico fica cada vez menos espontâneo, cada vez menos a cargo de "inventores de garagem", e mais concentrado nos grandes jogadores com bolsos forrados. Talvez estejamos próximos do esgotamento do que se pode fazer com algoritmos, e daqui para frente vai ser tudo machine learning mesmo...

Acontece com todas, né? Os irmãos Wright usaram peças de bicicleta no primeiro avião. Depois, houve uma fase onde pagava-se 20% menos aos empregados da indústria de aviação que em similares, simplesmente porque tanta gente desejava trabalhar ali por gosto. Hoje em dia, para entrar numa Embraer da vida, tem de ser formado no ITA, ao mesmo tempo que as aeronaves são essencialmente as mesmas desde os anos 1970. Muito requisito e pouquíssima inovação.

Por ora, trabalhar numa FAANG é uma opção, mas pode tornar-se o único caminho para permanecer na profissão de programador, ou mesmo para iniciar nela. Isso acaba com o folclore rags-to-riches da guilda, da chance real de fazer um app besta usando um computador achado no lixo e ficar milionário. Ou da possibilidade de subir na vida sem ter tido uma formação universitária de elite, ou mesmo nenhuma formação universitária.