Também obrigou todos, pequenos e grandes, ricos e pobres, livres e escravos, a receberem certa marca na mão direita ou na testa para que ninguém pudesse comprar nem vender, a não ser quem tivesse a marca, que é o nome da besta ou o número do seu nome. (Apocalipse 13:16–17)
"Hodler" é o "holder de Bitcoin", ou seja, alguém que comprou Bitcoin e jurou nunca mais vender, na esperança que aconteça um cenário semelhante ao desenhado pelos supracitados versos da Bíblia. O Bitcoin tornar-se-ia a única moeda global, cada bitcoin valeria bilhões ou trilhões, e quem comprou um quando ele valia apenas algumas dezenas de milhares de dólares, seria então um zilionário.
A expressão certamente começou com um erro de digitação que viralizou, e a premissa em si também está totalmente errada, na minha opinião.
Vamos supor um cenário análogo. Mas antes, um pouco de cultura inútil. Durante toda a história da humanidade, foram minerados ou descobertos apenas 100 mil toneladas de ouro. Esse número inclui a possança de minas de ouro conhecidas. 80% desse ouro tem localização conhecida e pode ser mobilizado, se necessário.
Os wankers da economia austríaca vivem pregando a volta ao padrão-ouro. Suponha por um momento que isso aconteça mesmo. Aí, na vigência do padrão-ouro, um extraterrestre deixa um enorme cubo de ouro no meu quintal, medindo 2,63 metros de lado, pesando 351 toneladas, valendo quase US$ 22 bilhões na cotação de hoje. Dinheiro suficiente para comprar os bens de capital de um município inteiro.
(Macacos me mordam se eu contar por que escolhi esse tamanho particular para meu cubo de ouro...)
Note que 351 toneladas é apenas 0,3% do total de ouro descoberto no mundo. Minha entrada no mercado causaria inflação, sim, mas de apenas 0,3%. Certo? Certo?
O que você acha que aconteceria? Você acha que as pessoas realmente me entregariam US$ 22 bilhões de capital da economia real em troca de um simples cubo de ouro, que caiu no meu quintal, tornando-me um multibilionário, dono virtual de uma cidade inteira, sem que eu tenha movido uma palha?
É muito mais provável é que entre em ação algum mecanismo coercitivo, desde confisco do governo até alguém formar uma quadrilha do tamanho de um batalhão para me roubar.
Mas também pode acontecer das pessoas simplesmente recusarem-se a me vender bens de capital, deixando de reconhecer o ouro como moeda ou lastro de moeda. Elas vão raciocinar da seguinte forma: amanhã ou depois, outro cubo de ouro pode aparecer no quintal de outra pessoa. Se isso acontecer muitas vezes, estaremos usando ouro para fabricar talheres, e quem trocou capitais reais por ouro, não terá o que comer com esses talheres.
O que leva à outra pergunta, mais intrigante: por que eu trocaria meu precioso cubo de ouro por bens de capital? Simplesmente porque eu não posso comer ouro, nem beber ouro. Poderia fabricar algumas coisas com ele — seria ótimo ampliar minha coleção de canetas-tinteiro, e mesmo para isto teria de recrutar ajuda, pois não sou ourives.
Mesmo numa economia que use o padrão-ouro, o ouro representa capital, ele não é capital. Essa representatividade depende do fato do ouro ser a) útil (valor intrínseco), b) escasso (reserva de valor) e c) de posse bem pulverizada (meio de pagamento). A posse pulverizada é importante justamente para garantir que o "cenário do extraterrestre" seja improvável. Essas três características se mantém mais ou menos estáveis desde o alvorecer da humanidade, por isso o ouro continua valorizado. Note que essas características também representam as qualidades do esforço humano.
"Ah mas no padrão-ouro os bancos e o governo possuíam cofres cheios de ouro." Verdade, mas eram instituições, não pessoas. Essas instituições sabiam que, no dia e hora em que começassem a circularizar o ouro, quiçá para assenhorear-se de grandes pedaços da economia real, o sistema desabaria.
Então, é muita ingenuidade achar que possuir 1 bitcoin hoje me dará acesso a um vigésimo milionésimo da riqueza global amanhã.
É claro, muitos garimpeiros enriqueceram com o ouro de aluvião da Serra Pelada, assim como existem alguns "milionários do Bitcoin" por aí, que compraram a US$ 2 e venderam a US$ 100, 1000 ou 10000. O sistema econômico admite pequenos "vazamentos", onde um e outro sortudo enriquece a troco de nada. Mas não conte com isso.
Suponha ainda um cenário análogo com o dos extraterrestres, porém perfeitamente factível sem o concurso do sobrenatural: o mundo converte-se ao bitcoin, e um tempo depois os herdeiros do Satoshi Nakamoto começam a mover seus 2 ou 3 milhões de bitcoins minerados no início do blockchain, comprando tudo que vêem pela frente.
Você acha mesmo que a humanidade entregaria assim de bandeja 10% ou 14% de toda a economia na mão deles? Eu acho que não. Aliás, é de conhecimento público que se apenas um satoshi desse bloco for movido, a cotação do Bitcoin vai cair como uma pedra. E mesmo que não caísse, a utilidade do sistema Bitcoin como moeda de troca mundial simplesmente não vale 10% da economia mundial; seria muitíssimo mais barato comutar para outra moeda.
O hodler acha que só a mãe dele pariu malandro. Ele compra bitcoin e não vende, mas espera que todo o resto da humanidade use o bitcoin para transações na economia real, a fim de construir seu valor. O que acontece na prática é que, suspeito eu, quase toda transação Bitcoin é entre hodlers.
Não vou negar, me arrependo de não ter comprado bitcoin a US$ 2 e vender a US$ 1000, ou 10000.
O irônico é que eu tomei conhecimento da tecnologia na época em que ele chegou a US$ 100 e voltou a US$ 3, e na época considerei que era uma tecnologia interessantíssima, com muito potencial. O único material disponível era o próprio paper seminal do Satoshi Nakamoto, que me chamou a atenção por ser de uma clareza e um didatismo pouco comuns num artigo científico. Cheguei a rodar um "full node" e um minerador num computador, por semanas ou meses. Nunca logrei minerar um bitcoin, mas podia ter acontecido, na época ainda era comum fazer isso em CPUs, o pessoal estava começando a usar GPUs para isso. ASICs apareceram 1 ou 2 anos depois.
Reconheço que faltou um pouco de fé e um pouco de arrojo, de não ter medo de arriscar umas poucas centenas de reais que fosse. Por mais que houvesse dúvidas a respeito do valor real do bitcoin, às vezes ser pioneiro combinado com a "Teoria do Idiota Maior" gera proventos. O colega de trabalho que me apresentou ao Bitcoin simplesmente saiu do radar uns anos depois, foi morar na Suíça, ostensivamente como engenheiro de uma FAANG, mas suspeito que ele é um "milionário do Bitcoin".
É claro, ser pioneiro tem seu preço. Muita gente perdeu os bitcoins que tinha porque os primeiros "wallets" tinham vulnerabilidades criptográficas, ou não imaginou que chaves privadas baseadas em frases-senhas fáceis de adivinhar seriam imediatamente pilhadas por robôs que varrem continuamente o blockchain. Fora os sucessivos escândalos envolvendo exchanges. Então, essa linha paralela do tempo em que eu comprei US$ 2 e vendi a US$ 10.000 parece saborosa, mas tem inúmeros modos de falha.
Comecei a perder a fé quando os mineradores ganharam a chamada "batalha do tamanho do blockchain", privilegiando o ganho de mineração, e turbinando o ganho com as taxas de transação, em detrimento da utilidade do Bitcoin para transações de pequeno valor. Vieram com aquela racionalização que o Bitcoin não era mais moeda digital, era agora o ouro digital. Nunca comprei essa ideia.
Como disse antes, para um objeto qualquer funcionar como meio de troca, ele tem de ser a) útil, b) escasso e c) de posse pulverizada. O Bitcoin de fato garante a escassez, com o limite de 21 milhões de unidades, e muitos hodlers acham que isto é tudo quanto basta, mas não basta. A questão da posse pulverizada é mais complicada, porque existe o bloco de bitcoins do Satoshi Nakamoto, que pesa como uma espada de Dâmocles; mas como nenhum nunca foi mexido, existe a crença generalizada que esse bloco foi perdido para sempre, de propósito ou mesmo por acidente.
Resta a questão da utilidade. Bitcoin não tem valor intrínseco, ponto. Ouro tem valor intrínseco; se o ouro ficasse 50% mais barato, inúmeros objetos que hoje não são fabricados em ouro, devido ao seu preço, passariam a ser. Existem inúmeras aplicações em que o ouro é insubstituível. Cigarros, muito usados como moeda em prisões, têm valor intrínseco porque podem ser fumados. Que diabo, até o Bitchcoin ou Bitchocoin tem valor intrínseco, pelo menos para quem aprecia mariposas :)
Para o Bitcoin ter valor intrínseco, ele tem de criar sua própria utilidade. E, na minha opinião, essa utilidade viria de um grande volume de transações de pequeno valor, justamente o que os mineradores vetaram. Fazendo-se mais prático que dinheiro e cartão, para que o grande público utilizasse Bitcoin para comprar pizza e cerveja, até que o hábito virasse uma segunda natureza.
Porque no fundo todo mundo sabe que Bitcoin não vale nada; sabe o valor dele pode ir a zero amanhã mesmo. Mas se ele for tão mais conveniente que dinheiro ou cartão, as pessoas aceitariam correr o risco de manter o "dinheiro de pinga" na carteira Bitcoin, em troca da comodidade.
Aí sim, depois de anos ou décadas funcionando como um meio de pagamento, sua utilidade não poderia mais ser destruída, e sua posse estaria bem pulverizada. Ao longo desse processo, o valor unitário do Bitcoin poderia subir paulatinamente, a ponto de realizar o sonho de um e outro "hodler".
Mas não vejo isso acontecendo num mundo com Pix e Apple Pay. A janela de oportunidade foi perdida. Pode aparecer outra utilidade matadora para o blockchain? Pode, mas é difícil. O tempo que uns informatas perderam com blockchain, outros gastaram melhor estudando inteligência artificial, e esses últimos é que estouraram a boa. A Microsoft comprou participação no ChatGPT por US$ 10 bi, valor que rivaliza com a cotação daquele meu cubo de ouro (que os extraterrestres ainda não se dignaram a me entregar).
Fala-se muito que alguns mercados ilegais são viáveis apenas por causa do Bitcoin. Isto eu concedo — podem ser nichos de utilidade que mantêm o Bitcoin relevante. Além dos exemplos óbvios (países com hiperinflação, compra e venda de drogas recreativas que libertários como eu acham deveria ser livre) há uma preocupante tendência no mundo ocidental de praticar a chamada "censura financeira". Mas estes são motivos para transacionar Bitcoin, e para justificar sua cotação diferente de zero; não para estivá-lo.