Já teci alguns comentários sobre o fio-terra, fonte de prazer e dor. A dor é principalmente no bolso, porque implementar um aterramento 100% dentro da norma NBR 5410 custa caro, exige uma infraestrutura que quase ninguém prevê durante a construção, e não traz nenhum benefício óbvio e de curto prazo.
Quem sabe esclarecendo o porquê de ele existir, e como ele funciona, as pessoas comecem a dar ao aterramento o valor que ele merece?
Quando uma fonte de energia tem um pólo conectado a um aterramento (geralmente o negativo ou o neutro), ela é "referenciada à terra". Isto significa que haverá tensão entre o pólo positivo/fase e a terra. Este pólo dará choque, e se ele encostar na terra, circulará corrente, que pode ser até de curto-circuito.
Uma fonte não referenciada à terra não apresenta tensão entre pólo e terra. Em tese, podemos tocar um pólo sem tomar choque, por maior que seja a tensão. Ligar uma carga a apenas um pólo da fonte e aterrar a outra ponta não funcionará.
Aqui cai o primeiro mito do fio-terra: a terra não é um lugar para onde se possa "fazer sumir" eletricidade. Para haver corrente elétrica, tem de haver um circuito completo. Para que uma carga possa ser ligada a apenas um fio e à terra, o gerador também tem de ser aterrado.
O sistema elétrico é todo referenciado à terra, da transmissão à distribuição. Considerando as desvantagens (um cabo de energia dá choque e fecha curto ao encostar no chão), por que isso é feito?
O primeiro motivo é a pronta detecção de falhas. Num sistema não-referenciado à terra, nada acontece na primeira falta — por exemplo, um cabo encostou no chão ou está sendo tocado por alguém. A partir deste momento, sem ninguém notar, sem ninguém saber exatamente onde, o sistema passou a ser referenciado à terra. Uma segunda falta causará problemas, sendo logo notada e localizada. Porém a primeira falta continua lá, escondida.
Num sistema não-referenciado, uma pessoa tocaria num cabo, achando que não vai acontecer nada. Longe dali, outra pessoa tocaria em outro cabo, também achando que não vai acontecer nada; e ambas acabariam eletrocutadas. Assim, é melhor adotar o "princípio da menor surpresa", referenciando o sistema à terra e declarando todo cabo vivo como perigoso.
O segundo motivo é que o sistema elétrico acaba se referenciando à terra por conta própria. Isolantes não são perfeitos, há acoplamento capacitivo e descarga corona, efeitos que vão se acumulando ao longo de milhares de quilômetros de linhas. Tocar num cabo vivo vai causar eletrocução de todo jeito.
O terceiro motivo é a redução de tensão entre qualquer dos cabos vivos e a terra. Já que o sistema elétrico será referenciado à terra gostemos disso ou não, é interessante diminuir a tensão em relação à terra, pois isto barateia o sistema. Para atingir este objetivo, aterramos o neutro.
Num sistema trifásico de 4 fios, o condutor neutro existe para manter balanceadas as tensões fase-fase. Qualquer dos 4 fios poderia ser aterrado para referenciar o sistema à terra; mas, aterrando-se o neutro, a tensão fase-terra é uniforme e menor (e.g. 220V numa rede 380V).
Num sistema de corrente contínua de 2 fios (e.g. linha de transmissão DC de Belo Monte) um pólo é positivo (+800kV), o outro é negativo (-800kV). O "neutro" é aterrado nas usinas de conversão em cada ponta. Com isto se consegue uma tensão eficaz de transmissão dobrada (1600kV). O aterramento é bem reforçado para que, em caso de necessidade, seja possível transmitir energia por apenas um fio, fazendo o retorno por terra, ainda que com potência bem reduzida.
O aterramento em instalações elétricas continuaria sendo necessário mesmo que o sistema não fosse referenciado à terra, para fins de drenagem de surtos. Uma vez que o "gerador" de raios e eletricidade estática é a própria Terra, conduzir esses transientes para um aterramento fecha o circuito e é a forma mais efetiva de livrar-se deles.
Fora esse caso de condução de transientes, normalmente o aterramento não é utilizado para conduzir corrente elétrica, nem é um sumidouro de eletricidade. Ele existe para referenciar o sistema, e equipotencializar o neutro com a terra. Corrente significativa fluindo para o terra é sintoma de falha. É na verdade uma forma eficiente de detectar faltas.
Consideramos a terra como referencial de "zero volts" porém não há nada especial no potencial da terra, tanto que ele é ligeiramente diferente em cada local (e pode muito bem ser que o planeta Terra possua carga positiva ou negativa em relação a outros corpos celestes). A importância do potencial da terra advém do fato de que tudo está sobre ela, inclusive nosso corpo. Para tocar num objeto e ter certeza de não levar choque, é preciso garantir que esse objeto esteja equipotencializado com a terra, e tem de ser com a terra imediatamente próxima.
Uma lenda relacionada ao neutro aterrado é que "não existe corrente no neutro", o que leva alguns eletricistas a usar cabo mais fino no neutro. Outra vertente diz o contrário, que só precisa usar cabo grosso no neutro, o fase pode ser mais fino do que a norma prescreve.
Como dito antes, para um circuito elétrico funcionar, ele tem de ser um ciclo fechado. E a corrente é exatamente igual em todos os pontos desse ciclo, inclusive dentro do gerador, dentro da carga, e no fio neutro. A capacidade de corrente dos condutores tem de ser suficiente em todos os pontos.
Ainda que o neutro seja aterrado em inúmeros pontos, o que em tese proporciona um caminho alternativo para a corrente, o grosso da corrente ainda prefere o neutro, pois a impedância de um condutor é (ou deveria ser) muitíssimo menor que a impedância do aterramento.
A tensão do neutro não é exatamente zero; depende da distância até o aterramento mais próximo, da impedância do fio, e da corrente em circulação. Em situação de curto-circuito, o neutro pode inclusive apresentar tensões perigosas. É mais um motivo pelo qual a norma exige que o neutro seja aterrado "dentro da instalação". Aquele aterramentozinho de apenas uma haste lá no padrão de entrada não vai dar conta, e mesmo que desse, está muito longe.
Aqui o filho chora e a mãe não vê — tentar construir um aterramento com baixa impedância, num espaço limitado e mantendo os custos sob controle.
No papel de condutor de eletricidade, a terra é um material interessante. Sua resistividade costuma ser muito alta. Porém, ela tem tamanho "infinito" para todos os efeitos práticos. Assim, uma vez que a energia elétrica já tenha sido injetada na terra, a corrente se difunde por uma grande área, formando uma espécie de cone na direção do destino, e a impedância é praticamente zero.
O problema do aterramento é justamente injetar a corrente na terra. Quando medimos a impedância do aterramento, estamos medindo apenas a impedância de injeção. Para complicar, essa impedância não segue exatamente a lei de Ohm; ela muda conforme a tensão, a corrente e a freqüência.
Os terrômetros funcionam basicamente deste modo: uma corrente alternada (de tensão relativamente alta e na mesma freqüência da rede) é circulada entre o aterramento em teste A e outro aterramento provisório B posicionado longe. Mede-se a tensão entre A e outro aterramento provisório C. Segundo a lei de Ohm, R=E/I.
O teste funciona porque o voltímetro é de alta impedância, portanto C supre a referência de tensão zero mesmo sendo um aterramento fraco. Na falta do terrômetro, o teste pode ser executado até com uma simples lâmpada e multímetro. No caso de um aterramento de impedância relativamente alta, pode-se até curto-circuitar o fase com terra.
A resistividade do solo é expressa em ohms-metro, igualzinho qualquer outro material. É a resistência de um cubo perfeito de solo, de 1m3 de volume, com eletrodos de 1m2 em cada lado.
A dificuldade é medir essa resistividade, porque solo não é homogêneo em nenhuma dimensão, e se cavar o solo para extrair uma amostra, vai perturbá-la irremediavelmente. Então, o que se pode fazer é medir a impedância e estimar a resistividade usando fórmulas práticas.
Outra dificuldade é que não é possível calcular a impedância de um aterramento simplesmente multiplicando resistividade × área de contato do eletrodo × distância percorrida. Como dito antes, a Terra é enorme e a eletricidade não precisa ir em linha reta até o destino, ela pode ir até o Japão e voltar se esse for o caminho mais fácil. Isto é uma coisa boa, pois permite obter impedâncias razoavelmente baixas mesmo em solos de resistividade altíssima.
No geral, o único jeito de saber a impedância de um aterramento é medindo a posteriori, porém existem fórmulas com base na resistividade que permitem fazer uma estimativa. Elas são importantes para dar uma noção de dificuldade (leia-se custo $$$) em se obter um aterramento suficiente em determinado solo.
Um ponto da norma que deixa o pessoal mordido do porco é a exigência de distância entre hastes de aterramento. No mínimo o próprio comprimento vertical para hastes de um mesmo aterramento, e no mínimo 5 vezes para um aterramento independente. A birra é em parte porque a norma não se deu ao trabalho de explicar o porquê, e em parte porque as distâncias ficam impraticáveis em terrenos pequenos.
Conforme dito antes, a corrente no solo não segue uma linha reta para a origem; ela vai se espalhando em forma de cone. Porém, se houver hastes muito próximas, os cones de corrente vão "competir" pelo mesmo pedaço de terra. O resultado é que a impedância total do sistema não cai proporcionalmente ao número de hastes.
Se houver dois aterramentos independentes próximos demais, um vai induzir tensão no outro. Além de diminuir a eficácia, pode ser um problema se o segundo aterramento existe para atender algum equipamento sensível (principal motivo para se usar esquema de aterramento TT).
Se o espaço não permite, o jeito é colocar ainda mais hastes e mais compridas até atingir a impedância desejada. Se o espaço abunda, seguir a norma entregará a menor impedância possível para uma mesma despesa.
A norma diz que "eletrodo de aterramento" é o conjunto das barras de aterramento mais o cabo de interligação, que deve ser uma cordoalha semi-rígida de cobre nu de no mínimo 50mm2. O problema é que esse cabo custa 50 a 100 pilas o metro em 2024...
Existem bons motivos para se prescrever esse cabo. Um condutor nu enterrado ajuda bastante a diminuir a impedância do aterramento, ao passo que um cabo isolado não ajuda em nada. O cobre é resistente mas não imune à corrosão; um cabo flexível com filamentos fininhos pode romper com o tempo. Pior ainda se for isolado, pois retém umidade e potencializa a corrosão. Já um cabo semi-rígido grosso deve durar tanto quanto a edificação (80-100 anos).
Não se deve colocar sal ou carvão para tentar melhorar o aterramento, pois esses elementos vão acelerar a corrosão do cobre, destruindo o aterramento em poucos anos ou meses.
Existe o mito que o aterramento precisa ter 10 ohms ou menos, que é uma impedância difícil de obter. Parece que versões antigas da norma NBR 5410 traziam essa exigência (todo mito tem um fundo de verdade). Provavelmente tem a ver com o fato que antigamente não havia disjuntor DR, então a única forma de detectar uma falta era fazer dela um curto-circuito.
É bem verdade que quanto menor a impedância, melhor, principalmente na hora de descarregar surtos, mas um aterramento caríssimo de 1 ohm não traz vantagem no dia-a-dia.
Na versão atual da norma, basta que a impedância seja baixa o suficiente para que a corrente de limite do disjuntor DR (normalmente, 30mA) não apresente uma queda de tensão perigosa. Se definirmos a tensão máxima de toque como 12V (corpo molhado ou submerso), um aterramento de 12/0.03=400 ohms já atenderia, para fins de proteção.
Um bom aterramento também ajuda a proteger a instalação no caso de falta do neutro. Numa instalação bifásica ou trifásica, a falta do neutro pode elevar a tensão da fase até 380V. Com o neutro equipotencializado a um aterramento de impedância baixa, haverá oscilação de tensão, mas que com sorte será notada antes da falta queimar todos os aparelhos da casa.
No resto do mundo, a norma americana (NEC) recomenda 25 ohms para residências, e a IEEE recomenda 5 ohms ou menos para grandes instalações.
No Brasil, as concessionárias de energia (todas, até onde sei) exigem a instalação de uma ou duas hastes de aterramento no padrão de entrada, em que o neutro é equipotencializado. Esse aterramento não é para seu uso, é para a concessionária. Dentro da instalação, você deve ter seu próprio aterramento e sua própria equipotencialização.
Isso é de certa forma a concessionária de energia repassando um encargo dela para os usuários. Ela mesma poderia aterrar o neutro a cada poste ou a cada transformador. Nos EUA, se faz assim — embora lá eles usem um sistema bizarro com transformadores monofásicos e neutro de alta tensão compartilhado com o de baixa tensão.
Desconheço a motivação de aterrar apenas no padrão de entrada e não nos postes. Um possível motivo é obter uma equipotencialização mais distribuída (e portanto mais segura) do neutro. Ou mais imune ao roubo de materiais, pois ficam dentro de cada propriedade em vez de na rua.
Soil resistivity testing & grounding system design (part 1) (part 2)
Norma ABNT NBR 5410