Disse o outro que o Brasil não é um país corrupto, é um país mal auditado.
Existe uma impressão generalizada que construir no Brasil é um processo excessivamente onerado por normas, taxas e exigências burocráticas. Talvez até seja, em alguns aspectos pontuais. Não raro o legislador tem uma visão romantizada e maniqueísta das coisas e.g. a distinção brusca entre imóveis urbanos e rurais, como se o Homo Rusticus fosse um animal diferente do Homo Sapiens.
Mas no geral o problema do brasileiro com o setor de obras da Prefeitura é que estamos sempre testando os limites das leis e regras. Em parte porque fazer tudo 100% dentro da regra custa dinheiro, e na média nós brasileiros estamos sempre apertados de grana. E em parte porque burlar regras, ou procurar e aproveitar lacunas nas regras, é um esporte nacional.
Nós já partimos da presunção que as leis e regras são injustas, o que não é verdade em 95% das vezes. O rico faz guerra contra a prefeitura para construir no morro porque é bonito, o pobre faz guerra contra a prefeitura pra construir no morro porque não tem pra onde ir. E quando vem a chuva, todos vêm abaixo, morre gente, e a culpa é de quem? Da prefeitura.
Mas meu foco aqui não vai ser zoneamento, mas sim elétrica e hidráulica.
Sistema de fossa séptica em locais sem tratamento de esgoto é uma das poucas coisas que a prefeitura realmente fiscaliza. De resto, noves fora a apresentação de projetos ao pedir alvará de construção, o fiscal não olha detalhes de hidráulica nem de elétrica, até porque em construções de alvenaria tudo está sepultado e invisível ao final da obra. Não existe a previsão de fiscalizações técnicas em etapas intermediárias.
Você sabia que no exterior esse tipo de coisa é fiscalizada? Existem códigos de construção para hidráulica e elétrica, e eles são feitos valer, o fiscal (ou da prefeitura ou da guilda profissional) vai na obra ver se está tudo de acordo com o código, antes de fechar a parede. Até a cor da fita teflon tem de estar correta. Norma que não é fiscalizada, ninguém cumpre, por melhor e mais bem explicada que seja, essa é a verdade.
Sim, nós temos as normas ABNT para instalações elétricas e hidráulicas. E o código de construção de cada município manda seguir tais normas. Mas isso é praticamente letra morta. Além dos motivos supracitados, temos um grande problema: as normas são inacessíveis e desconhecidas da maioria dos profissionais das respectivas áreas.
Em primeiro lugar, para obter e.g. o texto da norma NBR 5410 para instalações elétricas, ou da NBR 5626 para instalações hidráulicas, seria necessário pagar por elas. Essas aí em particular se acham fácil na Internet, mas a rigor é pirataria. Textos acessórios a uma norma legal deveriam estar disponíveis gratuitamente, na minha opinião.
Em segundo lugar, as normas são escritas numa linguagem doutoral, compacta, hermética. Eu li a norma 5410 de cabo a rabo, e achei confusa e difícil de interpretar. Seria interessante pegar umas cobaias, pode ser gente até de nível universitário, colocá-los frente a uma questão prática de elétrica ou hidráulica, e ver quantos conseguiriam dar uma resposta unicamente com base no texto da norma.
Em terceiro lugar, as normas poderiam ser atualizadas mais frequentemente (na gringa, são atualizadas a cada 2 ou 3 anos). Também poderiam "descer do pedestal" para adaptar-se ao mundo atual. Um exemplo de salto alto é a proibição pela NBR 5410 de uso de cabos de alumínio em residências, porém os cabos de cobre estão proibitivamente caros e são visados por ladrões.
Não conheço os textos de normas análogas no exterior, então posso estar sendo injusto ao reclamar do estilo do texto. Uma vez que no exterior as pessoas são obrigadas a cumprir as normas, existe um enorme mercado de material informativo acerca delas, a começar por inúmeros e excelentes (e gratuitos) vídeos de YouTube.
Nada disto quer dizer que as normas locais sejam besteirol. Pelo contrário, elas têm sua razão de ser, e salvam vidas e propriedades. É lamentável que as normas sejam mal conhecidas e mal aplicadas, mercê dos problemas supracitados.
Em alguns aspectos, as normas NBR são até menos taxativas e detalhistas do que deveriam. Por exemplo, no código hidráulico gringo, cada tomada de esgoto de pia, de máquina de lavar, etc. deve possuir um sifão P embutido no encanamento. A ideia é genial, mas a norma local não menciona, e ninguém faz; e todo mundo e a mãe dele tem problema com retorno de cheiro pelo ralo da lavadora.
Outro item que existe na norma ABNT 8160 (para esgotos) e talvez seja respeitado em prédios, mas não em residências, é o respiro de esgoto, com uma chaminé saindo pelo teto. Isso evita cheiro e deixa a drenagem mais eficiente, pois quebra qualquer vácuo e é um complemento importante ao funcionamento dos sifões. Por outro lado, a norma parece permitir mistura de águas cinzas e negras, e isso os encanadores locais costumam evitar.
Este vídeo lista algumas pegadinhas que poderiam custar uma reprovação do sistema hidráulico. Se você pensar bem, todas as regras fazem sentido. Pense em quantas casas, em quantos banheiros você já entrou que estavam cheirando a ralo. Pense nos "causos" de gente que teve de quebrar piso ou cavar trincheiras enormes para resolver entupimentos.
Uma vez que, aqui no Brasil, a norma é letra morta, o conhecimento vai passando de boca em boca, de forma parcial e fragmentada, e cada encanador faz do seu jeito. Ai alguns fazem melhor, outros fazem pior. O serviço de cada um fica bom em alguns aspectos e ruim em outros. Fica difícil distinguir entre o meramente ignorante acerca das normas do realmente incompetente. E isso alimenta o círculo vicioso da desvalorização do profissional. E essa desvalorização conduz à lentidão em adotar técnicas mais modernas e ferramentas mais ergonômicas.
No exterior, as guildas de encanadores e eletricistas são extremamente fortes e influentes. É bem verdade que isso dá margem a exageros: na Austrália, apenas eletricistas podem mexer no sistema elétrico de uma casa, que seja para instalar um simples ventilador de teto; em Chicago, parece que ainda é obrigatório usar canos de ferro fundido para esgoto, unidos por um antiquado método envolvendo estopa de calafetar e chumbo derretido, pois isso cria um mercado cativo.
Hidráulica tem uma coisa boa: ela late muito mas não morde. Se houver um vazamento ou entupimento, logo vai ficar evidente. Mas dificilmente alguém vai se afogar. Além do mais, todo mundo "entende" de hidráulica, o comportamento da água é mais ou menos intuitivo.
Já um problema elétrico dá pouco ou nenhum aviso antecipado, porém suas conseqüências podem ser choque elétrico, incêndio e/ou dano a aparelhos caros. E a maioria das pessoas, eletricistas inclusive, não compreende bem como a eletricidade funciona. Paradoxalmente, é mais fácil fazer gambiarras em elétrica que em hidráulica, gambiarras que num primeiro momento parecem funcionar, afinal eletricidade não vaza nem goteja.
Não bastasse isso, o poder público "colabora" ativamente para desviar as pessoas do bom caminho. Desde a adoção do novo padrão de tomadas de 3 pinos, quantos políticos (de variadas matizes ideológicas) já não o criticaram? Eu entendo que a tentação é grande: posar de burro e reacionário é uma forma fácil de conectar-se com as massas. Só que esse tipo de atitude leva a crer que todas as demais normas e proteções elétricas são também desnecessárias.
A coisa não é pior porque as concessionárias insistem que o padrão de entrada esteja nos conformes para ligar a energia (e todo mundo reclama que "são enjoadas"). Objetos produzidos em massa como eletrodomésticos, plugues, tomadas, etc. cumprem as normas porque são fiscalizados. Todo mundo morre de medo de gás, porém a maioria dos incêndios em residências é de origem elétrica. Geralmente envolvendo rabicho ou ligação clandestina.