Ao longo da vida, nunca trabalhei em um posto que me obrigasse a lidar diretamente com o mítico consumidor final. Mesmo nos meus dias de analista de suporte para sistemas ERP, a conversa era "B2B".
A grande exceção é a venda de apps para celular. Já não é mais minha ocupação principal desde a pandemia, mas ainda é uma boa fonte de renda, gosto de estar envolvido em desenvolvimento para mobile, e a experiência foi uma escola sobre os desafios do "B2C".
Trabalhar com pessoas não é minha praia, meu negócio é lidar com máquinas, então tenho de fazer das tripas coração para atender ao meu público de forma minimamente suficiente. Aqui vão alguns highlights da experiência.
O pessoal de TI tem certa fama de ser arrogante e pouco atencioso com clientes não-técnicos, sejam internos ou externos. Sou o primeiro a admitir que partilho dos mesmos defeitos. A gente vê os usuários cometendo os mesmos erros dia após dia, e acaba criando um certo preconceito. Os relatórios costumam ser confusos, a maioria das pessoas se enrola toda para descrever alguma coisa em palavras, principalmente por escrito.
Mas, ao longo dos anos, aprendi uma coisa: onde há fumaça, há fogo. Se os usuários reclamam reiteradamente das mesmas coisas, existe um bug. No mínimo, existe uma deficiência. Se o usuário vive cometendo os mesmos erros ou esquecendo como se faz a mesma coisa, existe um problema ergonômico na interface de usuário.
Culpar o usuário por imperícia ou por ser ruim de caneta não vai resolver nada. O usuário tem sua própria ocupação e seus próprios pepinos para resolver.
No caso dos apps, uma característica — que pode ser vantagem ou desvantagem — é expor seu software a milhões de pessoas e milhares de ambientes diferentes. Qualquer bug ou deficiência vai emergir, cedo ou tarde. Se forem bugs obscuros, vão aparecer esporadicamente, em relatos confusos, que o analista típico vai rejeitar como "erro de operação" ou "algum glitch de hardware".
Se esses relatos aparecerem logo após o lançamento de uma versão nova, aí a certeza do bug aumenta muito. Pode não parecer, mas no longo prazo isso tudo é uma vantagem, pois resulta num produto muito mais polido, que seus competidores terão dificuldades em replicar.
O grande problema é dissecar o relatório do usuário final, que tende a ser vago, confuso, mal-escrito, não raro temperado com insultos (mais sobre isso depois). Tudo isso aumenta a tentação de descartá-lo como inválido. Mas pode acreditar: o usuário também preferiria não perder tempo enviando mensagens para você. Se ele se deu ao trabalho, é melhor presumir que existe um motivo subjacente. São ossos do ofício do engenheiro de software tentar reproduzir o problema e solucioná-lo.
Do outro lado da mesa, todos nós enquanto consumidores já tivemos a experiência ruim de receber um produto ou serviço insuficiente, tentar fazer o fornecedor ver o problema e emendar-se, só para ser olimpicamente ignorado. (Às vezes são questões óbvias, como uma pizza queimada ou sem queijo.) Nem é preciso colocar esse tipo de fornecedor na sua lista negra, porque eles não duram muito tempo. Então, não seja "esse" tipo de fornecedor.
Todo mundo tem seu dia de cão. Todo mundo tem seu dia de bobeira, do tipo digitar sua senha em maiúsculas quando deveria ser em minúsculas, perder horas tentando fazer login num serviço essencial. Aí você envia uma mensagem pedindo ajuda, já desesperado... e enxerga o erro 30 segundos depois. Por que não 30 segundos antes, para poupar a vergonha?!
Porém, há muito mais usuários finais que analistas de TI, e os usuários têm muito mais a fazer do que ficar estacionados numa tela de login, então a tendência é o analista de TI receber muito mais pedidos de suporte — o que cimenta a impressão que os usuários são todos uns imbecis.
Sou o primeiro a admitir que é difícil ter empatia com o usuário final, mas é preciso exercitá-la, porque afinal de contas ele paga nossas contas.
E o outro ponto é que, se os mesmos pedidos de ajuda derivados de erros bobos se repetem dia após dia, existe uma oportunidade de melhoria, seja na interface, seja no treinamento.
Além de interface e treinamento, eu ia dizer também "documentação", mas isto seria pedir demais. Ler documentação e manuais de instruções é um hábito ancestral que caiu em desuso. Não gosto disso, mas assim é.
Uma vez que não sou um mestre na arte de lidar com pessoas, tento compensar fazendo bem o que é fácil e óbvio. Por exemplo: respondendo logo às mensagens dos usuários.
Na condição de consumidores, qual é o maior pesadelo que podemos ter? É quando precisamos de uma resposta do fornecedor, mesmo que negativa, mas ela nunca vem. Mandamos e-mail, Whatsapp, tentamos contato telefônico, mas é impossível obter uma resposta que não seja automática. E quem de nós nunca pediu um orçamento que nunca veio, e ficou com o dinheiro queimando no bolso?
Não seja "esse" tipo de fornecedor.
Só o fato de responder rápido já tende a "desarmar" o usuário. Porque quando ele mandou a primeira mensagem, via de regra já estava de saco cheio, depois de tentar resolver o problema de diversas formas, e já meio que esperando ser ignorado ou receber uma resposta robotizada. Quando ele descobre que na outra ponta realmente existe um humano interessado em resolver o problema dele, muda o tom da conversa.
Em particular na seara dos apps, a tendência de muitos publishers é "lançar e esquecer", ou seja, colocam o software na loja e nunca mais olham para trás. Não dão suporte, não respondem a mensagens, não acompanham relatórios automatizados de bugs ("Crashlytics"), não atualizam periodicamente o app — sendo que qualquer app desatualizado por muito tempo tende a apresentar problemas (as próprias lojas estão despublicando apps nesta situação).
Por outro lado, se você fizer o básico, que é atualizar o app periodicamente e não ignorar os usuários, isto já te coloca na frente de 90% da concorrência.
O pessoal ouve falar que apps são uma mina de ouro, um nicho onde pode-se ganhar muito dinheiro trabalhando relativamente pouco — e leva esse conceito ao extremo, achando que uma vez publicado o app, o volume de trabalho é zero. É bem verdade que na maior parte do tempo os apps publicados dão pouco trabalho, mas isso não pode descambar para a negligência.
O grosso das interações com clientes e consumidores é pertinente e respeitosa. Mas uma coisa é certa: lidar diretamente com o consumidor final é difícil. É preciso ter casca grossa. A tentação de retrucar os mal-educados é enorme.
Fico imaginando como deve ser a vida de um atendente de Casas Bahia ou de uma repartição pública, ambientes onde baixa absolutamente todo tipo de gente, com problemas e demandas dos mais variados.
Ao vender apps, assim como seu software fica exposto aos mais variados aparelhos e casos de uso, você fica exposto aos mais diferentes tipos de usuário.
Muito usuário é mal-educado. Na maioria das vezes isso acontece porque ele está exasperado, então é preciso dar um desconto. Mas existe aquela minoria que se vale da condição de consumidor para soltar sua fera interior. Até eu consigo distinguir uns de outros, e o castigo para os últimos é uma demora maior na resposta.
A "ameaça" que mais me diverte e me aborrece em igual proporção é "vou falar com o jurídico". Se estiver no prazo de garantia, ofereço logo reembolso para encurtar a conversa. É um tapa com luva de pelica, pois faz ver que o valor da causa seria o preço irrisório que foi pago pelo app. Não qualifica nem para o juízo de pequenas causas.
No mais, já fui chamado de ladrão, estelionatário, golpista, etc. Um usuário disse que ia me amaldiçoar. Outro disse pertencer a uma certa religião com muita gente influente, e que se não o satisfizesse, "já sabe né?". Alguns contam histórias tristes, outros pedem desconto porque pertencem a determinada categoria profissional, outros oferecem 5 estrelas se levar um produto na faixa (e ameaçam com 1 estrela se não levar).
Lembrando novamente que quase toda reclamação de consumidor é motivada por um problema real, então é preciso distinguir sinal de ruído, colocar o orgulho de lado e responder ao usuário com cortesia. A relação sinal-ruído é baixa mas o sinal está lá.
Outro fator é que, principalmente no Brasil, golpes e falsificações estão em todo lugar. As pessoas vão tomando invertida atrás de invertida, e vão ficando brutalizadas. Aí começam a tratar todo mundo na base da ameaça de polícia e processo como estratégia de defesa. Estratégia inócua, mas é preciso compreender o contexto.
Especificamente no mercado de apps, os usuários "pagantes", ou seja, que compraram o app, são muitíssimo mais demandantes de suporte do que os usuários "grauitos", ou seja, aqueles que pagam indiretamente com ads. Do ponto de vista de suporte, é muito mais tranquilo financiar-se com ads do que com vendas diretas. Uma vez que é extremamente incomum usuários comprarem apps hoje em dia, os poucos que o fazem vão exigir tratamento diferenciado. (Corolário: o preço deve compensar não só a perda nos ads, mas também a demanda adicional e continuada de suporte.)
Os usuários reclamam muito de ads, mas a experiência mostra que eles não deixam de usar um app útil por conta disso. Ademais, todo mundo sabe que apps gratuitos vendem dados, todo mundo acha isso um a-be-sur-do!!! mas não deixa de usá-los. No frigir dos ovos, a gratuidade é o que importa; pouquíssimos metem a mão no bolso em nome da preocupação com privacidade.
Há ainda outro motivo: o consumidor paga caro pelo celular, e tem de comprar um novo a cada poucos anos. Do ponto de vista dele, o hardware é o custo de entrar na plataforma, e a conta telefônica é o custo recorrente de se manter nela. Os apps são meros acessórios.
Este é apenas um dos vários problemas de "ergonomia econômica" das plataformas. Infelizmente, não há muito que o desenvolvedor de apps possa fazer a respeito, exceto informar claramente o consumidor. Outros problemas similares que estressam o suporte, mas o desenvolvedor de apps não tem culpa: