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Monumento ao contrabandista desconhecido

Um ex-patrão meu costumava dizer que deveriam construir um monumento para os contrabandistas. Em especial para os que traziam muamba eletrônica do Paraguai. Gente que arriscava suas reputações e sua liberdade para que tivéssemos computadores um pouco melhores e mais acessíveis.

Como disse Goethe, "a lei é forte, porém mais forte é a necessidade". Enquanto a patética indústria nacional ocupava-se de fazer computadores ruins e caros, voltados ao mercado cativo de bancos e empresas estatais, empresas de verdade e pessoas normais também precisavam de PCs, mas não podiam pagar os 5000 dólares que um PC S!D custava.

Lembro o preço até hoje, porque fui pesquisar preços. Meus pais pensaram em comprar-me um PC em 1989, mas desistiram quando descobriram o custo. Fiquei bastante triste, porque não havia como prosseguir na profissão sem ter acesso a um computador de verdade.

Para meu pai, estava fora de cogitação comprar algo contrabandeado. Isto me ensinou outra lição: nem sempre jogar pelas regras é a coisa certa. Em particular no Brasil.

No fim das contas, acabei ganhando um PC no fim de 1990. Um produto do então incipiente "mercado cinza": 1700 dólares por um PC XT sem disco rígido. Um PC contrabandeado com disco rígido custava 1300 dólares na mesma época.

Assim o Brasil tratava, e ainda trata, quem tentava desenvolver-se numa profissão. (Eu tenho esse defeito de nunca esquecer uma ofensa. Não é bonito nem cristão, mas o que posso fazer?)

Até o governo dava seu jeito de obter computadores melhores que as carroças nacionais. Por volta de 1993 a Receita Federal fez diversas operações em empresas a fim de apreender computadores contrabandeados. O que fizeram com eles? Usaram em repartições públicas.

Eu também dei meu jeito: poucos meses depois de ganhar aquele PC, fiz uns frilas e troquei o "miolo" dele por um 286, e adicionei disco rígido. Nunca contei pro meu pai... Mas tenho uma vaga lembrança que pelo menos a placa-mãe 286 ainda era nacional. Os preços já começavam a reagir para baixo, antecipando o fim da reserva de mercado.

Depois veio o FHC e a coisa passou a funcionar como em qualquer país civilizado, onde uma importadora pode trazer qualquer coisa, pagar o imposto e vender aqui. E tem gente que reclama do FHC, diz ter saudades do Brasil pré-Plano Real...

Não eram apenas os informatas que dependiam desse "canal de distribuição" para ter acesso à tecnologia. Segue um parágrafo introdutório do livro "A Ditadura Envergonhada" de Elio Gaspari: Este livro não existiria sem a ajuda de seis modelos de computadores surgidos durante o tempo que levou para ser escrito. Sinto-me no dever de registrar que, por conta da insana política de reserva de mercado, os dois primeiros chegaram à minha mesa pelos desvãos da alfândega. Aos contrabandistas da época, minha homenagem.

Uma outra coisa que o mesmo ex-patrão citado no início do texto dizia, com precisão assustadora: quando um canal de contrabando é criado, é quase impossível destruí-lo.

O contrabando massivo de bens de tecnologia é hoje uma coisa obsoleta; custa quase o mesmo um computador importado legalmente ou contrabandeado do Paraguai. Muita gente da nossa área não acreditava que o contrabando fosse abandonado de forma tão rápida. E a pá-de-cal foi dada pelo Lula, com a isenção de imposto sobre computadores de baixo custo. Um dos seus maiores acertos políticos.

Mas o caminho aberto para trazer computadores não deixou de existir. É hoje percorrido por produtos menos necessários e mais insidiosos, talvez até drogas e armas, estes sim merecedores de severa repressão.

Para ficar num exemplo "light": um ex-colega de trabalho, que também trazia umas coisinhas do Paraguai, foi "aposentado" em 2000 por ter sido pego e fichado. A próxima apreensão mandaria-o direto para a cadeia, então preferiu largar dessa vida.

Na apreensão que o tirou do jogo, havia até um... jet-ski! E ele já tinha trazido muitos jet-skis até então. Isso foi em 1999 ou 2000; já naquela época o contrabando de computadores estava em declínio, e a turma precisava variar para ganhar a vida.

Agora não tem mais conserto, e o jeito é reprimir o contrabando tão bem quanto possível. Mas não podemos perder de vista o processo, o "moral hazard" que criou o problema. E tentar não repetir o erro.

Nenhuma repressão teria sido capaz de conter o contrabando de computadores dos anos 1980, portanto era inevitável a criação dos corredores de contrabando e sua posterior utilização para fins moralmente condenáveis.