Todo mundo conhece Blumenau, seja pela Oktoberfest, pelas enchentes ou pela beleza da cidade. Mas pouca gente sabe que um dia o trem passou por ali.
Você sabia que a 'Ponte de Ferro', um dos mais notórios cartões-postais da cidade, já foi ponte ferroviária?
A 'Ponte dos Arcos', outro notório ponto de referência, também é obra e arte da extinta EFSC: Estrada de Ferro Santa Catarina.
A EFSC iniciou suas atividades em 1908, na mesma época em que tantas outras regiões do Brasil começavam a construir suas ferrovias. Diferentemente das outras, a EFSC era antiga reivindicação da comunidade local e foi financiada com capital alemão. O primeiro trecho de 70km até Ibirama/SC foi construído rapidamente.
Você imagine o que é, numa região onde a estrada padrão era uma picada no meio do mato, de repente você dispor de ferrovia para adentrar 100km a oeste.
A Primeira Guerra ocasionou a estatização da ferrovia, que continuou expandindo-se sob administração do governo, ainda que mais lentamente. A oeste, atingiu Trombudo Central. A leste, o Porto de Itajaí.
Com planos iniciais audaciosos, embora perfeitamente factíveis, de entroncar-se com a Itararé-Uruguai e chegar a Rio Negro/PR, a EFSC nunca logrou atingir estes objetivos. Permaneceu isolada e foi minguando até ser desativada em 1971; definitivamente erradicada em 1981.
A EFSC colaborou muito para o desenvolvimento do Vale do Itajaí. Mesmo assim, e mesmo tendo sido erradicada há pouco tempo, ela foi rapidamente apagada da paisagem e da memória. Mesmo em fotos aéreas, ela é elusiva. Acho que isto aconteceu porque a ferrovia margeava o rio Itajaí-Açu pelo lado direito em toda a sua extensão, e as margens do rio são as áreas mais "nobres" da região. Ou são habitadas ou são aproveitadas por estradas, a começar pela BR-470 que sepultou pessoalmente alguns pedaços.
Outro fator importante é a forma com que a RFFSA lidou com os restos da ferrovia: vendeu tudo como sucata, inclusive as belas pontes metálicas. Restou apenas o que nem valia a pena remover. No caso da "Ponte Metálica" de Ibirama, o carteiraço de um policial afastou o sucateiro, salvando a ponte [3].
Apesar de tudo, não é difícil encontrar resquícios da ferrovia, basta aferrar-se à margem direita do rio Itajaí-Açu, e ficar de olhos abertos. De maneira geral a ferrovia costumava ficar mais perto do rio do que as atuais marginais, mas em alguns trechos a rua realmente está sobre o antigo leito.
O padrão repete-se com a BR-470 nos trechos em que ela está do lado direito do rio, que aliás nunca tinha visto tão cheio, afinal houve uma enchente na região faz apenas uma semana.
Num primeiro momento não passei pelo centro de Blumenau mas mesmo assim salta aos olhos a beleza, limpeza e organização da cidade. Ganha de longe de Joinville. Ganha até no nome, teria dito Chico Anysio que "Blumenau" é um nome particularmente bonito e imponente, toda municipalidade merecia um nome assim. Uma rara palavra alemã que calha de soar bem a ouvidos portugueses...
As demais cidades do Vale do Itajaí também são muito atraentes. Pena que algumas mancaram na hora do batismo, como Ascurra e Apiúna.
Infelizmente, de Ascurra até Ibirama, o antigo leito da ferrovia tem sofrido a sina de ser ocupado por posseiros ou de tornar-se o bairro pobre da cidade, um padrão que vemos repetir-se tantas vezes ferrovias afora. Enfim, faixas de domínio e margens de rios são sempre acometidas de invasões e moradias precárias. Naquela região, temos longas faixas de terra que são simultaneamente três coisas: faixa de domínio da rodovia, faixa de domínio da ferrovia (que ainda pertence à União) e margem do Itajaí-Açu.
Apesar disso a paisagem como um todo é muito bonita. A região me é familiar desde pequeno; Meus pais tinham um vizinho que era natural da região de Ibirama, e a convite dele fomos algumas vezes para lá. O mais interessante é que nunca houve menção à ferrovia por parte dos "adultos". Como eu disse antes, as pessoas esqueceram rápido da EFSC.
A evolução uniforme do Vale do Itajaí corrobora aquela nossa tese, que o transporte e a mobilidade pessoal são essenciais para a interiorização do desenvolvimento. Os pais fundadores de Blumenau já enxergavam isto em 1850, tem muito brasileiro que não se tocou disso até hoje.
É óbvio que a inauguração da BR-470 preencheu rapidamente a lacuna deixada pela finada ferrovia, e deve ser ainda outro fator de esquecimento rápido. Com o passar dos anos, a saturação da rodovia federal e a constatação do alto custo econômico e social da mobilidade individual faz as pessoas lembrarem da ferrovia, e lamentarem sua extinção.
Talvez por causa desta tardia constatação, ressurgiu o interesse pela história da EFSC desde o início deste século, com muitos pesquisadores profissionais e amadores correndo atrás da história.
Considerando que todas as cidades do Vale do Itajaí estão ligadas umbilicalmente ao rio, e a ferrovia margeava justamente o rio, a reutilização para transporte de passageiros seria um tiro certeiro. Em muitas outras cidades, as ferrovias abandonadas ligam nada a coisa nenhuma e os projetos de rodar VLTs em cima dos trilhos são basicamente eleitoreiros. Na região de Blumenau, o VLT teria enormes chances de sucesso — se não tivessem erradicado a ferrovia e dado outra destinação à faixa de domínio...
A EFSC nunca foi tratada como prioridade pela RFFSA, tanto que ela nunca viu a fumaça de uma locomotiva diesel. O uso exclusivo de locomotivas a vapor foi mais um prego no caixão da ferrovia.
Mas, pelo menos até os anos 1950, o futuro parecia róseo. A linha foi construída num padrão técnico razoavelmente bom, com muitos túneis e pontes. O otimismo também levou a algumas decisões de engenharia que hoje parecem esquisitas. Um debate completo pode ser encontrado na dissertação de Angelina Wittmann [2].
Um caso: a partir da estação de Subida (uns 5km antes de Ibirama) havia duas linhas: a "linha baixa" que ia para Ibirama, e a "linha alta" que ia para Rio do Sul. Por vários quilômetros, as duas corriam paralelas.
A justificativa foi que a "linha alta" podia ter assim uma inclinação bem suave (1,5%) de forma relativamente barata. Um simples prolongamento da "linha baixa" até Rio do Sul implicaria em gradiente mais forte, ou numa obra muito mais cara. Isto fazia sentido na medida em que imaginava a EFSC conectada à malha ferroviária pelo oeste, o que acabou nunca acontecendo.
De um ponto de vista mais atual, estender o ramal de Ibirama talvez fizesse mais sentido pois o Tronco Principal Sul passa por Itaiópolis e Santa Terezinha, que estão bem mais perto. Acredito que o relevo também seria mais favorável, seguindo ao longo dos rios Hercílio e Dollmann.
Outro caso: as pontes e túnel no centro de Blumenau, o único lugar em que a EFSC deixava a margem direita do rio. Estas obras de arte foram feitas na medida em que a ferrovia foi estendida de Blumenau a Itajaí. A justificativa então foi que custaria mais barato assim do que desapropriar toda a faixa e reforçar a margem do rio. Há quem diga que o engenheiro foi teimoso, ou mesmo corrupto.
Atualmente, as pontes, o túnel e o antigo leito servem todos como estradas de rodagem, e como eu disse são todos cartões-postais da cidade. Sendo um pouco poético, a beleza e a utilidade continuada dessas obras de arte sugerem que o engenheiro estava certo afinal de contas.
Quando a EFSC foi extinta, a "linha baixa" entre Subida e Ibirama virou uma estreita estrada de rodagem, na margem oposta à BR-470 que neste trecho vai para o lado esquerdo. Parte da estrada ainda existe mas ficou sem saída pois a usina hidrelétrica subterrânea de Salto Pilão agora ocupa o território.
Da mesma forma, ruínas interessantes da ferrovia em Lontras também têm acesso mais difícil, já que uma boa parte do terreno em torno da captação de água da usina também é cercada, e outras propriedades particulares restringem o acesso à margem do rio a partir da "estrada de Subida". Desta vez eu não estava com paciência nem para invadir propriedades nem pedir permissão para entrar, então fico devendo as fotos. Mas há bastante delas no Google Earth.
Uma das contrapartidas pagas pela usina de Salto Pilão foi justamente a reativação de um trecho de 3km da "linha alta" da EFSC, hoje conhecida como "Ferrovia das Bromélias". A atração turística conta com uma maria-fumaça e é operada a cada segundo fim-de-semana do mês.
O sonho original da ABPF era restabelecer a ferrovia até Rio do Sul (totalizando 28km), mas por enquanto não foi possível. Mais detalhes nesta entrevista com Luis Carlos Henkels, o "manda-chuva" dos entusiastas ferroviários nessa área.
Parte desta ferrovia reimplantada, bem como a garagem onde repousa a locomotiva, estão dentro do território da usina e não podem ser visitados senão nos dias em que o passeio é operado. Por outro lado, a localidade de Subida, logo abaixo da usina, contém muitas obras de arte ferroviárias de fácil acesso, como o pontilhão de pedra e dois túneis. Há ruas de acesso e a própria ferrovia está limpa para caminhar-se.
Antes da reimplantação da ferrovia, um "programa de índio" bem próprio da região era a exploração destes túneis abandonados. De qualquer forma ainda sobraram muitos outros para este tipo de atividade, que pessoalmente não teria coragem de fazer.
Ainda na região de Subida, pode-se ver as duas pontes que vencem o afluente local do Itajaí-Açu. Uma ponte metálica queda abandonada atrás de um restaurante, e é visível logo ao entrar na localidade. Para ver a outra ponte de pedra, basta entrar alguns metros na estrada de Subida. É realmente curiosa esta duplicidade, não admira a especulação a respeito da necessidade de duas linhas paralelas, que citei antes.
Segue um pequeno vídeo que mostra novamente a Ponte de Ferro de Blumenau. E mais outro feito no "Trem das Bromélias".
Numa segunda visita à região, em 2015, explorei o trecho final da linha entre Subida até seu ponto final em Agrolândia.
A maioria das grandes pontes metálicas abandonadas na Subida está inacessível porque os terrenos agora pertencem à usina de Salto Pilão, mas com a ajuda do Google Earth localizei pelo menos uma que é de fácil acesso, a de Atafona:
A região é um verdadeiro labirinto. Arme-se de mapas cartográficos do IBGE (cujo download é gratuito), GPS e anote coordenadas no Google Earth.
A ponte acima pode ser percorrida até de automóvel. Parte do leito é estrada aberta, para ambos os lados. Para baixo, dá acesso a outras pontes abandonadas de ferro, em particular a famosa "ponte 16". Para cima, dá acesso ao túnel desmoronado. (No dia em que estive lá, não sabia as distâncias e terrenos que teria de enfrentar para visitar essas atrações, e acabei não indo até elas. Grande erro!)
A paisagem observável do trem neste trecho é muito bonita, não admira a ABPF acalente o sonho de levar os trilhos do trem turístico até Rio do Sul:
A idéia de "esticar" o passeio de Subida até a estação de Matador em Rio do Sul, ainda existe. Acho que os primeiros esforços da ABPF começaram justamente "por cima", pela estação de Matador, onde há 600m de trilhos assentados, a estação preservada e até algum material rodante.
Como foi dito antes, a usina de Salto Pilão bancou a reimplantação do trecho que cortava o território da própria usina, o que colocou a estação de Matador numa situação curiosamente isolada (não para sempre, assim esperamos).
De Rio do Sul em diante, as antigas estações da EFSC tendem a estar mais bem preservadas, ou pelo menos de pé. No centro de Rio do Sul um prédio serve como estação rodoviária. O antigo leito ferroviário é agora uma avenida principal da cidade, e a bela ponte ferroviária sobre o Rio Itajaí do Sul enfeita a cidade:
Em Trombudo Central a Prefeitura está fazendo a parte dela, desapropriando e protegendo os prédios das antigas estações. O próprio leito da ferrovia está limpo por trechos mais longos, talvez por serem regiões não tão densamente povoadas.
Embora a ferrovia aparente um bom padrão técnico, as estações dão a impressão de serem pequenas, quase de brinquedo, principalmente se tivessem de lidar com cargas além de passageiros.
As próprias pontes da EFSC, abandonadas ou não, ficam modernas à medida em que nos aproximamos do ponto final da ferrovia. São pontes de concreto e "magrinhas", não têm o excesso de material que pontes mais antigas apresentam pelo fato dos engenheiros não terem tanta certeza quanto à resistência dos materiais, etc.
Um aspecto que me chama a atenção em todas as pontes da EFSC, inclusive a ponte de ferro de Blumenau, é que elas são muito altas, e continuam incólumes às inúmeras enchentes que assolaram a região. Apesar da ferrovia margear o rio Itajaí-Açu, os engenheiros fizeram a lição de casa e consultaram o histórico de enchentes, enquanto muitas outras obras mais modernas baseiam-se em previsões mais otimistas e acabam afetadas pelas enchentes.
No interior de Trombudo Central, ao contrário do que aconteceu em outros lugares, a ferrovia não foi convertida em estrada de rodagem, embora alguns trechos aqui e ali estejam sendo usados informalmente.
Um detalhe é que, nesta região, os "cruzamentos" entre leito ferroviário e estrada estão todos sinalizados por pequenas placas. Não sei se isso é coisa de trilheiros ou tem finalidade mais séria e.g. regularizar os imóveis da EFSC, que ainda pertencem à União. O fato é que os leitos não estão ocupados. Se fosse o caso de colocar trilhos novamente por ali, seria relativamente fácil.
A última estação do trecho, São João, funcionou por apenas três meses, pois uma enxurrada desmanchou aterros na época da inauguração, e não havia mais recursos para consertar nada. Um dos aterros pode ser visto abaixo:
Abaixo, a estação de São João, que está em péssimo estado mas ainda de pé. Na verdade, já esteve bem pior, literalmente no meio do mato. No momento da foto abaixo, o local estava bastante limpo e o leito ferroviário igualmente sinalizado por pequenas placas:
A construção da ferrovia foi 2 ou 3km além deste ponto, na direção sudoeste. Curiosamente, o entorno da estação de São João não tem nada, nem casas; o desenvolvimento concentrou-se na "parte baixa" que margeia o rio. A ferrovia procurava os morros para ganhar altura paulatinamente, viabilizando a conexão com o Tronco Sul na região de Lages. Em linha reta, faltaram apenas 50km para completar esta ligação; se tivesse chegado lá, o destino da EFSC poderia ter sido bem diferente.
[1] GIESBRECHT, Ralph M. Página-índice da EFSC no sítio 'Estações Ferroviárias'. Acessado em 30/09/2013.
[2] WITTMANN, Angelina C. R. A ferrovia no Vale do Itajaí (dissertação de mestrado). UFSC, 2008.
[3] AMAVI.ORG.BR. Texto sobre a ponte metálica de Ibirama. Acessado em 30/09/2013.