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O vírus da fotografia

Alguns assuntos atraem geeks e nerds como o açúcar atrai formigas. Computadores. Trens. Aviões. Modelismo. Fotografia. Pessoalmente, só não fui acometido ainda pela mania da aviação.

Assim como outros hobbies, a fotografia é atraente porque mistura arte e técnica, ciência avançada com empirismo. Hoje em dia, fotografia e informática andam de mãos dadas como nunca antes; quase toda câmera em uso é digital, e quase todo celular ou tablet é também uma câmera.

Ao contrário de todos os prognósticos, máquinas fotográficas vendem mais do que nunca. O hobby é praticado por bilhões de pessoas, mesmo por quem só possui um celular como equipamento. Vide a popularidade dos Instagram da vida.

Sempre se temeu que os novos recursos tecnológicos matariam a fotografia tal qual a conhecemos. Celulares com câmeras acabariam com as máquinas fotográficas. A fotografia digital não tinha o mesmo glamour do filme. As SLRs (*) com exposição automática acabariam com o mercado profissional. Antes dela, as SLRs com autofoco é que acabariam com tudo... Imagino que todas as novidades anteriores, como fotômetro integrado à câmera, Polaroid, lentes com zoom, filme 35mm em vez de grandes formatos, câmeras compactas em lugar daquelas de fole, foram entendidos por muitos como o fim da fotografia.

Outro "assassino" da fotografia temido há um século é o filme, tanto químico quanto digital. Quem se interessaria por fotos quando pode filmar? Mas ninguém matou ninguém, hoje em dia toda câmera fotográfica é capaz de fazer filmes, e cineastas têm feito filmes inteiros usando justamente DSLRs (**)!

A fotografia é multidisciplinar. Envolve física, ótica, matemática. Cada fotografia envolve várias decisões interrelacionadas: abertura, obturador, foco, sensibilidade ISO, zoom, quiçá flash e temperatura de cor.

Num nível acima, cada lente e cada modelo de máquina é o resultado de um enorme conjunto de difíceis decisões de engenharia. Desconsiderando porcarias descartáveis, não existe equipamento "melhor" ou "pior". Existe o que é mais adequado a este ou aquele caso de uso. A câmera embutida num celular é limitada mas é um milagre de engenharia, dados os limites de tamanho. Isto dá a cada equipamento, seja lente ou câmera, um "caráter" único, como se fosse um ser vivo.

Nerds adoram uma "guerra religiosa". Linux versus Windows, Star Wars versus Star Trek. (O resto do populacho acabou descobrindo esta modalidade de diversão. Vide a polarização PT x PSDB no Facebook.) O forte caráter que cada equipamento fotográfico possui dá margem para discutir e argumentar ad infinitum, bem ao gosto dos nerds.

Nos anos 1980, era filme Kodak versus Fuji, e negativo versus slide. Hoje em dia é Canon x Nikon, DSLR x mirrorless (*3). E RAW versus JPEG, é claro! Ken Rockwell o gênio versus Ken Rockwell o idiota. Correndo por fora, alguns malucos ainda usam filme químico e se acham.

Embora fotografia seja uma forma de arte. Toda a engenharia existe para viabilizar a arte. Muitos fotógrafos condenam esta atitude nerd de perder a arte de vista, ficar discutindo problemas técnicos em vez de sair por aí e tirar fotos.

Não deixam de ter razão; por outro lado, se há pessoas que se divertem com estas discussões parnasianas, sorte delas! Enquanto uns se divertem discutindo Canon x Nikon, outros têm de beber até o coma alcoólico para ter alguma satisfação na vida.

Diferente do sarampo, a doença da fotografia pode infectar mais de uma vez. No fim dos anos 1990, eu tinha uma SLR Yashica FX-3, depois de ter brincado bastante com a Zenit do meu pai. Máquina totalmente manual... não era muito fácil tirar fotos com ela, embora tenha sido excelente para aprender. Acabei vendendo tudo para outro amigo "infectado".

Arrumei uma máquina totalmente automática para uso corrente, que aliás nunca tirou uma foto 100% nítida. Funcionava, mas... Isto é uma característica interessante das máquinas não-profissionais: a qualidade das lentes, que no fundo é a única coisa que importa, varia muito e de forma não relacionada com a etiqueta de preço.

Então passei longos anos livre da doença, à base de uma dieta de câmeras de celular. Achar que câmera de celular supre toda necessidade fotográfica é uma ilusão, mas uma ilusão que faz bem pro bolso.

É curioso como alguns hobbies são simplesmente caros e outros baratos, com ou sem justificativa. Ferreomodelismo é barato. Aeromodelismo é caro. Fotografia varia de cara a muito cara. A fotografia digital não tornou o hobby muito mais barato, porque o que era gasto em filmes, agora é despendido numa troca de câmera a cada triênio.

Meu outro hobby é justamente fotografar e filmar trens por aí, mas sempre resisti teimosamente a comprar uma câmera decente, justamente porque esta toca de coelho eu já sei que não tem fundo. Até que minha esposa se cansou de passar vergonha alheia e forçou uma solução, adquirindo uma máquina fotográfica pro papai aqui no Natal passado.

Aí começou tudo de novo... e cá estamos, numa recaída forte.

Notas

(*) SLR: Single Lens Reflex, ou monorreflex. Câmera com um espelho que permite visualizar a cena e tirar a foto através da mesma lente. Permitem trocar a lente. Informalmente é o que se denomina "câmera profissional".

(**) DSLR: Câmera SLR onde há um sensor digital em vez de filme, hoje em dia é praticamente o único tipo de SLR que se usa e se vende.

(*3) Mirrorless, MILC ou EVIL: câmeras "sem espelho". Toda câmera compacta é sem-espelho, porém esta denominação é reservada para câmeras com sensor maior e lentes intercambiáveis.