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Resenha de livro: Geração do Deserto, de Guido Wilmar Sassi

Este é um livro bastante antigo; a primeira edição é de 1964. Até o autor já faleceu, em 2003. Com a ressurgência do interesse na Guerra do Contestado, o livro tem obtido mais atenção, a ponto de ser um dos textos cobrados no vestibular UDESC/UFSC de 2012.

É uma obra de ficção, porém com um pano de fundo histórico real, e situações bastante verossímeis, certamente baseadas em fragmentos de "causos" reais. O processo que destilou o caboclo do Contestado, convertendo-o pouco a pouco numa malta de jagunços, é mostrado em toda a sua progressão.

Também é possível ver a transição de um lugar inexplorado — onde os desmandos infinitos dos coronéis locais eram amortecidos pelo tamanho aparentemente infinito da terra, onde os caboclos fugidos podiam adentrar um pouco mais, sempre que sentiam-se ameaçados ou descontentes.

Até o dia em que o progresso e a evolução tecnológica, encarnados na ferrovia e no trem de ferro, traçaram linhas nessa terra, fazendo todo mundo ver que ela tinha tamanho finito. Também se viu que havia donos demais para terra de menos.

O ponto de vista do texto é quase sempre o dos caboclos, com um e outro corte para discussões da elite sobre a questão de limites entre PR e SC.

O caboclo não é idealizado; o texto tem bom equilíbrio entre demonstrar as injustiças cometidas contra eles e também suas limitações e inevitáveis fraquezas humanas. O nome do livro deriva da comparação que os caboclos (dentro do romance) faziam entre si mesmos e a travessia do povo judeu pelo deserto do Sinai em busca da terra prometida.

Por uma coincidência cronológica, os caboclos associavam todas as mazelas à República. Somando-se isso à profunda religiosidade dos caboclos, da Monarquia cuja religião oficial era a católica contra uma República de inspiração positivista, os revoltosos do Contestado chegaram à mesma conclusão que os "fanáticos" de Canudos: a restauração da Monarquia era a solução a ser perseguida. Isso os colocou na alça de mira, pois as memórias da Revolução Federalista ainda eram muito recentes.

Filme: "A guerra dos pelados", de Sylvio Back

Apesar da pouca atenção dada ao livro até há pouco tempo, ele conseguiu virar filme já em 1970. O nome do filme, "Guerra dos Pelados", vem do apelido que os caboclos deram a si mesmos, "pelados" por rasparem toda a cara, em contraposição aos soldados "peludos" que tendiam a usar bigodes e barbas.

O filme pode ser encontrado facilmente no YouTube. Isso é pirataria, mas acho que ninguém está se incomodando... Os filmes brasileiros até os anos 1990 são muito mambembes. Dentro desse contexto, "A guerra dos pelados" está bem acima da média.

A película trabalha uma parte limitada do livro — mais ou menos a parte do meio, se dividíssemos o texto em três partes. Como um filme tem de entreter, muita atenção é dada a aspectos românticos e romancescos do livro, como o doido Nenê (interpretado por Stênio Garcia, o ator mais prontamente reconhecível) que enfrenta o "dragão de ferro sobre trilhos" munido apenas de uma espada de madeira.

Além do Stênio, creio que há mais 2 ou 3 atores globais. O filme capricha em certos detalhes como o sotaque, idiomatismos, a religiosidade simples e os costumes do povo do Contestado. Dá-se muito destaque às araucárias, hoje ameaçadas de extinção pelo "progresso", assim como era o caboclo.

Como é de se esperar de um filme brasileiro, tem muitas "comunistadas" que nem existem no livro. A suposta aliança entre coronéis locais e "gringos da Lumber" é muito sublinhada (na realidade eles conflitavam porque supunham-se donos da mesma terra, cedida em duplicidade pelos governos estadual e federal). O caráter supostamente koletivo, igualitário e fraternal dos caboclos tem foco contínuo. Adeodato é apresentado como herói popular.

Por outro lado, é surpreendente que tenha sido possível produzir e lançar esse filme em plena ditadura militar — não sem muitas peripécias, conforme conta Sylvio Back em entrevistas.

Um possível motivo é o Exército ser retratado com relativa bonomia no filme; o único oficial com falas é baseado no capitão Matos Costa, que tentou uma solução negociada com os caboclos até morrer em combate. Diferente por exemplo do Araguaia de 1971, o Exército não se comprometeu ideologicamente com o Contestado. Os oficiais combatentes falavam para quem quisesse ouvir que os caboclos tinham certa razão em brigar e deveriam receber alguma terra.

Porém predominaram os "ventos do progresso": interesses econômicos da elite e do governo; desejo de ocupar formalmente a região em função do olho-gordo da Argentina (que, entre outras pretensões territoriais estapafúrdias, alega ser dona da Antártida inteira); e um medo paralisante da possibilidade de restauração da monarquia, muito arraigado entre os militares, a ponto de Floriano Peixoto mencioná-la em sua carta-testamento.