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De Peano para Gödel, parte 2 de 4

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Os axiomas de Peano são realmente axiomas?

Quem se debruça sobre estas questões, acaba topando com Peano e então cedo ou tarde vai se perguntar: será que um destes axiomas não é na verdade um teorema? Por exemplo, será que o axioma [e1] x+0=x é realmente necessário? Isto não poderia ser deduzido a partir de [e2] e outros?

No caso, [e1] é realmente necessário porque nenhum outro axioma estabelece um significado para o zero "no mundo real"; [b] fixa o zero como o primeiro número natural, e nada mais. É o axioma [e1] que realmente define zero como "nada", e por conseqüência é elemento neutro na soma.

Dizemos então que os axiomas [e1] e [e2] são independentes, ou seja, fazem afirmações não relacionadas. Um não depende do outro para existir. A operação de adição, tal qual a conhecemos, é que depende de ambos.

Mas é saudável duvidar. Às vezes é bem mais difícil provar a independência de um axioma. Um exemplo histórico é a geometria euclidiana. Seus axiomas são:

Os quatro primeiros axiomas são bastante simples e claros. Mas o quinto axioma sempre foi considerado meio "suspeito". Por 20 séculos os matemáticos desconfiaram que ele poderia ser um teorema, demonstrável com base nos quatro primeiros axiomas. Apenas no século XIX foi provado que o quinto axioma é independente dos demais.

Pode-se alterar o sistema-geometria mexendo no quinto axioma, criando novas geometrias "bizarras" ou não-euclidianas. Por exemplo, a geometria elíptica adota como quinto axioma "Não há retas paralelas". É a geometria traçada na superfície de elipses ou esferas.

Na verdade nem é tão bizarro assim, pois a Terra é uma bola e nós vivemos na sua superfície. Mapas, cartografia, navegação etc. etc. são baseados em geometria elíptica. (Basta pegar um daqueles globos de mesa, que vende-se em qualquer papelaria, para verificar que duas retas sobre a Terra sempre acabam se cruzando.)

A propósito, a geometria euclidiana é auto-consistente, ou seja, pode provar sua própria consistência. Isto é possível porque ela é "fraca", ou seja, tem menos poder expressivo que a aritmética.

Se há computadores, podemos aposentar os matemáticos?

Apesar da incompleteza de Gödel, a aritmética tradicional é um sistema bastante poderoso. Há inúmeros teoremas interessantes, baseados nos axiomas de Peano, esperando para serem descobertos.

Assim, já que temos softwares que provam teoremas, poderíamos colocar todos os matemáticos no olho da rua, e deixar softwares procurando por esses novos teoremas, correto?

Em teoria sim, mas na prática os softwares não atingiram este grau de discernimento. Alguns experimentos de inteligência artificial "redescobriram" teoremas interessantes, mas a fonte secou logo. Nenhum software produziu uma cachoeira de teoremas bonitos e/ou inéditos, apesar das grandes esperanças a respeito.

Teoremas e predicados

Teoremas não são apenas fórmulas algébricas. Eles podem ter estrutura de decisão, na forma "Se isso, então aquilo". Exemplo:

Se x é divisível por 4, então é divisível por 2.

Esta frase é sempre verdadeira, portanto é uma tautologia e um teorema. Ela permanece verdadeira mesmo quando x não seja divisível por 4, porque neste caso o teorema não afirma nada sobre o número.

Podemos supor que todo teorema no estilo "se... então..." tem um sufixo oculto:

Se x é divisível por 4, então é divisível por 2; Se não, que se dane.

Como os axiomas de Peano não falam de divisão, precisamos refrasear o teorema se quisermos expressá-lo usando a simbologia lógica:

Se x é divisível por 4, então é divisível por 2.

Se existe um z tal que o quádruplo de z é igual a x,
então existe um w tal que o dobro de w também é igual a x.

∃z: x = z . 4 ⊃ ∃w: x = w . 2

Teoremas também podem delimitar conjuntos de números, finitos ou infinitos. São os "predicados". Isoladamente não fazem muita coisa, mas podem ser reutilizados por outros teoremas. Por isso, eles ganham um "rótulo", como funções. Exemplos de predicados:

U(x): Números com um dígito
E(x): Números pares
O(x): Números ímpares
P(x): Números primos
C(x): Números compostos, ou não-primos

Precisamos esmiuçar estes predicados de forma mais explícita, de modo que sejam expressáveis com os axiomas de Peano:

U(x): x menor que 10
E(x): x é divisível por 2
O(x): x não divisível por 2
P(x): x não divisível senão por 1 ou por ele mesmo

Infelizmente, os axiomas de Peano não contemplam a operação de divisão, apenas multiplicação, então precisamos reformular um pouco os predicados em torno de multiplicações e somas:

U(x): x menor que 10
E(x): existe um número z tal que x = z . 2
O(x): não existe um número z tal que x = z . 2
P(x): x = 2, ou não há [z, w] tais que x = (z + 2) . w

Daí podemos formar, e provar, teoremas, como por exemplo "todo primo maior que 2 é ímpar", ou x>2 e P(x), então O(x).

De volta à incompleteza de Gödel

Voltando agora ao assunto da incompleteza, ou seja, do fato de que há verdades matemáticas sem provas, além dos axiomas de Peano. Há mais aspectos interessantes nisto.

Primeiro que isto encerra um aspecto filosófico, talvez até teológico, deveras importante: existem coisas que não podem ser provadas. Precisamos decidir se acreditamos nestas coisas (ou não) quando as encontrarmos. E, dependendo da nossa decisão, uma série de teoremas ou crenças derivadas vão ser válidas (ou não).

Na verdade, mesmo sem levar Gödel em conta, o simples fato de haver axiomas já é algo perturbador. Os axiomas ou postulados têm de ser aceitos sem discussão.

É como a estrutura de um edifício: os pilares se apóiam no alicerce, este se apóia em colunas enterradas com aqueles bate-estacas, mas as colunas se apóiam na terra mole. Ou talvez em rochas, que se apóiam em lava pastosa, lá embaixo. Se você cavar o suficiente, toda estrutura, material ou lógica, por mais sólida que pareça ser, acaba fazendo lama.

Outra característica da incompleteza de Gödel é que ela cria uma "escada infinita". Existem infinitas verdades não-provadas na aritmética. Se encontramos uma, não adianta admití-la como axioma, isto não tornaria a aritmética completa. Sempre haverá outra verdade sem prova, e outra, e outra.

Isto vale para a aritmética, que possui infinitos números naturais. Sistemas numéricos mais "fracos" podem estar isentos da incompleteza de Gödel.

Por exemplo, suponha um sistema numérico com apenas três números: zero, um e dois. Uma vez que adaptamos os axiomas de Peano para esta situação, não restam "verdades escondidas". Torna-se um sistema completo — porém limitado.

Um sistema inconsistente (como aquele em que adicionamos o axioma 1+1=3) também é completo, porque toda fórmula, mesmo absurda, pode ser "provada". Mas um sistema lógico onde 2=3 tende a não ser muito útil.

Enfim, são estas as limitações impostas por Gödel: ou um sistema é fraco e completo, ou inconsistente e completo, ou forte e incompleto. Apenas um sistema fraco pode provar sua própria consistencia, então temos ainda a escolha de sistema fraco e auto-consistente, ou forte mas não auto-consistente.

Se você acreditou no que eu disse sobre a incompleteza de Gödel, pode parar de ler por aqui. Se for curioso, ou não botar fé, continue lendo que vou falar de como Gödel chegou a estas conclusões.

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