Em pequenas vilas ou distritos, costuma haver fornecimento de água tratada, que aproveita aos sítios próximos. Mas, na medida que a paisagem transiciona de rurubana para rural de verdade, o cano não vai adiante.
Por outro lado, água tratada é para consumo humano, e relativamente cara (uma conta de água típica cobra R$ 80/mês por 10 metros cúbicos). Se você precisa de água em maior quantidade, para irrigação, criação de animais, encher um açude, etc. vai precisar de uma fonte de água bruta mais abundante.
Num certo sentido, água é mais importante até que energia elétrica. Em último caso, energia pode ser provida por geradores ou painéis solares. Mas não é possível fabricar água, e transportá-la por qualquer distância é super caro e complicado.
Assim sendo, em qualquer propriedade rural que você considere comprar, deve analisar antes a questão da água, de acordo com o uso que pretende dar a ela.
Sei que existem regiões onde a água é muito escassa. Vou falar da realidade de minha região, então as informações a seguir valerão apenas em parte para o seu caso.
O ideal é que uma propriedade rural tenha sua própria nascente, com volume suficiente para as aplicações imaginadas (uso humano, agricultura, pecuária).
Apesar das questões ambientais, do fato de uma nascente inutilizar milhares de metros quadrados do terreno em torno (APP de raio de 50m) a nascente é garantia de água limpa, perene e barata.
A segunda melhor opção é que haja um riozinho na propriedade cuja nascente esteja próxima, e não haja propriedade rural em uso ativo entre você e a nascente. De preferência o terreno a montante deve ser APP, uma montanha íngreme, etc. Esta água já não é mais 100% garantida, mas chega perto.
A rigor, toda água para consumo humano tem de ser tratada. Quase ninguém faz, mas é o que a norma diz. Se você arriscar usar a água sem tratamento, a chance de dar problema vai aumentando conforme a fonte se afasta do ideal. Ao menos faça uma análise periódica.
Por uma simples questão de probabilidades, é mais provável que seu sítio (futuro ou presente) não tenha água de nascente limpa. Porém, é comum que haja um rio, grande ou pequeno, geralmente na divisa. Rios são divisas naturais; as APPs das margens são computadas na reserva legal, então a tendência é desmembrar as terras de modo que cada um pegue um pedaço desse "osso".
A água desse rio serve para alguma coisa? Vai depender de quantos poluidores existem a montante. Provavelmente ela serve para irrigação e encher açude, mas não servirá para consumo humano e pecuária. Entre pastagens de vacas, agrotóxicos e bolsões de pobreza rural sem saneamento adequado, a água vai sendo "batizada" assim que sai da nascente.
Para consumo humano ou pecuária, resta então a opção de furar um poço.
Pelo menos aqui na região, é praticamente garantido que haja água subterrânea para consumo humano, seja onde for, haja a estiagem que houver. Para este uso, um poço relativamente raso e barato resolve. Já para pecuária ou outra aplicação de grande volume, teria ser ser um poço artesiano de alta vazão, mais caro.
A decisão é pelo tipo de poço, em função de custo, localização na propriedade e vazão desejada. Existem cinco tipos básicos de poços:
Poço caipira era aquele que nossos avós tinham até em zona urbana, e puxavam água com balde. Geralmente cavado manualmente, com diâmetro relativamente grande, suficiente para um homem trabalhar lá dentro. Profundidade pequena, 3 ou 4 metros na minha região. Em lugares mais áridos tipo Nordeste, onde o subsolo é firme, tais poços são muito mais profundos.
O poço caipira capta água do primeiro lençol freático em lugares que ele é raso, tipo pé de morro. Hoje em dia ele é totalmente desaconselhado, já que a água do lençol freático tende a estar contaminada. Esgotos não tratados lançados em sumidouros, poluição industrial, postos de gasolina, cemitérios, dejetos de animais, agrotóxicos...
Só dá pra arriscar poço caipira se você vive longe de tudo, se nem a sua chácara nem as do entorno lança qualquer poluente no solo. E isso é difícil, pois até você vai ter de usar sumidouro no seu sistema de esgoto (se não tem água encanada, não tem esgoto passando na rua, certo?). Eu mesmo bebi muita água de poço raso na vida, muita gente bebe, mas é complicado.
A vantagem do poço caipira é a facilidade de construção: uma vez que é cavado manualmente, pode ser feito literalmente em qualquer lugar, por mais inacessível que seja.
O próximo é o mini-poço, com o diâmetro de um cano, e mais profundo, no máximo 9m. Muita gente vende esse poço como "semi-artesiano", mas é incorreto. Esse tipo de poço também tende a pegar água do primeiro lençol freático. É um pouco melhor que o poço caipira, mas ainda é uma água suspeita.
E infelizmente tem muita gente furando mini-poço por aí, inclusive em zona urbana e áreas litorâneas, pois é barato, a água parece limpa à primeira vista, e é uma forma de fugir da conta de água. É muito comum haver mini-poços em condomínios urbanos.
O mini-poço também exige poucas ferramentas e pode ser cavado em praticamente qualquer lugar. Alguns poceiros usam brocas movidas a motor de motoserra, outros usam apenas força manual e um jato de água para ajudar.
Outra vantagem do mini-poço é poder usar uma bomba de água na superfície. A sucção máxima de uma bomba de água é 9 metros, pois uma coluna de água de 9m "pesa" tanto quanto a pressão atmosférica. O custo de furação de um mini-poço pode ser algo em torno de R$ 2.000.
O poço semi-artesiano, no jargão informal, é aquele que capta água de lençóis freáticos mais profundos, também chamados de aquíferos livres (não-confinados) porém ainda acima da rocha impermeável. É uma água com muito mais chance de ser potável, embora ainda haja chance de contaminação.
A profundidade do poço semi-artesiano vai variar muito por região, mas costuma ficar entre 20m e 80m. Seu custo será em torno de R$ 5.000. A furação exige equipamentos mais pesados, então o caminhão do poceiro terá de chegar relativamente perto do local de furação. Isto pode ser um problema se o terreno for muito acidentado.
O poço semi-artesiano tem chances muito grandes de não produzir água (50% na minha região), então escolher esse tipo é uma aposta para tentar fugir do custo do poço artesiano. Você faz um contrato de risco com o poceiro, geralmente ele dá um desconto no caso de não achar água.
De todo modo, mini-poços e poços semi-artesianos sempre têm mais chance de produzir água se furados em terreno mais baixo que o entorno. A chance da água ser potável também aumenta. O fundo de um vale é ideal, pois a água mais poluída do primeiro lençol freático tende a correr logo para o rio, "lavando" a sujeira embora.
E que tipo de bomba se usa em poço semi-artesiano? Depende do poço.
Em muitos deles, a água profunda está sob leve pressão, então ela sobe sozinha, por dentro do cano de revestimento, até aquela faixa de 9 metros em que uma bomba de superfície consegue terminar o serviço. É por isso que chamam esse poço de "semi-artesiano": ele tem pressão positiva, embora não suficiente para jorrar.
Recomenda-se então uma bomba autoaspirante e que haja uma válvula de retorno no topo do poço, assim a água jorra imediatamente quando a bomba é ligada. Sucção profunda "rouba" eficiência da bomba de superfície; sua capacidade de elevação fica prejudicada, o que é crítico se o reservatório está bem mais alto que o poço. Aquela fórmula de somar sucção e elevação para determinar o recalque não parece funcionar para poços. Se a bomba de 1/2CV parece suficiente pela tabela, escolha a de 1CV. Outra opção é usar duas bombas em série.
E se a água estiver a mais de 9m de profundidade? Até uns 40m pode-se usar a bomba injetora. Ela tem dois canos, um descendo, outro subindo. A ponteira submersa emprega o efeito venturi para "bombear água usando água". Funciona, mas a vazão é baixa e a capacidade de elevação acima do nível da bomba é quase nula. Pode-se então usar uma segunda bomba em série. O conjunto ainda é mais simples e barato que uma bomba submersa.
Para profundidades maiores, que já entram na faixa do poço artesiano, é obrigatório usar a bomba submersa, também conhecida por bomba-caneta ou bomba-palito. Ela é fina o suficiente para entrar pelo cano de revestimento do poço. A instalação fica bem mais cara, pois é preciso cabo elétrico, tubulação flexível, etc., tudo apropriado para ficar em contato com a água.
Uma vantagem da bomba submersa é que o poço fica visualmente limpo e não ocupa espaço na superfície. Outra vantagem é a grande eficiência: *muito* mais vazão e recalque por watt de eletricidade. Se por qualquer motivo a energia for cara ou escassa (e.g. uso de painéis solares), a bomba submersa é indicada.
O poço artesiano, no jargão informal, é aquele que trespassa uma ou mais camadas de rocha impermeável até atingir um aquífero confinado, o que significa profundidades enormes: 50m, 100m, 200m, 300m, até 1km. É muito provável que essa água de aquífero seja boa e potável, talvez até mineral.
Mas também pode acontecer do poço bater em camadas de água sulfurosa ou mesmo petróleo, que resultarão em água de menor qualidade. Os poceiros de cada região conhecem essas peculiaridades.
Um poço artesiano custa muito mais, em torno de R$ 500 por metro de profundidade, o que significa R$ 30.000 no mínimo, se der sorte da camada de rocha estar bem rasa.
O equipamento de furação é montado na traseira de um caminhão, então só é possível furar o poço onde esse caminhão pode encostar com segurança. Por outro lado, como o poço não tem limite de profundidade, não é tão problemático se não for furado no ponto mais baixo do terreno.
Além da qualidade da água, a vazão de um poço artesiano é muitíssimo maior que qualquer outro tipo, sendo o indicado para qualquer necessidade industrial, ou de agropecuária de maior escala.
Por último, temos o poço artesiano jorrante, o "rei dos poços", onde a água do aquífero está sob grande pressão e jorra sem bomba.
Trivia: a rigor, "poço artesiano" é aquele que jorra sem bomba de água, seja raso ou fundo. O nome vem da cidade francesa de Artois (Artésia) onde esse tipo de poço foi descoberto. A cidade de Ribeirão Preto/SP costumava ter poços artesianos por estar num ponto baixo do Aquífero Guarani. Hoje em dia, devido ao consumo maior que a recarga, o nível do aquífero na região já está a 60m abaixo da superfície, e segue descendo 1m por ano.
Como os poços artesianos "de verdade", ou seja, jorrantes, são raros no Brasil, a nomenclatura local desvia do Aurélio. Entre nós, poço artesiano é o que busca água de um aquífero confinado, e em 99.99% dos casos ele precisa de uma bomba de profundidade.
Cavar poço é, a rigor, atividade de mineração, e mexe com a água, um recurso cada vez mais escasso. Deste modo, seu uso é regulamentado. É preciso pedir autorização para furar poços - o órgão responsável é diferente em cada Estado, e a burocracia também é muito diferente em cada Estado.
Em muitos estados, o "uso insignificante" de água precisa apenas de um cadastro, não é preciso aguardar autorização. Por exemplo, perfurar um poço apenas para consumo humano familiar cai nesta classificação.
O critério exato do que é uso insignificante varia por Estado e inclusive por microrregião. Em alguns lugares, é definido pela extração máxima (por exemplo, 5.000 litros por dia), em outros é pela vazão do poço (por exemplo, 2.000 litros por hora). Em geral isso coincide com a vazão e o uso dos poços, colocando os semi-artesianos do lado "insignificante", e os artesianos na faixa dos que precisam de outorga.
Porém mesmo o uso insignificante já pede uma papelada que quase ninguém tem, e por isso todo mundo acaba desistindo do processo, e ficando clandestino mesmo.
Por exemplo, num certo Estado solicita-se o recibo de envio do CAR (Cadastro Ambiental Rural). Não serve o demonstrativo que emite na Internet. Se você adquiriu o terreno recentemente, o CAR foi feito por algum proprietário anterior. Ele é quem teria esse recibo, isso se for alguém particularmente diligente com papelada.
Aqui fica evidenciada mais uma instância daquela atávica burocracia rural, que presume que o agricultor está há 100 anos sobre aquele mesmo pedaço de terra.
A princípio o licenciamento é importante, já que a água subterrânea é um recurso limitado, e qualquer poço mal-feito pode contaminar o aquífero, prejudicando todos os demais usuários numa área enorme. Um poço abandonado ou danificado pode ficar com diversos materiais estranhos (canos, bomba, cabos elétricos) lá no fundo para sempre, em contato com a água. Então devem ser materiais que causem pouco impacto na qualidade dessa água.
Infelizmente, a regra no Brasil é o poço clandestino. Os poços pequenos são 100% clandestinos, até por desconhecimento e ausência de fiscalização, ainda que seu impacto ambiental seja pequeno. Estima-se que poços grandes sejam 50-80% clandestinos. A combinação de burocracia, custos elevados e demora na outorga encorajam a clandestinidade.
A licença ambiental e a cobrança de outorga de água são importantes por outro motivo: encorajam o descomissionamento correto de um poço seco ou desnecessário. Um poço caipira raso poderia ser simplesmente soterrado. Um poço revestido deve ser tamponado com materiais inertes e concreto para que não admita sujeira, do contrário pode prejudicar a água para os demais usuários de poços num raio enorme.