Existem diversos cadastros rurais, em nível estadual e federal. Neste artigo vou me limitar ao CCIR: Certificado de Cadastro de Imóvel Rural. Este é um cadastro federal.
O ponto principal que você deve compreender é o seguinte: INCRA e tudo que gira em torno de questões rurais, é o último bastião daquela burocracia nojenta, lerda, inconveniente, que permeava o Brasil todo até o final dos anos 1980. As regras mudam o tempo todo, a cada poucos meses; o que você ler neste artigo pode ter mudado completamente quando for a sua vez de lidar com o "sistema".
Desde os anos 80, as coisas melhoraram em muitos aspectos da vida do brasileiro. Abrir empresa, declarar impostos, lidar com a papelada de imóveis urbanos, tudo isso melhorou muito e hoje em dia não é tãão diferente de um país desenvolvido. Agora, quando a coisa envolve o meio rural, entra-se numa máquina do tempo. Vá se preparando...
Uma coisa é o registro do imóvel lá no cartório da sua cidade ou comarca. Nisto um imóvel rural é igual a um apartamento urbano; cada um tem uma matrícula, todo o histórico de compras e vendas está lá, etc. É este registro que garante sua propriedade; quem tem seu nome lá na matrícula é o dono.
Aí você tem este outro registro de imóveis no INCRA, vulgarmente conhecido como CCIR. Ali, diversos aspectos específicos do imóvel rural têm de ser adicionados: áreas de preservação, áreas de produção, áreas inservíveis, localização exata (georeferenciada), etc.
Para um ser urbano, isto soa uma enorme violação de privacidade. É como se a prefeitura quisesse saber se você tem quartos vagos em casa, quiçá para ocupar esse latifúndio improdutivo, colocando uma ou duas famílias pobres para morar com você. (Quem é mais velho vai lembrar que espalharam esse boato na eleição de 1989, para prejudicar o candidato derrotado.)
Só que o RA do INCRA significa "Reforma Agrária". Desapropriações e invasões de sem-terra não são mitos. Não vou discutir em que casos é defensável desapropriar ou invadir. Tampouco simpatizo com latifúndios improdutivos. O que estou tentando apontar, como bom ex-morador de zona urbana e cioso da minha privacidade, é que esse grau de conhecimento do governo sobre as minúcias da sua propriedade rural pode ter consequências.
Ainda falando sobre sem-terra, um dos motivos do CCIR ser separado do registro de imóveis é que existem muitas formas de ser "dono" de um sítio. Você pode ser dono no cartório, mas também poderia ser posseiro, invasor, indígena ou membro de comunidade tradicional, beneficiário de programa de reforma agrária, etc.
O CCIR pode ser consultado por qualquer pessoa no site do INCRA. Basta selecionar a cidade para fazer download de uma planilha com todos os imóveis rurais da área, incluindo as áreas, os nomes dos donos e a participação percentual de cada um. (Graças à LGPD, em 2020 os sobrenomes passaram a ser ofuscados.) Para descobrir um latifúndio potencialmente improdutivo na sua região, bastam dois cliques!
Outra fonte de consulta pode ser encontrada aqui. São arquivos-texto em formato CSV, podem ser abertos em Excel e listam absolutamente todos os imóveis rurais do Brasil.
Normalmente, um código de CCIR corresponde a uma matrícula no registro de imóveis. Mas nem sempre: o CCIR tem muitas regras próprias. Por exemplo, se um mesmo dono possui dois ou mais imóveis adjacentes, eles devem ser cobertos por um único CCIR, ainda que cruzem fronteiras municipais ou estaduais. Um imóvel grande cortado por zona urbana teria dois CCIRs, pois a área rural deixou de ser contínua.
De um certo ano em diante (2014? 2017?) o INCRA passou a exigir a renovação anual do CCIR. Ou seja, paga-se uma taxinha e emite-se um papel atestando a regularidade do CCIR. Fora isso, se o imóvel não mudou, nada muda; o papel deste ano é igual ao dos anos anteriores.
É bom não deixar o CCIR largado, pois quando você realmente precisar dele, a regularização no INCRA não vai ser instantânea, aí pode acontecer de você perder semanas ou meses.
CCIR é diferente de ITR e de NIRF. Pagar a emissão do CCIR não significa que o ITR esteja quitado!
O CCIR emitido mais recente é exigido para inúmeros aspectos da vida rural, como financiamentos, licenças, autorizações. Mesmo quem não tem produção para vender, precisa manter o CCIR regular pois sim, ele é solicitado pelo cartório no momento de vender a propriedade, e o(s) vendedor(es) constantes na matrícula do cartório precisam bater com os que constam no CCIR.
Se você pedir ligação de energia com tarifa rural, que é mais barata, precisa apresentar o CCIR e também provar que é agricultor ativo – os critérios variam, pode ser simplesmente apresentar uma nota fiscal de produtor emitida nos últimos 12 meses.
E se o CCIR ainda apresenta o nome do dono anterior da terra? Vai depender do burocrata que analisa o documento. Se ele for caxias, isto é suficiente para negar a tarifa rural. E seria possível então ligar a energia em outra modalidade? Depende do município: alguns exigem alvará de construção, habite-se ou outros documentos para ligar em modalidade não-rural.
Este é um grande problema do CCIR: sua emissão é anual, em torno de agosto ou setembro. No pior caso, você vai ficar 12 meses com CCIR desatualizado, pelo menos no tocante à titularidade, e pode topar com todo tipo de problema burocrático nesse interim, por mais que o código do CCIR não tenha mudado e a matrícula do imóvel possua o CCIR averbado.
A burocracia rural presume que coisas nunca mudam, ou mudam muito devagar. Estas situações de ovo-ou-galinha aparecem o tempo todo, e tudo fica na dependência dos burocratas analisarem suas demandas com simpatia ou não. Claro, em 12 meses no máximo o problema se resolve, mas quem vem do acelerado mundo urbano acha isso uma eternidade...
Atualizar o CCIR é uma novela à parte. Eu paguei alguém para fazer. Demorou meses, e pediram documentos que ninguém mais pede. Por exemplo, a lei diz que carteira de motorista vale como identidade em qualquer caso. E vale mesmo, até para vender imóvel e tirar passaporte. Menos no INCRA. Lá eles ainda fazem questão da identidade tradicional para atualizar a titularidade do CCIR. Dá pra acreditar?
A pandemia, ironicamente, teve um efeito "melhorador" nesse estado de coisas. Por absoluta necessidade, muitos processos relativos ao CCIR foram transferidos para a seara on-line, mesmo quando há necessidade de intervenção humana do lado do INCRA. Já é um avanço, embora pelos motivos errados. Antes da pandemia, a atualização fundiária podia custar uma viagem à capital, pois o INCRA não tem grande capilaridade de postos de atendimento.
Em tese, qualquer pessoa pode fazer um cadastro no site do INCRA e atualizar ou emitir seu CCIR. Mas pelo menos quando envolve alguma alteração (venda, desmembramento, remembramento, georeferenciamento, etc.) é melhor contratar um escritório de contabilidade ou de topografia que lide rotineiramente com estes processos e faça as vezes de despachante.
Outra mudança bem recente é a vinculação do CCIR ao NIRF. Assim como o INCRA, a Receita Federal tem seu próprio cadastro de imóveis rurais, denominado CAFIR. NIRF é o número do seu imóvel neste cadastro, e é o que você usa para declarar a terra no Imposto de Renda.
Graças à pandemia, descobriram que seria melhor unificar esses cadastros. É possível vincular o NIRF do imóvel no sistema do INCRA onde se manipula o CCIR. O processo para criar um NIRF novo a partir de um desmembramento pode ser feito 100% on-line no site e-CAC da Receita, a partir da papelada digital gerada no site do INCRA por ocasião do desmembramento do CCIR.
A ideia é que um dia haja uma relação 1:1 entre CCIRs e NIRFs, e então um dos cadastros seja extinto. Mas é melhor esperar sentado. (Lembra há quanto tempo o governo promete unificar identidade, CPF, título de eleitor e tantos outros números relativos a um indivíduo?)