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Imóvel rural: o ethos do campo

Para mudar da cidade para o campo, você deve compreender o ethos do campo, a fim de enfrentá-lo, superá-lo e suplantá-lo. E esse ethos é o seguinte: ninguém quer você aqui.

Esta rejeição não é uma conspiração coordenada. Mas ela existe: é composta por um emaranhado de leis, regras burocráticas, usos e costumes, alguns francamente hostis, outros até encorajadores na aparência, mas cujo efeito no cômputo geral é rejeitar, a priori, pretendentes a mudar para a zona rural.

E, se você superar essa barreira e conseguir estabelecer-se no campo, você vai adotar o mesmo ethos. Sem querer querendo, também vai trabalhar para que o sistema funcione. Ou seja, para que continue rejeitando neófitos.

A depender da região, o campo tem diversas características a priori desejáveis: sossego, poucos crimes, colaboração mútua entre vizinhos, nada de favelas ou ocupações irregulares, todo mundo respeita certas regras mesmo que ninguém esteja olhando.

Estas qualidades da vida do campo não emergem por acaso. A gente do campo não se comporta assim ou assado porque bebe agua de poço. É um ecossistema social, análogo a um ecossistema natural, produzido por décadas ou séculos de lenta evolução e acomodação — e cujo equilíbrio é muito delicado.

Qualquer perturbação altera este equilíbrio. Um estímulo externo poderia alterar a situação para melhor. Mas também poderia alterar para pior, e ninguém quer arriscar.

Para chegar no estágio atual, certamente muita gente saiu ou foi expulsa do campo. E nem sempre isto aconteceu por motivos justos ou métodos legais. Basta ver o que se fez aos índios, donos originais da terra.

Na cidade, o ethos é a mudança contínua e rápida, a metamorfose ambulante. É esperado que você tolere e mesmo festeje isso. Você pode xingar alguém impunemente no trânsito, porque nunca mais vai ver aquela pessoa na vida (apenas evite fazer isso no quarteirão onde mora).

A cidade é cruel, por outro lado é onde uma pessoa pode chegar sem nada no bolso e virar milionária em poucos anos.

No campo isto é mais difícil de acontecer. O filho de um lavrador empregado de uma fazenda dificilmente será fazendeiro, pois existe um abismo intransponível entre o salário de um lavrador e o preço da terra que ele lavra.

Tampouco é possível pagar a terra com os frutos dela; seja qual for o tipo de produção agropastoril praticada, o rendimento de um imóvel rural é sempre minúsculo em relação a seu preço de venda. Muito menor que qualquer aplicação financeira. A lógica financeira, no campo, é outra.

Verdade seja dita: a atividade agropastoril depende de mão-de-obra barata, quase escrava, para ser economicamente viável. O belíssimo seriado Yellowstone ilustra bem isso, quando o dono da fazenda instruía o capataz a contratar ex-detentos que não tinham onde cair mortos, e fazer deles vaqueiros (e matar os que ousavam pedir demissão). Claro, o seriado é fantasia, mas certamente tem base em fragmentos de histórias reais. E ele é ambientado nos EUA; é lícito supor que coisas muito mais graves acontecem em nossos latifúndios Brasil afora.

Esta lógica que mantém o lavrador despossuído em virtual escravidão, pode ser subvertida quando há empregos urbanos por perto. Não por acaso, esta é a força econômica do Sul do Brasil: um pé na cidade e outro no campo, criando uma sinergia entre os dois sistemas e pulverizando a posse da terra. Muita gente da minha família estendida está super bem de vida hoje porque manteve seu sítio enquanto garantia o dinheiro das despesas diárias num emprego industrial urbano.

O fazendeiro possui todo o seu capital sobre a terra, literalmente. Fora o valor da terra em si, há os equipamentos agrícolas, as sementes e mudas aplicadas na safra em curso, os adubos aplicados ao solo, os silos de forragem, os animais que valem muito mas podem morrer de um momento a outro, etc. Agricultura e pecuária são atividades que exigem muito capital, assim como a indústria. Porém, diferente da indústria onde tudo está protegido dentro de um galpão com um vigia à porta, o capital do fazendeiro está ao sol e ao sereno, espalhado sobre áreas enormes. Vigiar tudo isso o tempo todo é economicamente inviável. O único jeito de administrar esta situação é mediante um pacto social de confiança mútua (e vigilância mútua).

Na minha opinião, a maior vantagem da cidade é o anonimato. Você é só mais um rosto anônimo na multidão, e existe uma expectativa de respeito à privacidade. No campo, é o inverso.

Para início de conversa, o INCRA publica na Internet a lista de TODOS os imóveis rurais, os nomes dos respectivos proprietários, tamanho em hectares, até mesmo a fração de cada condômino se o imóvel tiver mais de um dono. Se não acredita, confira aqui e aqui.

Você sabia disto? Para muita gente, é uma quebra intolerável de privacidade.

Agora, um exemplo mais prático. Cria-se um condomínio rural, daqueles que vendem chacrinhas de 10.000, 5.000, 2.000, às vezes apenas 1.000 metros quadrados, ou seja, não maior do que o quintal de uma casa urbana há uma geração atrás. O perfil típico de quem compra uma chacrinha dessa, é o sitiante de fim-de-semana.

Você acha que os fazendeiros do entorno vão gostar disso, ou não?

Do ponto de vista de um ser urbano, deveriam gostar, pois o condomínio rural "traz o desenvolvimento". Este é um modo tipicamente urbano de pensar. Se você mora num bairro meia-boca e ele começa a receber obras de vulto, como prédios ou geminados, logo virá uma escola particular, um supermercado bom, ou mesmo uma padaria onde não havia nenhuma, e a tendência é gentrificar. Seu imóvel vai valorizar, as ruas serão mais bem cuidadas e pavimentadas, a polícia passa a fazer rondas mais frequentes, o bairro passa a atrair moradores de nível sócio-econômico-cultural melhor, criando um círculo virtuoso. Até os bandidos do bairro vão fazer questão de manter a paz e a ordem no entorno, pois ali moram a mãe dele, a mulher dele, a filha dele.

No campo, as coisas vão se desenrolar de forma diferente. Não vai abrir padaria só porque há um condomínio rural por perto. Os moradores fixos vão continuar tão isolados quanto antes.

Por outro lado, a estrada precária vai ser utilizada por muito mais gente que antes, pois os "sitiantes" vêm sábado e vão embora domingo, levantando uma poeira que você nem imagina. O preço do hectare tende a subir, pois quem for vender terra, vai querer receber proporcionalmente ao que pagaram por aquele "sítio" de 2.000 metros. Hábitos antigos como usar servidões para cortar caminho serão abusados pelos novos transeuntes, e por consequência abolidos. Os lavradores que trabalhavam por uma ninharia vão preferir ser caseiros ou realizar trabalhos avulsos para o pessoal do condomínio, que paga muito melhor e não exige performance sobrehumana.

Em resumo, haverá muitas mudanças, que do ponto de vista dos locais serão quase todas para pior.

Um fenômeno parecido pode ser observado em cidades litorâneas, onde os veranistas desalojaram populações tradicionais que viviam da pesca. A cidade gentrifica, mas também perde as características bucólicas que lhe faziam atraente em primeiro lugar.

Pior: algumas viram wastelands cheias de casas de veraneio desocupadas 99% do tempo, sem PIB local suficiente para sustentar bons serviços públicos e privados. Porém os imóveis permanecem caríssimos, inacessíveis aos nativos, que nem mesmo conseguem alugar uma casa pois os senhorios preferem alugar por temporada via AirBnB.

O homem do campo também receia que essas coisas lhe aconteçam. Mas ele contra-ataca; e diferente de pescadores, quilombolas e outras comunidades tradicionais, ele tem o "Sistema" como aliado.

Apesar do condomínio rural ser um fato consumado e já fazer parte da paisagem por décadas, a legislação ainda ignora sua existência. Do ponto de vista do Estado, só existem dois tipos de imóvel: rural e urbano.

No imóvel rural, só deveria existir o homem do campo estereotipado, com um palheiro no canto da boca, vivendo uma vida rústica numa casa simples, com acesso precário, sem pretensões de alta escolaridade, dando graças a Deus se chegou a energia elétrica. Internet então, isso é o luxo máximo.

No meio rural só se espera que esteja vivendo o agricultor ou pecuarista profissional, que é descendente de agricultores tradicionais. O sistema fica "maluco" quando tem de lidar com qualquer situação diferente desta. O dirigismo é tão grande e pervasivo que estão negando aposentadoria rural a pessoas gordas! Afinal, agricultor de verdade tem de ser magro, pobre e queimado de sol...

Em muitas situações burocráticas, pede-se o documento A, tem como pré-requisito o documento B, que por sua vez pede o documento A... para quem vive desde sempre no campo, isto não é um problema porque o agricultor obtém o documento A dos pais dele, de quem ele vai herdar a terra. Mas, para o chegante, mesmo endinheirado, começar o ciclo é mais difícil.

E quem não se encaixa no perfil de agricultor profissional? Ah, esse tem de viver apinhado na zona urbana.

A rigor, um lote rural não pode ter menos que a "fração mínima de parcelamento" ou FMP do INCRA, que no Paraná é 20.000 metros quadrados (2ha), em cada Estado este tamanho é diferente. (A FMP também é chamada de "módulo rural", mas a rigor o módulo rural é diferente e maior que a FMP em cada região.) Um condomínio rural 100% regular que venda lotes menores que isso, tem de estar na zona urbana! Dá vontade de rir, mas é verdade.

E dois hectares é terra pra c**** para quem não é agricultor profissional. É quase impossível manter tudo isso cercado e mais ou menos limpo. Mal você fincou o último mourão de cerca, o primeiro está apodrecendo. Para quem deseja apenas morar na zona rural, vivendo uma vida simples, trabalhando remotamente, ou mesmo praticando agricultura amadora de subsistência, 5.000 metros já é um bom pedaço de chão.

É possível inserir a gleba do condomínio rural na zona urbana, peticionando à prefeitura, fazendo um projeto etc. mas é um processo absurdamente burocrático e demorado, principalmente se a gleba não estiver adjacente a uma zona urbana preexistente. O resultado é que lotes dentro de condomínios rurais 100% legalizados custam uma fortuna.

Uma alternativa adotada por muitos para burlar esta divisão brusca, é comprar uma fração ideal de terreno rural. A matrícula no Registro de Imóveis e no INCRA continua sendo uma só, mas com vários condôminos ou sócios, por assim dizer.

Nada impede um grupo de pessoas não-relacionadas entre si serem sócias em um imóvel, seja urbano ou rural. E na verdade a fração ideal é amplamente praticada mesmo em grandes propriedades; não é incomum alguém ser dono de 20ha dentro de uma terra de 100ha. Por ser uma fração ideal, a localização exata destes 20ha não pode ser escriturada; isto é convencionado entre os sócios.

Além da necessidade dos "sócios" entenderem-se bem, a venda de frações ideais menores que a FMP tem sido alvo de retaliações de todo gênero por parte do poder público. Em algumas regiões elas são mais toleradas, em outras não se consegue nem ligar energia elétrica. As regras variam por Estado e por Município, vão se alterando com o tempo, e muito depende de regras não-escritas, de como os locais interpretam a lei.

"Ah, se você quer morar no campo, compre um lote de tamanho maior que a FMP, então!". Sim, isto seria o ideal, mas terra é cara. Terra razoavelmente próxima de um núcleo urbano é mais cara ainda. Os condomínios rurais, legais ou não, continuam a existir e proliferar, adicionando mais um fator de inflação.

Outra frente da reação contra o êxodo rural inverso, é a legislação ambiental. Ninguém dá bola para o que fazendeiros preexistentes fazem ao meio-ambiente. Há aquele conceito de "ocupação consolidada" que isenta quaisquer danos ambientais antigos, mesmo que de vulto, mesmo que continuem produzindo efeitos deletérios, como a ausência de mata ciliar.

Agora, no exato momento em que você tentar estabelecer a sua fazendinha, surge uma pilha de exigências ambientais. Desta sina ninguém escapa, nem sítios "normais" nem condomínios rurais 100% legalizados.

E qualquer um pode alegar uma suspeição de dano ambiental a qualquer tempo para negar-lhe um serviço essencial. Basta alguém não ir com sua cara, ou desejar que naquela área não surja mais nenhuma casa. Claro, pode-se recorrer ao Judiciário, geralmente com sucesso se sua demanda for razoável, mas isto custa tempo e dinheiro.

Dos casos que estudei, lembro de um em que a companhia de energia negou-se terminantemente a ligar a luz para um morador de condomínio rural legal, com dezenas de vizinhos já servidos por eletricidade, casa com alvará de construção e habite-se... a companhia simplesmente alegou que faltava um "estudo de impacto ambiental da rede elétrica do condomínio"... e aí? como faz? Que estudo ambiental seria necessário para fincar postes numa área já legalmente loteada?! No fim o cidadão ganhou na Justiça o direito de receber luz, depois de longos meses, decerto à luz de velas.

Idem quanto à observância de outras posturas locais, não apenas ambientais. Os locais pintam e bordam; já um "estranho" será imediatamente denunciado ou detectado. Na área em que estou, a regra era construir casa sem alvará de construção. Enquanto eram "nativos" fazendo isso, ninguém dava bola. Quando notaram que forasteiros da cidade grande estavam comprando sítios e chácaras, a prefeitura passou o lápis geral. Só no meu QTH, o fiscal veio três vezes! (Não, não fui multado pois estou ciente da minha condição de forasteiro e só comecei a construir com alvará em mãos.)

Sobre a questão do anonimato e da privacidade, gostaria de dizer mais algumas palavras para você regular suas expectativas. A interdependência entre vizinhos no campo é a regra.

É por isso que até pessoas estranhas se cumprimentam no estradão. Se você é um animal urbano mas já dirigiu no estradão, deve ter notado isso, e estranhado, assim como eu estranhei das primeiras vezes. O motivo é simples: na zona urbana, se você chamar a polícia, os bombeiros ou o SAMU, eles chegam em 3 minutos. No campo, pode demorar horas.

Por conta disso, existe uma expectativa de ajuda mútua, mesmo entre completos desconhecidos. Se atolar o carro numa valeta, ou se machucar feio, num lugar que nem pega celular, há duas alternativas: caminhar 20km, ou pedir socorro no sitiante mais próximo.

(Isso já me aconteceu, embora numa circunstância um pouco diferente: caçando estações ferroviárias abandonadas no meio do nada, atolei o carro . Tive de incomodar um sitiante próximo, que me levou a outro, que me levou a um terceiro, que tinha trator. Ainda teve a vergonha final de chegar no hotel todo sujo de barro e lama, pois não tinha uma muda de roupa.)

O reverso da moeda é que você também pode ser solicitado a ajudar. Por conta dessa possibilidade, os seus vizinhos vão procurar saber quem você é (e você também fará o mesmo, se for esperto). Por força da necessidade e das circunstâncias, as pessoas do campo serão mais abelhudas em comparação às da cidade.

Na mesma linha, não adianta ter alarme e câmera na casa se a polícia demora 1h pra chegar. Nesse tempo o ladrão já foi e voltou 10 vezes. O antídoto é cada um ficar de olho em movimentações de estranhos. Sitiantes mais experientes certamente estão armados. Isso tem um lado B: um morador novo será automaticamente visado, até que se integre à paisagem. O zelo e a desconfiança dos locais são interpretados como preconceito pelos cosmopolitas.

Também não se chama a polícia por qualquer desentendimento com vizinho, ou para um invasor de propriedade que não demonstre agressividade (geralmente alguém que apenas atravessou uma cerca para cortar caminho ou para pescar num lugar melhor). Primeiro, porque a polícia não vai chegar a tempo. Segundo, porque criará um ressentimento que pode custar caro lá na frente. É preciso usar de diplomacia.

No campo, as cercas e limites são "permeáveis". Noves fora comportamentos abusivos, é normal trespassar limites de propriedade em situações consideradas "legítimas" pelos locais. Caçadores, passantes pegando um atalho, curiosos, alguém querendo colher umas frutas ou pescar uma piaba, adolescentes acampando (eu mesmo já acampei "clandestinamente" em sítios e reflorestamentos, no meu tempo de escoteiro-cicloturista), o cachorro ou gato de um vizinho passeando no seu quintal — são coisas que você terá de tolerar.

Vou explicar a lógica dessa tolerância usando um paralelo biológico. O leite cru, saído da teta da vaca, sempre azeda e vira coalhada à temperatura ambiente, pois está cheio de lactobacilos. Parece nojento, mas é uma proteção e uma garantia que o leite "apodrecido" continua comestível. Dificilmente um microorganismo hostil tem chance, pois os lactobacilos já ocupam o espaço. Por outro lado, leite pasteurizado exposto ao ambiente vai apodrecer de verdade, pois será uma cultura de qualquer microorganismo aleatório que estiver por perto.

Da mesma forma, a "fauna" típica das pessoas que eventualmente trespassam os limites da sua propriedade rural, são como lactobacilos: são inofensivos, são parte da comunidade local, e são olhos e ouvidos adicionais que darão o alerta caso vejam algo estranho, ou um agente hostil.

A pergunta é a seguinte: você está preparado para esta mudança de paradigma?