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Imóvel rural: por que tantos imóveis enrolados

Não deve passar uma semana sem que algum meio de comunicação fale de "regularização fundiária". Devido à burocracia e também a alguns maus hábitos dos brasileiros, existe uma quantidade enorme de imóveis "enrolados".

Existem inúmeras formas de um imóvel ficar com documentação irregular. Num imóvel rural, basta deixar de emitir CCIR por um ano. Porém a mais importante irregularidade é a discrepância de titularidade: o dono de fato não é o dono de direito. Estima-se que 35% dos imóveis, entre urbanos e rurais, estejam nesta situação. Se considerar irregularidades menores, tipo não ter averbado uma construção, chega a 50%.

O imóvel enrolado é ruim para todo mundo. O mais prejudicado é o próprio dono de fato, pois terá dificuldades de revender o imóvel, quando for conveniente ou necessário liquidá-lo. Uma vez irregular, o imóvel tende a continuar irregular porque o custo de arrumar a papelada vai subindo exponencialmente.

Depois de décadas, pode ser necessário um remédio judicial como ação de usucapião ou adjudicação para consertar as coisas. Tudo tem jeito na vida, mas novamente há um custo de tempo e dinheiro.

Um fator que encoraja a informalidade afeta igualmente imóveis urbanos e rurais: o alto custo de transação. ITBI, FRJ (em alguns Estados), escritura, averbação no registro de imóveis, comissão do corretor... Proporcionalmente, são custos que pesam mais sobre imóveis baratos que sobre imóveis caros.

Criou-se então a cultura de transacionar com contrato de gaveta, e isto abriu a porteira para diversos outros desvios, tipo vender imóvel antes de concluir processo de inventário ou de revisão de limites. Disseram que o negócio ia se resolver em três meses, mas levou 20 anos, quando então os vendedores já morreram e não podem assinar a escritura. E começa tudo de novo, com o contrato de gaveta embolado no meio do novo inventário.

Isso quando não acontece de venderem o mesmo imóvel três vezes, tudo no contrato. Ou de um herdeiro discordar da venda e aproveitar-se da fragilidade do instrumento contratual para tentar roubar ou extorquir o pobre comprador.

Uma coisa que você vai notar logo: quando VOCÊ vai tentar VENDER um imóvel, vão acontecer duas coisas: a) vão exigir que a documentação esteja absolutamente em ordem, e b) vão oferecer toda sorte de escambo: carro velho, terreno inservível, cabra, galinha, cachorro, etc. Oferecer picape velha pelo dobro da tabela FIPE é praticamente uma tradição já.

Agora, quando você tenciona COMPRAR imóvel, a coisa inverte: todo mundo quer receber sinal de 10%, 20%, 50% em dinheiro. E vai tentar te empurrar imóvel no contrato, imóvel com inventário correndo, com problemas de limites...

Enfim, seja comprando ou vendendo imóvel, você vai ficar impressionado com a quantidade de rolistas que aparecem.

Às vezes, é possível comprar barganhas nesta situação. Toda cidade tem pelo menos um "Tio Patinhas" agiota ou dinheirista que ficou rico dessa forma: comprando encrencas para consertar e revender com lucro. Isso é possível porque o Tio Patinhas é safo, sortudo, tem capital e paciência. Não raro ele tem fama de bravo, o que desencoraja os vagabundos de plantão.

Pode acontecer que caia um negócio bom desses no seu colo; os vendedores são honestos, precisam vender na bacia das almas, explicarão com sinceridade que o inventário vai demorar, e no fim você dá sorte e não demora nada. Mas isto é raro. A tendência normal é tudo correr pior que o esperado, e de haver pegadinhas ocultas.

Na zona rural o problema é amplificado, pois é muito mais fácil um imóvel ficar com a papelada em desordem, impossível de vender "de papel passado", ao menos imediatamente. NIRF, ITR, CCIR, CAR, multa ambiental, briga com ex-caseiro, briga por servidão de passagem, dúvidas de limites, falta de georeferenciamento — todos problemas que na zona urbana você simplesmente não tem.

É comum um sitiante vender um pedaço da terra para fazer caixa. Só que nem todo desmembramento é exequível no papel. Desmembramento é um processo caro, e custa quase o mesmo para vender 1 hectare ou 50 hectares, então a tendência natural é vender aquele 1 hectare no contrato de gaveta. Isto é comum de se fazer com terras na iminência de entrar para a zona urbana, quando então será mais fácil desmembrar, sem estar sujeito à Fração Mínima de Parcelamento. Porém, se acontecer qualquer evento (morte, casamento, divórcio) com os envolvidos, o rolo engrossa.

No campo também existem muitas posses: invasão de terras públicas, invasão de terras indígenas, de margens de rios federais, que são terras de marinha (rio federal é aquele que passa por mais de um Estado), assentamentos de reforma agrária que não podem ser vendidos antes de um certo prazo. Mas nada disso impede que tais posses sejam negociadas. Sendo terras muitas vezes com CCIR e aptas para produzir, sempre há quem compre, seja por oportunismo, seja porque se deixou enganar.

O georeferenciamento do INCRA, que tem sido exigido para terras cada vez menores e deve cobrir absolutamente todas elas até 2025, evita um problema antigo, historicamente muito comum: duplicidade de títulos sobre uma mesma terra. Se você tentar cadastrar um CCIR hoje cujo mapa sobreponha outra gleba, não vai passar. Ao menos para isto o CCIR serve bem. (Dentro das zonas urbanas, os municípios têm feito esse mesmo trabalho há algumas décadas, pois antes disso também acontecia na cidade de um terreno ter 2 ou 3 pretensos donos.)

Um dos motivos do atávico atraso econômico na região do Contestado é justamente este: irregularidade fundiária. Na época da Guerra do Contestado, o governo de SC cedeu a terra pro coronel João, o governo do PR cedeu pro coronel Pedro, o governo federal para a empresa Percival, tudo isso à revelia do posseiro Tiago que seria o legítimo dono se o usucapião fosse respeitado.

Naturalmente, isso levou a décadas de discussões e conflitos, até na base da foice e da bala, que só puderam ser considerados resolvidos no início dos anos 1980.