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Imóvel rural: servidão de passagem

Na zona urbana, "servidão" é sinônimo de rua sem saída. Algumas têm nome (logradouro público), outras são particulares. Uma servidão particular existe para dar acesso a um imóvel encravado.

Imóvel encravado é aquele sem acesso direto à rua. Alguns o chamam de "enclave", mas a rigor um enclave tem um único vizinho circundante. Para ter acesso ao imóvel encravado, há dois remédios: a passagem forçada e a servidão de passagem.

A passagem forçada faz parte do direito de vizinhança. Considerando o caminho mais natural e fácil, o(s) vizinho(s) entre o imóvel encravado e a rua devem dar direito de passagem, mediante "indenização cabal". A lei é propositadamente vaga, pois existe a expectativa que os vizinhos resolvam a questão de comum acordo, sem recorrer à justiça. Se acontecer do imóvel deixar de ser encravado (talvez por ter sido construída uma estrada nova) os vizinhos não são mais obrigados a dar passagem.

A servidão de passagem é semelhante, porém é registrada na matrícula do imóvel. Por este motivo ela é considerada permanente, e não deixa de existir só pelo fato do imóvel encravado ter encontrado saída direta para a rua. Pode muito bem ser que a saída via servidão ainda seja mais conveniente.

Na zona urbana o imóvel encravado é mais difícil de encontrar, pois há diversas leis e normas que (sabiamente) desencorajam a criação deles pelo desmembramento. Por exemplo, ao realizar um loteamento, é preciso doar ao município as faixas de terras necessárias para construir as ruas.

Muitos imóveis urbanos que parecem encravados na verdade possuem uma tira de terra para a rua particular de acesso, que parece com uma servidão, mas não é. Embora ainda sejam chamadas informalmente de "servidões" pelo povo.

Na zona rural o imóvel encravado é mais comum, e não há tanto embaraço legal para que novas matrículas encravadas sejam criadas.

Isto acontece no mundo todo. Todo idioma tem uma versão daquele ditado "Deixe a porteira sempre no mesmo estado que encontrou. Se estava aberta, deixe aberta; se estava fechada, deixe fechada".

É particularmente comum em áreas montanhosas, onde mesmo uma pequena propriedade pode tomar toda a largura do vale de acesso. Na nossa região, também é relativamente comum haver propriedades ensanduichadas entre reflorestamentos gigantes e acidentes geográficos (rios, montes).

Ainda mais que em outras modalidades de vizinhança rural, a boa convivência entre vizinhos é crucial quando há imóvel encravado na jogada. Uma vez que há muitos critérios subjetivos na lei, é muito fácil para um vizinho prejudicar o acesso do outro, até de forma velada, direcionando para um caminho que não passa automóvel, ou que um caminhão não sobe.

Beeem antigamente, a passagem forçada era a regra, amplamente aceita, até porque as estradas públicas eram poucas. A casa dos meus avós era "invertida", com os fundos para a rodovia e a frente ajardinada olhando para o nada, pois na época da construção o acesso principal (através de diversas outras propriedades, até a única estrada da região) era daquele lado, e Juscelino ainda era um reles deputado.

A disposição interna do rancho deles também era curiosa, pois cobria um segmento da passagem forçada, sendo aberta dos dois lados, prevendo que terceiros podiam passar por ali, buscar abrigo, ou até pousar. Com o tempo o galpão ganhou portões e tramelas, mas meus avós insistiam em manter o "caminho" interno relativamente livre, mesmo décadas depois da última carroça ter pedido passagem. Isso à custa de enorme perda de área coberta útil. Minha gente era bem teimosa...

Certamente a manutenção da estrada terá de ser cotejada entre os diversos usuários, aí a necessidade, a disponibilidade, e os critérios de cada usuário serão um pouco diferentes.

Quem usa a passagem deve ter sensibilidade porque está, no frigir dos ovos, negando o uso de muitos metros quadrados do vizinho de passagem, além de estar dividindo ao meio a terra dele. Uma forma de remediar isso é arcar com uma fatia maior dos custos de manutenção.

O que mais acontece é: os vizinhos originais tinham um entendimento, aí as terras vão sendo vendidas ou herdadas, e os novos donos não se entendem mais. Não raro o pedaço encravado foi desmembrado do imóvel circundante e cedido a um conhecido, por questão de herança, acerto comercial ou pagamento de dívida. Mas o uso da terra vai mudando conforme sucedem os donos, perturbando os termos tácitos do acordo original.

Por exemplo, alguém compra uma terra encravada e começa a alugar para eventos. Entram lá 200 carros a cada fim-de-semana. Isso enquanto os vizinhos de passagem são agricultores típicos, que criam gado solto ao longo da estrada de passagem. Vai dar bolo, e todos terão motivos para descontentamento.

Sim, existe lei, em tese o direito de passagem não tem modulações. Se eu fizer uma rave e convidar 500 pessoas, o vizinho teria de dar passagem. Mas a lei na zona rural "vale menos" que na zona urbana, digamos assim. A coisa não é como na cidade, onde a polícia chega um minuto depois que você chama, às vezes para apartar uma simples briga de comadres. A interdependência na zona rural é muito maior – e um vizinho hostil pode causar infinitamente mais problemas. A polícia só vai dar as caras quando houver um cadáver para o IML.

E existe a questão da razoabilidade: nem eu nem você gostaríamos que hordas de festeiros atravessassem nossas terras para ir fazer rave no sítio encravado entre nossa casa e um paredão de montanha, com a música alta fazendo eco contra a rocha durante a noite toda.

Por isso, para o bem de todos, o ideal é não adquirir imóvel rural encravado, bem como evitar imóvel em que haja vizinhos encravados "por trás" dele. Na pior das hipóteses, tem de ser possível construir outra saída direto para a rua, a passagem forçada servindo apenas para começar os trabalhos.

Um sítio encravado ensanduichado entre um reflorestamento e um grande acidente geográfico (rio, montanha) poderia ser aceitável, já que reflorestamento não tem muita presença humana, e as estradas internas de um reflorestamento não costumam ter porteiras. Mas sempre lembre que o reflorestamento pode ser vendido...

Se você está decidido a comprar um imóvel encravado, pense bem se você e seus vizinhos "pensam parecido", pois isto vai facilitar muito o entendimento mútuo.

Por exemplo, se os vizinhos criam gado e você comprar um sítio encravado para criar gado, a convivência fica mais fácil, pois o perfil de uso dos caminhos é parecido, algumas obras como mata-burros nas porteiras são empresas comuns. Pode até haver algum ganho de escala, por exemplo uma fonte de água ou poço artesiano são obras caras, mas diluindo entre vizinhos fica viável.

Outra encrenca envolvendo imóvel encravado é a energia elétrica. Cada concessionária tem um critério sobre as questões envolvidas: a) onde fica o medidor? b) burocracia e permissões para passar a linha pela terra de outra pessoa; c) custo da linha de transmissão, e sua divisão entre usuário e concessionária; d) prazo de instalação.

O mesmo quanto a Internet, se for de fibra ótica ou exigir antenas intermediárias.

Outra faceta da passagem forçada é a água. Por exemplo, se você está entre um vizinho e uma fonte da qual este último queira bombear água, e supondo é claro que haja permissão e outorga da água, você é obrigado a dar passagem aos condutos. Você pode insistir numa instalação correta, enterrada ou bem oculta, que não bloqueie seus caminhos, etc. mas tem de dar passagem para instalação e manutenção. Servidão de água é considerada mais intrusiva que de eletricidade, pois não pode ser aérea.