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Nós e amarras

Em primeiro lugar, quero deixar registrado minha profunda gratidão ao Movimento Escoteiro, e em particular ao amigo Humberto (HCB) por ter me convidado a ingressar no escotismo, e ao chefe Mário pela recepção calorosa e liderança pelo exemplo. Por diversos motivos, todos pessoais, não fui um grande escoteiro, mas aprendi muita coisa que descobri ser deveras útil e construtiva conforme os anos foram passando.

Figura 1: Direto dos anos 1990: Guia Sênior, publicado pela UEB.

No escoteiro, foi onde tive o primeiro contato com nós, amarras e trabalhos em cabos. Depois, tive uma febre de interesse por marinharia, onde essa cultura ainda é muito forte. Um veleiro é uma coleção de partes soltas; tudo é mantido unido por cabos e amarras, inclusive o mastro.

Tanto no escoteiro quanto na marinharia, existe um certo "cargo cult" no tocante a nós e amarras. Valoriza-se a decoreba de centenas de nós complicados, um para cada situação diferente.

Os nós clássicos são concebidos para cabos tradicionais: grossos, torcidos, de fibras naturais e estáticos (sem elasticidade). No mundo real o que se vê são cabos sintéticos, trançados, mais finos, e algo dinâmicos (com alguma elasticidade).

No escoteiro (pelo menos no meu tempo) trabalhávamos muito cabo de sisal fino, inclusive para fazer pioneirias. Até por ser um material natural e biodegradável, simplesmente cortávamos os cabos na hora de ir embora, o que não encorajava uma cultura de nós fáceis de desfazer.

Neste ponto a marinharia ensina melhor, pois as caravelas tinham de se virar com os meios de bordo por meses a fio. Os caminhoneiros também são uma boa referência, pois têm de prender e soltar cargas o tempo todo, com a expectativa de reaproveitar os cabos inúmeras vezes. (Hoje em dia a lei obriga o uso de cintas com catracas, e a arte da amarração caminhoneira só pode ser praticada na fixação da lona.)

Aprendemos no escoteiro que "nó direito para emendar dois cabos de mesmo diâmetro, nó de escota para emendar cabos diferentes". Na realidade, o nó direito deve ser evitado a todo custo, ficando restrito ao sapato e às costuras. O nó de escota tampouco é 100% seguro para cabos sintéticos ou com grande diferença de diâmetro, casos em que se deve usar o nó de escota duplo.

Figura 2: Com a palavra, Eric Tabarly, o legendário velejador francês. (Foto de página do livro Guia Prático de Manobra.)

As pessoas gostam do nó direito porque ele é constituído de duas meias-voltas, e a meia-volta é um nó simples, que todo mundo conhece. A meia-volta tem uma grande vantagem: segura por atrito imediatamente, o que é útil ao amarrar o sapato, e ao realizar costuras e falcaças. Enquanto você faz a segunda laçada, o primeiro nó segura as pontas, literalmente.

Afinal, o que faz de um nó um bom nó? Ele deve:

O nó direito é conhecido por "morder": vira um nó cego, impossível de abrir. Alguém poderia dizer que isso não importa para um amador, basta passar a faca e comprar mais cabo. Mas não é uma solução nem elegante nem sustentável.

O amador também tende a achar que nó cego é mais seguro. Pelo contrário: um nó cego distorce e enfraquece o cabo.

Um bom nó segura pelo atrito, seja com um objeto fixo ou com o próprio cabo. Algumas amarras de atracação simplesmente passam o cabo várias vezes em torno de um cabeço. E sim, isto é suficiente para manter o barco no cais por tempo indefinido.

Figura 3: Prendendo um barco ao cais sem fazer propriamente nenhum nó. Foto de página do livro Marinharia e Trabalhos em Cabos, de Colin Jarman et al.

Pelo menos, todo mundo concorda que o nó mais útil é o lais de guia (bowline em inglês). Ele forma um laço fixo (que não corre) e possui todas as qualidades de um bom nó. Na hora de resgatar uma pessoa da água ou do gelo, um laço fixo é muito melhor que um laço corrediço ou um cabo liso.

Com base no lais de guia, podemos ainda:

O lais de guia possui algumas variantes (duplo, Yosemite, holandês, etc.) e inúmeros métodos de execução; alguns levam menos de 1 segundo! Tire um tempo e aprenda a fazer este nó, que você não vai se arrepender.

Vídeo que ensina diversas formas de fazer o lais de guia, inclusive diversas variantes.

O defeito que pessoalmente encontrei no lais de guia é que ele não deve ser tracionado pelo chicote (ponta solta do cabo). Isto distorce o nó, e pode desmanchá-lo depois de alguns ciclos. Também é muito recomendado que o nó seja bem apertado e pareça "bonito", simétrico, antes de ser colocado em serviço, do contrário ele também desmancha.

O pessoal de alpinismo não é muito fã do lais de guia, inclusive ele é banido para fins de alpinismo em alguns países. Isto significa que o lais de guia é ruim? Na minha opinião, não. Alpinismo é uma escola à parte, com cabos e técnicas diferentes do que usamos aqui embaixo.

O problema do lais de guia no alpinismo (e em outras situações) é a tendência de desmanchar com cargas cíclicas e cabos dinâmicos. No vídeo mais acima, algumas variantes (duplo, Yosemite, etc.) são sugeridas como remédio. Porém, as variantes trazem seus próprios perigos e.g. este vídeo mostra que o lais de guia Yosemite é destruído se for apertado do jeito errado.

Para o amador, acho mais negócio saber fazer apenas o lais de guia convencional, mas saber mesmo, até de olhos fechados, e tendo em mente suas limitações. Não adianta "conhecer" inúmeras variantes engraçadinhas só para errar na hora H.

O segundo nó mais importante é o volta de fiel (clove hitch), mas não pelo motivo que se alega. A volta de fiel consiste de dois cotes simétricos, formando um Z, alguns o chamam mesmo de "nó em Z".

No escoteiro, aprendemos que a volta de fiel é boa para fixar um cabo a um ponto fixo, mas isto não é bem verdade. A volta de fiel tende a soltar quando tensionada apenas de um lado.

Isto pode ser corrigido ancorando o chicote com outra volta de fiel (no mesmo ponto fixo, ou em outro próximo). Mas então seria melhor usar logo um nó apropriado, como a volta redonda e dois cotes.

Acho a volta de fiel importante porque é uma forma excelente de arrematar ou proteger outros nós, inclusive o chicote da própria volta de fiel, conforme vimos acima. Muitos nós são arrematados com um cote (também chamado de meia volta de fiel nesse contexto), uma volta de fiel (também chamado de dois cotes), ou até uma volta e meia de fiel (três cotes).

Os dois cotes que terminam a volta redonda e dois cotes, são nada mais que uma volta de fiel sobre o vivo. E você pode fazer mais voltas de fiel ou cotes adicionais com o chicote restante — tantos quantos a sua desconfiança exigir.

Outro nó muito útil é o constritor, bom para amarrar a boca de um saco, um plástico protetor em torno de um cano, etc. Menciono-o aqui pois a execução é parecida com uma volta de fiel, e pode mesmo ser entendido como uma volta de fiel com um movimento a mais na finalização.

O terceiro nó que um amador deveria aprender é o nó carioca ou nó de caminhoneiro. Ele é usado para prender uma carga na caçamba de uma picape ou no teto de um carro, tensionar um cabo entre duas árvores (e.g. para fazer varal ou estender um toldo), e até mesmo para erguer ou puxar um objeto muito pesado. Serve ainda como amarra de tensão regulável para as pontas do toldo, ou de qualquer pioneiria sustentada por estais.

Não tem nada mais deprimente que ver alguém tentando prender uma carga, puxando o cabo com toda a força até ficar esbaforido, arrematar usando dez meias voltas mordidas, para descobrir no final que ficou tudo frouxo.

Excelente vídeo que ensina fazer o nó carioca de três maneiras: canônica, com volta de tortor e com meia-volta em duplo.

O nó carioca forma um moitão ou "roldana sem roldana", que dobra a força; e também cria atrito para que não afrouxe durante o arremate. Se necessário, o nó carioca pode ser dobrado ou triplicado, multiplicando a força por 4 ou por 8. O arremate pode ser feito com um cote junto do nó principal, ou mesmo uma volta de fiel, que os profissionais sempre passam em duplo para "gastar" todo o chicote e ficar fácil de soltar.

A forma canônica do nó carioca usa uma amarra denominada "catau" para formar o laço de moitão no meio do vivo do cabo. O catau nunca morde, e é possível executar o nó de modo que o chicote já termine passando pelo moitão, em vez de ter de passar a ponta manualmente. Porém, o catau se desfaz se a tensão for removida, e pode desmanchar se não for bem-feito. Também é inseguro se o cabo for fino ou escorregadio.

Para quem não é caminhoneiro e não faz nó carioca todo dia, e provavelmente trabalha cabos de 10mm ou mais finos, é melhor ficar com alguma versão "bisonha" do nó carioca, que forma o moitão usando volta de tortor, nó de aselha, ou aselha em oito. A volta de tortor tem a menor chance de morder.

Uma alternativa ainda mais simples, se você tiver bastante cabo, é passá-lo em duplo pelos dois pontos de amarração, formando dois laços, um por dentro do outro. Isto multiplica a força por 4, portanto pode até ser melhor que o nó carioca, se você precisa prender um objeto o mais firmemente possível. A desvantagem é ser difícil de fazer quando a carga for alta, como num caminhão.

Já que falamos da volta de tortor, há quem diga que este é o único nó que uma pessoa precisa aprender. É um exagero, mas é um nó muito útil de fato. Serve para formar um laço no meio do cabo, que geralmente é fácil de ser desfeito.

A volta de tortor tem a interessante característica de resistir quando puxado por um lado, ou pelo laço, desde que os dois lados do laço sejam tracionados por igual. Quando puxado pelo lado "errado", ele afrouxa e corre, ficando fácil de soltar.

Figura 4: Volta de tortor. O laço que abraça o ponto fixo pode ser usado como moitão no nó carioca.
Figura 5: Volta de tortor apertada em torno de um ponto fixo, que poderia ser um palanque.

Se a tração vem do lado do chicote, a laçada deve ser formada com cabo vindo desse lado. É o caso do nó carioca, e no caso do tortor ser usado para ancorar o cabo pelo meio, sem que as tensões do chicote sejam transmitidas ao vivo.

Figura 6: Prendendo um cabo liso a um cunho usando volta de tortor. Foto de página do livro Marinharia e Trabalhos em Cabos.

Por outro lado, se a ideia é tracionar o vivo por um objeto introduzido no laço (bem melhor que queimar as mãos tentando puxar direto pelo cabo), a laçada deve vir do vivo do cabo, pois a tração será sobre o vivo. Tracionar o chicote afrouxa o nó.

Figura 7: Tracionando o cabo usando canivete como manopla. A volta de tortor é adequada para este fim pois é facílima de fazer e soltar.

Por último, a volta de tortor é base de um método rápido de executar o lais de guia.

Conforme já disse, o nó de escota (sheet bend) é útil para emendar dois cabos, mesmo de diâmetros diferentes. Ele também é chamado nó de tecelão, pois seu diâmetro não é exagerado, e passa por guias e agulhas de tecelagem. Existem nós bem mais seguros para emendar cabos, porém o nó de escota simples ou duplo é considerado suficiente.

Figura 8: Nó de escota duplo.

Topologicamente, o nó de escota é idêntico ao lais de guia, e compartilha das mesmas qualidades. Assim como o lais de guia não deve ser tracionado pelo chicote, o nó de escota também não deve sofrer tração em nenhum dos dois chicotes, sob pena de abrir.

Para fixar um cabo num palanque ou ponto fixo, quando a tração é constante, a volta redonda e dois cotes é um nó excelente. A volta redonda tende a suportar toda a tração por atrito, e os dois cotes (na verdade uma volta de fiel) tendem a manter-se fáceis de abrir quando necessário. Se a tração for intermitente, um lais de guia é melhor, pois tem menos tendência de abrir.

Outra opção para tornar a volta redonda mais permanente é esganar o chicote com o vivo usando cabo mais fino, mantendo os dois paralelos (muitos manuais trazem esse detalhe, sem explicar por quê). Ou partir logo para alguma variante, tipo volta de fateixa que morde um pouco as voltas em torno do palanque, deixando o nó firme quando não há tração.

A meia-volta é muito usada na ponta de cabos sintéticos para impedir que se desmanchem. Como tenho birra com a meia-volta e com o nó direito, prefiro usar o nó em oito (também chamado de volta do fiador) para este fim, enquanto não acho o isqueiro para queimar a ponta do cabo. O nó em oito é volumoso em três dimensões, e também serve para ficar mais fácil de puxar à mão, e para evitar que um cabo escape de um olhal ou ilhós.

O nó de frade também é bom para todas estas funções, e é o ideal para manipular o cabo, pois dá uma pegada bem anatômica, além de ser bonito. Ainda que, se existe a perspectiva de ter de abrir o nó, o nó em oito é o melhor neste quesito, ou o menos pior.

Tanto a meia-volta quanto o nó em oito, mas principalmente o nó em oito, podem ser feitos em duplo com um seio (laçada do meio do cabo) a fim de formar uma alça ou laço que não corre. Este laço será mais seguro que o lais de guia comum, em se tratando de cabos muito escorregadios, mas também será mais difícil de abrir. Se a perspectiva de ter de cortar o cabo não é problema, e a solidez do nó tem de ser absolutamente garantida, como no caso do alpinismo, é uma boa.

A volta da ribeira é um nó ensinado no escoteiro, mas é relativamente pouco mencionado. Seu uso canônico é amarrar ou rebocar um molho de madeiras ou lenhas, mas também serve para fixar o cabo a um palanque ou árvore. Sua construção torcida cria muito atrito, e segura muito bem em superfícies rugosas. E permanece fácil de soltar.

Outros nós simples e interessantes de conhecer: boca de lobo, volta do salteador e aboçaduras.

Cabos torcidos ou trançados

Tradicionalmente, cabos, barbantes e fios têxteis são fabricados com fibras naturais: algodão, linho, sisal, cânhamo, coco, etc. Muitos nós tradicionais foram concebidos para esse tipo de cabo.

As fibras naturais caracterizam-se por serem curtas (no máximo alguns centímetros) e cardadas, ou seja, com microscópicos espinhos ou escamas. Para fazer um fio contínuo, as fibras são torcidas juntas. O atrito e os cardos mantém as fibras unidas.

Quanto maior o comprimento médio da fibra, menos torção e menos fibras são necessários. O resultado é um fio mais fino e de melhor qualidade. É por conta disso que produtos têxteis de linho e algodão egípcio são mais agradáveis ao toque, e também mais caros. As fibras mais curtas vão para têxteis de segunda qualidade, tipo aquelas camisetas de meia-malha que "picam" na pele e criam bolinhas.

Sendo torcido, um fio tem a tendência natural de destorcer e desmanchar. Para evitar isso, os fios são combinados e torcidos na direção contrária, formando barbantes, linhas ou fios de carreta. Conforme os fios individuais tentam destorcer, acabam por manter o barbante torcido.

Figura 9: Mesmo um humilde barbante tem dois níveis de torção. O exemplo da foto é composto por diversos fios. O fio elementar rompe quase sem esforço quando destorcido, revelando as fibras.

Os barbantes são combinados para formar outros mais grossos, até chegar na bitola desejada, sempre torcendo na direção contrária dos seus constituentes, até chegar nos três ou mais cordões que constituem o cabo.

As fibras sintéticas e a seda distinguem-se por serem contínuas. Um filamento de seda pode ter até 1km, e filamentos sintéticos podem ser infinitamente longos. Isto permite fabricar fios e cabos sem torção, extremamente resistentes, e o cabo sintético típico é trançado. Embora haja cabos sintéticos torcidos, com aparência tradicional.

No geral, o cabo trançado é muito mais flexível, mais fácil de lidar e mais fácil de encontrar. Por outro lado, o cabo torcido tem aparência mais clássica e pode ser enrolado no sentido da torção, enquanto enrolar um cabo trançado pede aquela técnica "over-under" (também utilizada quando se enrola um cabo elétrico). Alguns nós funcionam melhor com cabo torcido, pois sua textura proporciona muito mais atrito. Muitos trabalhos decorativos, costuras e emendas são possíveis apenas com cabos torcidos.

Corda ou cabo?

Escoteiros e marinheiros fazem questão de dizer que trabalham cabos, não cordas. ("Só há 3 cordas no navio: corda do relógio, corda do sino e a corda que enforca quem chama cabo de corda"). Mas qual é a diferença?

Este vídeo esclarece os detalhes, introduz o conceito de fator de segurança, etc. mas a história básica é a seguinte:

Um cabo é um elemento estrutural flexível que suporta apenas tração. Para ser considerado um cabo, esse elemento tem de ser confiável: deve suportar tranquilamente a carga, e deve dar avisos antecipados e visíveis antes de falhar por sobrecarga ou desgaste natural.

Uma corda é formada por diversos barbantes ou cordões, torcidos ou trançados. A maioria das cordas são cabos, pois são confiáveis quando utilizadas dentro das especificações do fabricante. Uma corda dá diversos avisos antes de falhar, apresentando-se puída e/ou com alguns fios rompidos.

Um barbante ou fio de carreta é formado por diversos fios torcidos, trançados ou simplesmente reunidos. Um barbante pode ou não ser um cabo, a depender da construção. Barbantes têxteis nunca são cabos. Já um cabo de aço 1x19 é tecnicamente um barbante.

Fio é o componente elementar de cordas e cabos. Tradicionamente construído com fibras unidas por torção, também pode ser um filamento contínuo (fio sintético ou de seda) ou ainda um arame de metal. Fios e arames não podem ser cabos, pois rompem de uma vez, sem aviso. Mesmo os vergalhões de construção (que tecnicamente são arames grossos) sempre trabalham em grupo dentro do concreto.

Referências

"Guia prático de manobra" (Eric Tabarly)

"Marinharia e trabalhos em cabos" (Colin Jarman e Bill Beavis)

"Guia do sênior" (União dos Escoteiros do Brasil)