Um livro bastante interessante surgiu nas bancas. "e: a história de um número". É relativamente fino, fácil de digerir para quem entende um mínimo de matemática, bastante divertido. Altamente recomendado.
A história do número e = 2.718281828... confunde-se com a história do cálculo integral e diferencial. Foi a tentativa de calcular a área de uma curva aparentemente simples y=1÷x que inspirou Newton e Leibnitz a estudarem processos infinitos, e assim toparem com o cálculo e com o número "e".
Muitos outros já haviam aproximado o valor de "e" antes (até os babilônios, em cálculos financeiros). Eu mesmo topei com o número "e" numa simulação financeira, mas nem eu nem os babilônios compreenderam a importância disso à época, pois não sabiam cálculo ;)
O número "e" tem inúmeras facetas. A que pretendo mostrar envolve algo relativamente simples - a função potência, ensinada no primário da seguinte forma:
104 = 10 × 10 × 10 × 10
Potência é, a princípio, uma forma compacta de expressar uma multiplicação repetida. Quando o expoente (no caso acima, 4) é inteiro positivo, esse modelo é suficiente. Também aprendemos no ensino fundamental algumas propriedades envolvendo potências de mesma base, todas facilmente provadas por indução:
104 × 102 = 10(4+2) = 106
104 ÷ 102 = 10(4-2) = 102
(104)2 = 10(4×2) = 108
Agora, seria admissível um expoente zero ou negativo? A definição primeira de potência não comporta essa idéia. Mas as propriedades das potências de mesma base justificam tais expoentes:
103 ÷ 103 = 10(3-3) = 100 = 1
(pois 1000 ÷ 1000 = 1, então 100 deve ser 1)
102 ÷ 104 = 10(-2) = 1 ÷ 102 = 0,01
(pois 10 ÷ 1.000 = 0,01, então 10(-2) = 1 ÷ 102)
Graças a esta equivalência, podemos expressar função recíproca y=1÷x na forma y=x-1, mais elegante, pelo menos tipograficamente.
E um expoente não-inteiro? Vamos começar com o caso de um expoente na forma 1÷x, também chamada de fração harmônica. Que valor poderia sair de
8(1÷3)?
Usando um pouco a imaginação, poderíamos dizer que o resultado deveria ser "um terço" de oito, mas um "terço multiplicativo", de modo que
8(1÷3) × 8(1÷3) × 8(1÷3) = 8
Ora, 2 × 2 × 2 = 8, então o "terço multiplicativo" é nada mais que a raiz cúbica de 8. Uma potência de 1÷2 seria a raiz quadrada, 1÷4 a raiz quarta, e assim por diante.
Essa nossa suposição parece ser verdadeira porque ela funciona em todas as situações estudadas antes (multiplicação de potências de mesma base, potência negativa, etc.). Exemplo:
[10(1÷2)]4 = 10(4÷2) = 102 = 100
Se calcularmos a raiz quadrada de 10 usando aquele algoritmo manual, e elevarmos o resultado à quarta potência, chegamos a 100. Então, representar raízes como expoentes fracionários 1÷x parece estar correto. Fizemos uma presunção no estilo "vai que dá" e aparentemente funcionou.
Se o expoente for um número racional na forma (x÷y), basta considerar que
a(x÷y) = "a" elevado a potencia "x", e em seguida extrai-se a "y"-ésima raiz
Há alguns testes que devemos fazer para ver se essas nossas "invenções" funcionaram mesmo.
Para aceitarmos a existência de expoentes fracionários, precisamos verificar se a função potência permanece bem-comportada. Uma função bem-comportada não dá saltos bruscos, e cresce (ou decresce) de forma proporcional, pelo menos dentro de faixas bem-definidas.
Suponha uma função f(x) bem-comportada. Se f(A)=A' e f(B)=B', e f(C)=C', se o valor de C está entre A e B, então o resultado C' deve estar também entre A' e B'. Este é o "teorema do sanduíche".
A função recíproca 1÷x é geralmente bem-comportada, exceto no ponto x=0, onde há um "buraco". O teorema do sanduiche ainda vale para ela, desde que faixa entre A e B não inclua o zero (ambos têm de ser maiores ou menores que zero).
Em se tratando de expoentes inteiros, a função potência é obviamente bem-comportada e monótona crescente:
...
20 = 1
21 = 2
22 = 4
23 = 8
24 = 16
...
Agora, vamos fazer um teste com expoentes não-inteiros. Aparentemente, se partirmos do expoente 3 e descermos assintoticamente para o expoente 2, o resultado também parece descer assintoticamente para 4:
22 = 4 (limite inferior)
23 = 8 (limite superior)
22,5 = 25÷2 = 5,6568...
22,25 = 29÷4 = 4,7568...
22,125 = 217÷8 = 4,3620...
22,0625 = 233÷16 = 4,1771...
22,03125 = 265÷32 = 4,0875...
Pelo menos num teste empírico, o teorema do sanduíche parece estar sendo respeitado. Existem provas rigorosas que atestam que expoentes racionais são mesmo bem-comportados, então podemos relaxar e seguir para "a grande encrenca": expoentes irracionais.
Uma característica necessária da função suave é não possuir "buracos" inesperados. (A função recíproca tinha um buraco, mas era apenas um, em lugar conhecido.) Talvez haja buracos na função potência, porque não a definimos para expoentes irracionais. Considere estes casos:
2√2 = ?
10π = ?
Tanto √2 quanto π são números irracionais, e isso é conhecido desde há muito tempo. A propósito, para quem não lembra, número irracional é aquele que não corresponde exatamente a nenhuma fração.
Se não há como expressar π como fração, 10π não existe, pois não há como elevar 10 ao numerador, e depois tirar a raiz n-ésima apontada pelo denominador. Achamos um indesejável buraco. Pior: existem infinitos números irracionais, portanto os buracos da função potência também seriam infinitos, o que lhe tira a suavidade.
Esse problema me ocorreu pela primeira vez na 7a série. Perguntei para o professor, e ele sugeriu usar uma aproximação (formalmente conhecida como limite), que consiste em aproximar o resultado "arredondando" o número irracional para um número racional. Exemplo:
10π "não existe", mas 10(31415926÷10000000) existe, e é uma aproximação boa.
Isso resolve o problema do ponto de vista prático: podemos aproximar do valor verdadeiro de 10π tanto quanto quisermos, basta usar expoentes fracionários (com numeradores e denominadores enormes). Mas isto não prova que uma potência com expoente irracional realmente exista.
Há outros problemas. Quando a base é negativa, um expoente fracionário 1÷n representa a raiz n-ésima da base. Por exemplo, (-1)1÷2 seria a raiz quadrada de -1, cujo resultado não é um número real. O resultado só é real quando o exponente possui denominador ímpar. No caso de expoentes na forma m÷n, o resultado também é real se o numerador m for par.
Mas, se o expoente for irracional, simplesmente não sabemos se devemos considerar numerador e denominador como pares ou ímpares, e portanto nem sabemos se o resultado é real ou complexo!
Para fecharmos esses buracos, precisaremos redefinir a função potência de outra forma, radicalmente diferente. Prepare-se para descobrir que te ensinaram um monte de mentiras no ensino fundamental :)
Considere a curva da função recíproca: y = 1÷x = x-1. É aparentemente simples. Vários matemáticos tentaram, sem conseguir, determinar a área sob essa curva. Esse problema só foi resolvido com o advento do cálculo de Newton e Leibniz.
A função recíproca é contínua e suave, ou seja, não tem os famigerados buracos, mesmo quando x é irracional. Existe exatamente uma descontinuidade em x=0, mas como é apenas uma, podemos lidar com isso.
Antes do cálculo, o que já se "sabia", ou melhor, os matemáticos desconfiavam, é que a área sob essa curva cresce logaritmicamente com o avanço de x. Devido a isso, a função da área dessa curva (hoje conhecida como integral definida) foi batizada de "ln".
ln x corresponde à área sob a curva x-1, a partir de x=1, para frente ou para trás. A área começa a ser contada a partir de x=1, pois x=0 é onde está o buraco. Para calcular ln 3, contamos a área de x=1 até x=3. Para calcular ln 0.5, contamos a área de x=1 até x=0.5, andando para trás e considerando o resultado como negativo.
Outra coisa que o cálculo provou, é que todas as propriedades dos logaritmos também se aplicam à função ln x. São aquelas propriedades que aprendemos no segundo grau, por exemplo: ln (x2)=2 ln x. Foi um caso de "duck typing" matemático - se a função grasna como um pato e anda como um pato, então é um pato.
Se a função recíproca é contínua em intervalos controlados, a área sob essa curva também é uma função contínua, e ln x é contínua para qualquer x > 0.
Relembrando a definição de logaritmo:
log 1000 = 3, pois 103 = 1000, e log x é o logaritmo na base 10.
A base de log x é 10. Se ln x é uma função logarítmica, ela também tem uma base, que parece ser um número em torno de 2.71828...
Uma vez provado que:
definimos a função exponencial como o inverso da função logarítmica:
y = ln x
x = ey
A função y=ln x é contínua (sem "buracos") para x>0. Melhor ainda, é uma função sobrejetora: escolhendo bem "x", podemos atingir qualquer resultado "y": positivo, zero, negativo, inteiro, fracionário ou irracional.
Portanto, a função inversa ey também é uma função contínua, e seu argumento "y" pode ser qualquer número real, inclusive zero, negativo, fracionário ou irracional.
Assim, conseguimos abrir uma exceção para as potências com expoentes irracionais: pelo menos quando a base é o número "e", qualquer expoente é válido.
Agora, vamos usar essa constatação para redefinir a função potência, com o objetivo de admitir qualquer valor real como expoente. As propriedades dos logaritmos nos auxiliam nisto. Por exemplo:
10n = en × ln 10
Como en e ln x são funções contínuas, sabemos que existe um resultado do lado direito. O lado esquerdo não tinha resultado segundo a definição original de potência, mas passa a existir quando adotamos a nova definição, baseada no número de Euler.
A definição de potência que aprendemos no ensino fundamental é apenas um caso-limite, que só vale para expoentes racionais.
Ok, talvez eu esteja exagerando um pouco. A definição "do primário" ainda é soberana quando lidamos exclusivamente com números inteiros. A criptografia moderna e muitos outros truques de matemática discreta baseiam-se em potências envolvendo racionais. Mas, em se tratando de números reais, a nova definição é quem vale.
Generalizando a nova definição de potência:
an = en × Ln a (a ≠ 0)
A definição acima é válida inclusive para valores negativos de "a", embora sejamos obrigados então a usar números complexos nos cálculos intermediários. Note também o L maiúsculo em "Ln". Um número negativo tem inúmeros logaritmos, todos complexos. Um deles é considerado o "principal". Quando queremos deixar claro que desejamos apenas o logaritmo principal, usamos Ln a (com L maiúsculo) em vez de ln a.
Resta tratar o caso a=0. Esta é uma limitação desta nova definição de potência: a impossibilidade de produzir um resultado zero (situação que a definição antiga de potência tratava sem embaraço). Para contornar esta lacuna, precisamos apelar ao conceito de limite: a expressão tende suavemente a zero conforme a base tende a zero, então podemos tratar este ponto de forma excepcional, considerando que base zero produz resultado zero.
Fora esse caso problemático do zero, a nova definição é tão mais versátil que acomoda inclusive bases e expoentes complexos, o que viabiliza esta intrigante igualdade de Euler, cujo expoente é imaginário e irracional ao mesmo tempo:
ejπ = -1
O fato é que todas estas coisas não serviriam de nada, se não fossem utilizáveis na prática. Felizmente, elas são! Como a origem das funções ln x e ex é a singela função x-1, seus valores são facilmente calculáveis através de séries infinitas, compostas apenas de operações elementares. Por exemplo:
ln (1+x) = x - x2÷2 + x3÷3 - ...
Apesar do nome "série infinita", na prática a série só é calculada até o resultado atingir a precisão desejada, algo como 10 casas decimais nas calculadoras de bolso, ou 17 dígitos em computadores de uso geral.
Todas as funções transcendentais - logaritmo, seno, cosseno, exponenciação etc. - são computadas usando séries infinitas. Ou você achava que a calculadora tinha uma tabela de logaritmos e cossenos? ;)
Ou você achava que, quando faz 250 na calculadora, ela realmente faz cinqüenta multiplicações? Nada disso, a calculadora faz o mesmo esforço para calcular qualquer potência, não interessa qual é a base ou o expoente.
Em particular, para calcular 250, a operação executada internamente é
e50 × ln 2
Ou, da mesma forma, quando você faz 10π na calculadora, ela efetivamente usa a fórmula
eπ × ln 10
pois além dessa potência existir, é fácil de calcular e a operação envolve números pequenos em todos os passos intermediários:
eπ × ln 10 = eπ × 2.3025 = e7.2337 = 1385.45
Calcular 10π usando a aproximação racional 1031415926÷10000000 seria burrice: envolveria números gigantescos, o que tornaria a calculadora cara e lenta, sem devolver nenhum benefício em termos de precisão.