Não sei se eu deveria escrever sobre isto, mas depois de ver bobagens sendo escritas em revistas de fotografia de circulação nacional, concluo que ainda há espaço para artigos de base sobre fotografia :)
O funcionamento das lentes fotográficas, e do próprio olho humano, pode ser modelado por um dispositivo extremamente simples: a câmera fotográfica de furinho.
Uma câmera de furinho é uma câmara escura, com paredes internas pintadas de preto fosco. Na frente, há um pequeno furo (quanto menor, melhor), e no fundo há um pedaço de filme sensível a luz, ou um sensor.
O furinho precisa existir para que cada ponto do filme receba a luz de apenas um ponto da cena. Furos maiores misturam mais pontos da cena, diminuindo a nitidez, até o caso extremo de um filme exposto ao ambiente sem câmera, que não forma imagem e sim um borrão uniforme.
Conforme a profundidade e a largura da câmera de furinho, será reproduzido no filme um ângulo da cena mais aberto ou mais fechado:
A profundidade da câmera de furinho é denominada comprimento focal. Quanto maior o comprimento focal, maior a ampliação, e menor o ângulo da cena capturada.
O ângulo absoluto coberto por um comprimento focal depende também das dimensões do filme. Para o tradicional filme 135 ou 35mm, uma lente de 50mm cobre 40 graus horizontais, e uns 50 graus na diagonal.
Câmeras usam objetivas com lentes de vidro, não furinhos. Mas uma objetiva de 43mm oferece ampliação equivalente a um furinho distante 43mm do filme. A objetiva não precisa ter realmente 43mm de comprimento físico. É uma equivalência teórica.
No jargão fotográfico, uma objetiva ou câmera de furinho cujo comprimento focal seja parecido com a largura do filme é denominada "normal", já que a projeção da cena parece a mais natural. Ampliações maiores são denominadas "tele" e menores são "grande angular".
A câmera de furinho é extremamente simples, mas oferece uma projeção muito boa da cena, denominada retilínea. Nela, todas as linhas retas da cena continuam sendo linhas retas na fotografia, não importa a direção. Quase todas as objetivas também são retilíneas, ou seja, procuram imitar à risca a projeção do furinho.
Esta projeção é normalmente a mais agradável e natural para quem vê a fotografia. A distorção diminui conforme aumenta o comprimento focal, e ainda é pouca para ângulos de cobertura "normais", em torno de 50 graus.
Porém, para ângulos de cobertura ainda maiores, a chamada distorção retilínea começa a ficar mais evidente.
Na figura acima, os dois objetos da cena estão à mesma distância do furinho, porém o objeto à esquerda é distorcido, e aparece maior que o outro na foto.
Por que isto acontece? Bem, toda projeção causa algum tipo de distorção. A distorção retilínea é semelhante à distorção dos mapas Mercator, onde a Groenlândia fica parecendo maior que o Brasil só porque está mais perto do pólo.
No caso da Figura 4, repare que o comprimento focal efetivo é muito maior para o objeto na diagonal, do que para o objeto exatamente na frente da câmera. Portanto a ampliação do objeto na diagonal será maior.
Num limite extremo, um objeto a 90 graus do furinho teria tamanho infinito na fotografia! É claro, isto não é possível porque a largura da câmera é limitada. O ângulo de visão do furinho sempre será bem menor que 180 graus (90 para cada lado).
A distorção retilinea pode ser benéfica quando os objetos estão alinhados. No caso da Figura 3 , os objetos à esquerda ou à direita também estão mais distantes. O aumento da distância compensa a ampliação extra, e o resultado é uma foto agradável com todos os objetos sendo reproduzidos com o mesmo tamanho.
Uma limitação importante da projeção retilínea, já citada, é não poder proporcionar nem de longe 180 graus de cobertura. Uma solução para isto é utilizar uma câmera de furinho com filme curvo, que resulta numa projeção cilíndrica:
Neste caso, o comprimento focal é o mesmo para qualquer ângulo de visão. Já foram construídas câmeras "de paisagem" com base nessa idéia, que reproduziam 360 graus de uma cena sem distorção. Muitas câmeras digitais também simulam este recurso, e alguns softwares também permitem compor uma paisagem a partir de muitas fotos individuais, usando sempre a parte central de cada uma, que é pouco afetada pela distorção retilínea.
É claro, a distorção retilínea continua existindo no sentido vertical, mas a fotografia de paisagem costuma ter ângulo de visão bem estreito no sentido vertical.
Existe outro método de aumentar o ângulo de visão de uma câmera: mudar a direção dos raios de luz conforme passam pelo furinho, como se a câmera estivesse cheia de água:
Na câmera acima, objetos a até 90 graus do furinho são projetados no filme. A posição de cada objeto no filme é linearmente proporcional ao ângulo. Esta é a projeção "olho-de-peixe", porque supõe-se que os peixes enxerguem assim.
Lentes olho-de-peixe são muito boas para capturar o todo de uma cena, mas sua projeção é considerada desagradável. Numa cena como a da Figura 3, os objetos mais distantes do furinho ficariam "comprimidos", cada vez menores e mais próximos uns dos outros, pois a diferença de ângulo fica cada vez menor.
No centro da fotografia, as projeções retilínea e olho-de-peixe geram imagens iguais, com ampliação proporcional ao comprimento focal de cada uma. O comprimento focal da olho-de-peixe refere-se portanto ao centro da foto. Nas laterais o número perde o sentido porque uma objetiva retilínea teria de ter comprimento de foco zero para cobrir 180 graus.
A câmera de furinho ideal teria um furo infinitamente pequeno. Quanto menor o furo, maior a nitidez, até o limite da difração da luz (que também afeta as lentes de vidro). Isto causa um problema sério: pouca luz entra na câmera e a fotografia demora muito para ser registrada.
Durante a Idade Média, alguém achou uma solução para isto: em vez de um furinho, usar uma lente de vidro.
A lente desempenha a mesma função do furinho: cada ponto da cena é projetado sobre um único ponto do filme. A diferença é que a lente permite a entrada de muito mais luz (além de sofrer menos com a difração, conforme veremos).
O furinho não precisa ser focalizado, porque idealmente ele deixa entrar apenas um raio de luz para cada ponto da cena. A lente precisa de foco, pois o ângulo dos raios de luz vindos de um mesmo ponto da cena depende da distância.
A grande maioria das lentes é esférica, por ser mais fácil de fabricar. A lente ideal para substituir o furinho tem superfície mais complexa, e objetivas fotográficas de boa qualidade têm uma ou mais lentes não-esféricas, ou "asféricas".
A luminosidade de uma lente, ou de uma objetiva (que é composta por várias lentes, mas isto não faz diferença para o filme) guarda obviamente uma proporção com seu diâmetro. Quanto mais diâmetro, mais área de abertura, e mais luz entra. Mas a luminosidade também depende (inversamente) da ampliação. Uma lente de grande ampliação/grande comprimento focal projeta um ângulo menor da cena sobre o filme, e as demais partes da cena vão ser absorvidas pelas paredes laterais da câmera.
Por este motivo, convencionou-se especificar a abertura como uma fração, como f/2, f/4, etc. pois assim é possível comparar diretamente a luminosidade de duas lentes ou objetivas de comprimentos focais diferentes.
Por exemplo, uma lente de 25mm de diâmetro e 50mm de comprimento focal é denominada f/2, pois o primeiro valor é metade do segundo. Se esta lente tivesse 50mm de diâmetro, seria f/1, e seria quatro vezes mais luminosa, porque a área da lente quadruplica quando o diâmetro dobra.
Por outro lado, se a lente de 25mm de diâmetro tivesse comprimento focal de 200mm, ela seria f/8, e seria 16 vezes mais escura que a lente f/2. A ampliação foi aumentada apenas quatro vezes (de 50mm para 200mm), mas como a ampliação ocorre em duas dimensões (horizontal e vertical), a diluição da luz é quadrática (4x4=16).
A abertura em "números f" é apenas uma regra prática, não é uma lei da Física. A quantidade de luz de uma cena é finita, e uma lente tendendo a f/0 não vai mudar isto.
Conforme dito antes, a vantagem de uma câmera de furinho é não precisar de focalização. Deixando a difração de lado por um momento, o único limite de nitidez de uma câmera de furinho é o diâmetro do furinho.
Já uma lente, ou objetiva, só tem nitidez perfeita na distância em que estiver focada. Pontos fora de foco são projetados como círculos sobre o filme — são os "círculos de confusão".
Quanto maior o diâmetro absoluto da lente (não interessa o "número f") e/ou quanto maior a discrepância de foco, mais borrada é a imagem. (O círculo de confusão de uma câmera de furinho é sempre do mesmo tamanho: é o diâmetro do furinho.)
Aliás, isto é uma dica prática para quem gosta de tirar retratos ou quaisquer objetos com o fundo bem desfocado: calcule o tamanho absoluto da abertura. Por exemplo, uma lente 50mm f/1.4 e um zoom 55-200mm f/3.5-5.6 têm exatamente a mesma abertura absoluta: 35.7mm (50/1.4 ou 200/5.6). Ambas as lentes vão borrar igualmente a parte fora de foco da cena. O zoom tem as vantagens de ser muito mais barato e versátil; a desvantagem é ter de se afastar muito do objeto para tirar a foto com a máxima abertura, pois 200mm é quase uma luneta.
Como a resolução do filme ou do sensor não é infinita, e a lente também não é perfeita mesmo em foco, círculos de confusão suficientemente pequenos não serão notados. Existe uma margem de tolerância denominada profundidade de campo: uma faixa de distâncias à frente e atrás do foco em que a imagem ainda parece "perfeitamente" nítida, dentro dos limites de nitidez do sistema (objetiva + câmera + filme ou sensor).
A profundidade de campo depende de muitos fatores, inclusive do tamanho que a fotografia vai ser finalmente impressa. Na prática o "pixel" é estimado em 0.025mm para os tamanhos usuais de filme e sensor. Círculos de confusão menores que isso não são considerados prejudiciais à nitidez. Alguns fotógrafos advogam uma estimativa mais pessimista para câmeras digitais modernas.
Câmeras com sensores menores (de bolso, celulares, "superzoom", camcorders) usam objetivas de comprimento focal também menor, e atingem um "número f" aceitável com diâmetros muito pequenos. Por conta disso, tais câmeras têm uma profundidade de campo maior para um mesmo ângulo de visão. Isto é vantagem em algumas situações (tudo fica em foco mais facilmente) e desvantagem em outras (menor liberdade artística).
Para obter a melhor nitidez de qualquer câmera, a receita seria imitar a câmera de furinho, usando a menor abertura possível (maior número f), aumentando a profundidade de campo. Mas aí esbarramos no limite da difração.
A nitidez da câmera de furinho é limitada de duas formas: por um lado, o furinho deve ser o menor possível, diminuindo o "círculo de confusão". Por outro lado, quanto menor o furinho, mais forte é o efeito da difração.
Para cada comprimento focal, existe um "furinho ótimo", que atinge a máxima resolução possível. Orifícios maiores ou menores implicam em perda de nitidez.
Da mesma forma, a difração afeta lentes e objetivas, criando "círculos de difração" a partir dos pontos da cena, mesmo com foco perfeito. A diferença é que uma objetiva pode diminuir o efeito da difração usando aberturas maiores (números f menores). É a segunda grande vantagem de uma objetiva sobre o furinho.
A nitidez de uma objetiva é limitada de três formas:
O ponto ótimo para os formatos atuais (35mm/"full frame" e APS-C) e objetivas mais comuns situa-se entre f/5.6 e f/8, embora imagens boas para impressão possam ser obtidas até f/16 ou f/22. O fotógrafo não deve hesitar em "fechar" a lente se realmente precisa de mais profundidade de campo.
É importante notar que a difração é proporcional ao "número f", e independe do comprimento de foco. Duas lentes completamente diferentes (e.g. 50mm e 400mm) têm o mesmo desempenho no tocante à difração, se estiverem na mesma abertura.
A difração é o grande "vilão" das câmeras com sensores pequenos, limitando sua resolução. Para diminuir um pouco o problema, modelos melhores usam objetivas de grande abertura (exemplo: iPhone 6 usa objetiva f/2.2). Câmeras compactas não fecham mais que f/8 pelo mesmo motivo.
Por questões de marketing, é muito comum câmeras compactas e superzoom terem mais que o dobro de megapixels no sensor do que seria razoável dadas as limitações do sistema ótico. Novamente, o contra-exemplo "honesto" é o iPhone 6 com seus 8 megapixels.
Nos primórdios da fotografia, a difração não era considerada um problema porque eram utilizadas chapas ou filmes muito grandes. As objetivas disponíveis tinham nitidez muito abaixo dos limites teóricos. Mesmo hoje em dia, na fotografia de grande formato (10x15cm ou maior), aberturas tão pequenas quanto f/64 são utilizadas sem problemas. Papel fotográfico (20x25cm) é utilizado em experimentos com câmeras de furinho artesanais, cuja abertura gira em torno de f/300.
A difração começou a ser notada com o advento do filme 35mm ("full frame") e o desenvolvimento de objetivas cada vez melhores. A fotografia digital fez a difração cair na boca do povo, tanto pela proliferação de sensores muito pequenos quanto pela possibilidade de analisar facilmente a nitidez de uma imagem, pixel a pixel.