Lá fomos nós de novo, correr atrás de ruínas ferroviárias para satisfazer a pontinha da pirâmide de Maslow. Também fui conhecer a região de Ponta Grossa, que ainda não tinha tido oportunidade de visitar.
A parte chata foi ter de dirigir até Porto União. Ao menos a rodovia depois de Canoinhas, que estava péssima ano passado, foi federalizada e recuperada. Quem precisava "Di 1ma" razão para votar continuísmo em outubro, aí está.
O trecho da ferrovia Itararé-Uruguai entre Porto União/SC e Irati/PR foi extinto em 1996. Outro trecho foi erradicado entre Jaguariaíva/PR e Itararé/SP. A Figura 1 mostra a disposição relativa destes lugarejos, ainda que completamente fora de escala.
É uma sensação incrível visitar as cidades, estações e o próprio leito por onde passaram tantas pessoas, inclusive inúmeras autoridades, na primeira metade do século XX.
A Revolução de 1930 avançou por ali. A "Batalha de Itararé", a famosa "batalha que não houve", só calhou de haver não havido porque Itararé era a conexão da ferrovia com a malha paulista, mais especificamente com a Sorocabana.
Também meu avô passou por ali numa de suas famosas "aventuras" de solteiro. Ele foi de trem até Campinas e trabalhou numa fazenda de café para faturar a viagem de volta. Também passou um tempinho em Ponta Grossa ou Curitiba. Teria deixado uns corações partidos em todas essas cidades.
A Itararé-Uruguai foi construída segundo padrões técnicos muito baixos: muitas curvas para contornar obstáculos naturais de pequena monta, levando também a grande aumento da distância. O trecho paranaense é mais antigo e pior, e de fato os trechos hoje extintos eram particularmente ruins. Mesmo na época da RFFSA, as cargas já os evitavam.
Todo mundo sabe que a solução racional seria a retificação paulatina dos trechos problemáticos. Veja que a ferrovia entre Curitiba e Ponta Grossa também começou com um traçado terrível, mas já está no terceiro ou quarto traçado.
Agora estão com esta conversa aqui em SC de construir a "Ferrovia do Frango" do zero absoluto, com bitola de 1.60m, sendo que todas as ferrovias de SC, RS e PR são 1.00m! É garantia de obra a) que nunca vai sair, ou b) de propósito tão específico que vai estar obsoleta antes de ficar pronta, e desirmanada da malha ferroviária nacional. Por que é tão difícil pensar de forma incremental???????
As cidades que ficaram desprovidas da ferrovia são bem mirradinhas, e como de costume as antigas áreas das estações e pátios são hoje os bairros pobres das respectivas municipalidades. Ainda assim, sempre há o que olhar em cada lugarejo, em particular as igrejas em estilo ucraniano.
Visitar esta região do Paraná, incluindo o entorno de Ponta Grossa, foi divertido e tranqüilo. Nada a ver com o clima tenso da região metropolitana de Curitiba, onde há muito que ver em termos ferroviários, mas tenho medo de ir.
Hoje em dia também está muito fácil visitar qualquer canto sem se perder. Há Google Earth, mapas do IBGE de graça, mapa e bússola no celular, e o site do Ralph Giesbrecht com o "caminho das pedras" para quem está interessado em história do trem.
Em Rondinha, uma localidade de Paulo Frontin, aconteceu algo curioso: senti cheiro de carvão mineral, como se houvesse uma maria-fumaça por perto. Talvez alguém estivesse queimando algo com odor parecido, mas foi uma sensação arrepiante.
No geral, o leito ferroviário "ainda está lá". Em alguns lugares foi reciclado como rua ou estrada pública, noutros virou caminho para propriedades particulares. A remoção foi meticulosa, não sobra nada que denuncie ter havido uma ferrovia ali, exceto por algumas pontes abandonadas, curvas "redondinhas" típicas de ferrovia e ensaibramento anormalmente bom para um caminho secundário. Imagino que a faixa de domínio ainda pertença à União.
Os prédios das estações também foram quase todos demolidos, com uma e outra honrosa exceção. Algumas pontes também permaneceram em seus lugares, ainda em boas condições, poderiam ser aproveitadas.
Numa delas ( Figura 10) um local me disse que havia pessoas usando o esqueleto da ponte, já que o antigo leito era seu caminho para chegar em casa. Estavam tentando convencer a Prefeitura a reformar a ponte para pedestres e rodagem, assim como a ponte da Figura 4 foi reciclada em Paula Freitas.
Em alguns poucos casos, as pontes foram desmontadas e reaproveitadas em outros lugares. Além da leveza e beleza do estilo metal rebitado, e da sua visível qualidade, sempre me ocorre que estas pontes foram feitas numa época que o Brasil não tinha siderúrgicas. Cada rebite foi importado, pago com suadas e escassas divisas. É nosso suor e sangue ali cristalizado, fora o custo ambiental. É dever de consciência dar destino nobre a estes objetos.
As estradas da região parecem ser muito boas, embora algumas sem acostamento, o que é compatível com o pouco tráfego que suportam. Todas as cidadezinhas têm acesso pavimentado.
Claramente a economia é mais pujante a partir de Irati/PR, onde coincidentemente a ferrovia Itararé-Uruguai ainda existe, em atividade, no leito original. A partir de Irati, mais precisamente na estação de Engenheiro Gutierrez, saía um ramal que vai para Guarapuava e Cascavel, ligando assim Ponta Grossa ao oeste do estado. Com a extinção da linha-tronco de Irati para baixo, o ramal Guarapuava tornou-se a linha principal.
Irati tem a interessante característica urbana de não "brigar" com o trilho; antes ele é aproveitado como uma espécie de parque linear, com longos trechos calçados, ajardinados e iluminados ao longo da linha. Muito agradável de se ver e totalmente diferente do "padrão brasileiro" que é deixar as faixas de domínio virarem terra-de-ninguém com mato e favelas.
Até a malha viária parece "seguir o fluxo" e há relativamente pouca necessidade de cruzar passagens de nível para se deslocar na cidade.
Este padrão de convivência pacífica com a ferrovia se repete, em certo grau, nas diversas cidades entre Irati e Ponta Grossa, com destaque para Teixeira Soares/PR.
Dentro de Irati, é particularmente fácil constatar quantas curvas aparentemente desnecessárias o trilho faz, só para aproveitar um barranquinho, em vez de construir o pequeno aterro que teria viabilizado um segmento de reta.
Também é possível ver estas curvas características de ferrovia construída "a lombo de burro" em certos pontos da rodovia estadual.
Já Ponta Grossa/PR é um enorme entroncamento ferroviário com uma cidadezinha no meio, conforme se pode ver abaixo.
Nada menos que cinco ferrovias entroncam-se na "Capital Cívica". Antigamente, tanto a Curitiba-Ponta Grossa quanto a Itararé-Uruguai passavam por dentro da cidade e confluíam na estação central.
A saída sul da Itararé-Uruguai era pelos fundos das Oficinas. Já a linha vinda de Curitiba seguia até a altura de Cara-Cará e então subia, num traçado que coincide com a atual entrada principal da cidade.
Com o tempo, variantes, contornos e pátios novos foram sendo construídos. A saída sul da Itararé-Uruguai passou à Cara-Cará. Em 1969, foi construída a estação de Uvaranas e sua ligação com Desvio Ribas, desviando o tráfego de cargas. Em 1989, os trilhos saíram de vez do centro da cidade, com a extinção do serviço de passageiros. A ligação entre Cara-Cará e Oficinas sobreviveu até meados de 2010, quando a oficina foi fechada.
Para uma cidade de 330 mil habitantes, é extremamente organizada, limpa, tranqüila, bem sinalizada e de fácil orientação. A sinalização tem de ser mesmo boa, porque há inúmeras transportadoras, silos, depósitos, entrepostos de todo tipo, deve ser visitada por gente "de fora" o tempo todo.
Os dois pátios "novos", Desvio Ribas e Uvaranas, são muito grandes e movimentados. Ambos os pátios são de fácil acesso, o de Uvaranas mais ainda porque é visível da rua mesmo.
A quantidade e tamanho dos silos espalhados por toda Ponta Grossa também impressiona. Deve haver comida para milhões de pessoas ali dentro. Vários destes silos são servidos por desvios ferroviários, conforme pode se constatar no Google Earth.
Ponta Grossa tem duas ex-estações ferroviárias, uma antiga e visivelmente pequena, a outra bem maior. Ambas estão relativamente bem preservadas, a mais antiga inclusive com uma maria-fumaça estática para enfeitar a praça.
Infelizmente, "Oficinas" agora é apenas o nome de um bairro; as oficinas mesmo foram desativadas e a passagem de nível de acesso já foi asfaltada. O próprio ramal que vai de Cara-Cará até as oficinas será parcialmente erradicado.
Não vi placas de "Entrada Proibida", mas é certo que adentrei nas áreas particulares dos dois pátios para fotografar e filmar. Como são operações bem grandes e estava fora do meu feudo catarinense, achei que desta vez seria enxotado.
Tratei de fazer meus registros logo e rápido, para não sair de SD Card vazio. Mas não fui em absoluto hostilizado, até me cumprimentaram.
A região em torno de Uvaranas é colírio para os olhos dos amantes da ferrovia, pois há quatro saídas ferroviárias: Desvio Ribas (S), Central do Paraná (NW), Itararé-Uruguai (N) e Tronco Sul (NE). Há até mesmo um viaduto de ferrovia sobre ferrovia, e tudo de fácil acesso.
A construção do ramal de Ortigueira, que conectou a fábrica de papel Klabin à malha ferroviária via Central do Paraná (uma ferrovia com excelentes padrões técnicos) acabou "roubando" o último cliente da Itararé-Uruguai entre Ponta Grossa e Jaguariaíva. O abandono é evidente ainda dentro da cidade de Ponta Grossa:
Fiz o vídeo acima (beeem meloso) sobre o trecho erradicado da ferrovia, espero que gostem.
Não me entendo muito com nenhuma ferramenta de edição de mídia, mas as da Apple são tão boas que até eu consigo fazer alguma coisinha. O mesmo quanto aos mapas; sempre que tento desenhar, acabo sempre apelando ao KeyNote.
O vídeo abaixo tem footage dos pátios em operação.
Como dito antes, o Ramal de Guarapuava acabou "salvando" um trecho da Itararé-Uruguai, por ter bastante movimento.
É um ramal menos antigo, foi construído entre 1920 e 1950, porém tem os mesmos problemas da Itararé-Uruguai: muitas curvas, muitas passagens de nível, inteferência com zonas urbanas, e gradientes fortes. Existem projetos para construir uma ferrovia completamente nova entre Guarapuava e Paranaguá, ou pelo menos de Guarapuava até Engenheiro Bley, mas por ora nada saiu do papel.
A ferrovia é bem mantida por ser um ramal razoavelmente movimentado e presumivelmente lucrativo. Infelizmente a geometria da linha impede o uso das locomotivas mais novas e potentes. É o último trecho onde ainda se usa "slugs" — locomotivas sem gerador acopladas a unidades convencionais, formando um conjunto com mais tração, menor velocidade, capaz de encarar subidas e curvas apertadas.
Este ramal já teve transporte de passageiros e diversas estações no caminho. A maioria está em lugares de difícil acesso. Com a transição para transporte puro de cargas, mesmo as estações em zona urbana estão abandonadas.
O ponto nevrálgico do ramal é o Cerro do Leão, nome local para a Serra da Esperança, com 400m de desnível a vencer. A Serra da Esperança é parte da Serra Geral, um maciço que vai desde o norte do Paraná até a região de São Joaquim/SC. É um obstáculo natural que impõe dificuldades às ferrovias de toda a Região Sul, mas também cria muitos locais memoráveis, como a subida de Porto União para Calmon, de Monte Castelo para Santa Cecília, além de emoldurar a paisagem na região entre União da Vitória e Mallet onde a ferrovia já foi extinta.
Além do Cerro do Leão, o ramal ainda precisa vencer uns bons 100m de altitude na chegada a Guarapuava. A cidade fica na escarpa de altitude mais elevada, delimitada ao sul por áreas mais baixas, lembrando vagamente Gramado/RS. A ferrovia chega justamente pelo sul, seguindo o vale do rios Iratim/Bananas/Jordão; e precisa fazer muitas voltas para vencer este último obstáculo.
Muitas empresas de Guarapuava são servidas pelo ramal ferroviário, que teria muito mais movimento se os problemas de geometria fossem resolvidos. Fora as inúmeras outras empresas ao longo da extensão do ramal até Cascavel, que segue mais ou menos a direção da BR-277.
Apesar da ferrovia cortar a cidade de Guarapuava, a interferência urbana é surpreendentemente pequena. O trecho de curvas fechadas em gradiente está na "cidade baixa", uma paisagem mais rururbana com algumas aglomerações favelísticas aqui e ali. Na "cidade alta", há diversos viadutos e me parece que há uma área de exclusão bem larga em torno da ferrovia, seja porque a prefeitura não deixa construir (acertadamente), seja porque são áreas em que empresas têm interesse de se instalar.
Seja como for, Joinville podia aprender um truque ou dois com Guarapuava. Esse negócio do povo construir casa a 15m da ferrovia e depois ficar reclamando de barulho, é o fim da picada...
O trecho entre Guarapuava e Cascavel foi construído em 1996, com padrões técnicos muito superiores, mas nenhuma estação intermediária, já que foi pensado desde o início para cargas e sem locomotivas a vapor.
Infelizmente, não passou nenhum trem neste trecho quando o visitei, e estava chovendo muito. Fico devendo um video.