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Privilégio

Figura 1: Torre de alta tensão, linha de subtransmissão CELESC Tronco Norte SC, 138kV

Tenho fobia e fascinação por linhas de alta tensão. Procuro saber suas características, de onde vêm e para onde vão. Assim como igrejas do interior e ferrovias, são marcos indeléveis sobre a terra, integrados à paisagem natural, como se estivessem ali desde a criação do mundo. Mas detesto passar por baixo delas, principalmente à pé ou de bicicleta.

A torre da foto é de uma linha que foi construída nos anos 1960 e passava pelo sítio dos meus avós paternos, onde eu ia todo sábado. E onde moro hoje, a energia elétrica vem através desta linha. Então, num certo sentido, somos velhos conhecidos. Minha fobia por ela é um pouco menor. Mas não tive coragem de estacionar embaixo, o que teria resultado numa foto melhor.

O sítio dos meus avós foi literalmente cortado pelo desenvolvimento, tanto por essa linha quanto pela BR-101 que dividiu o sítio em dois pedaços, um deles inaproveitável. Por outro lado, meus avós sempre tiveram dinheiro guardado. A cada desapropriação, ganhavam uma pequena bolada.

Graças a isto, e muito trabalho, e cabeça no lugar na hora de administrar o dinheiro, meus avós puderam comprar um terreno para cada filho, dentro da cidade, que foi a semente da estabilidade econômica do meu pai, e deste seu criado.

Eles praticavam uma atividade agropastoril de subsistência: dois velhos cuidando de oito vacas leiteiras. O sítio foi ficando economicamente inviável. Porém, nos anos 1970, agricultores ganharam o direito de aposentadoria sem nunca ter contribuído para a previdência. Era meio salário mínimo para cada um, reajustado para um salário mínimo pela constituição de 1988.

Sem esses "ventos de popa" periódicos, as coisas teriam sido muito mais difíceis. Mas essas bênçãos (às vezes disfarçadas) não eram percebidas como bênçãos, e sim como meras indenizações; justas e naturais recompensas pelo trabalho árduo. Porém, nada tiveram de naturais. Foram totalmente artificiais, ortogonais a qualquer mérito pessoal dos meus avós. Constituíram privilégio.

Quando se fala de cotas raciais, bolsa-isso, auxílio-aquilo, etc., iniciativas que vou chamar coletivamente de "ações afirmativas", uma crítica comum é quão artificiais elas são. Porém, eis a verdade desagradável: todo privilégio é artificial. Apenas é que tendemos a perceber como natural o privilégio que nos beneficia. Exceto aqueles dentre nós que padecem da síndrome do impostor.

Vou ainda mais longe e afirmo que o privilégio, pelo menos na forma de impulsos artificiais a fundo perdido, é necessário para o desenvolvimento pessoal e coletivo. Gostamos de acreditar que a meritocracia pura resolve tudo. Porém, a força bruta do dinheiro, da renda familiar, é a matéria-prima da excelência e do sucesso. E quem tem essa renda, é graças a uma longa cadeia de privilégios.

Não quer dizer que o esforço pessoal, o talento, e até a sorte, não sejam importantes. Todo mundo conhece alguém que venceu a despeito de um ambiente adverso, ou foi à garra tendo nascido com a colher de prata na boca. Plantar privilégio e colher excelência é um processo estocástico, tal qual a semeadura.

O privilégio não substitui talento nem esforço, é antes um catalisador. Mesmo o esquerdopata mais empedernido admite que, por exemplo, não se "fabrica" um músico apenas despejando-se dinheiro sobre uma pessoa.

Por tudo isso, não compro o discurso choroso-vitimista no estilo "nossa, sou um privilegiado, não mereço nada do que tenho". Sou uma engrenagem dessa grande máquina chamada sociedade. Bem usinada, bem instalada e bem engraxada, mas ainda uma mera engrenagem. Entre família, patrão, impostos e obrigações sociais difusas, meus esforços são quase 100% em benefício de outros, não de mim mesmo. Deram-me privilégios sim, mas não fizeram mais que a obrigação.

A pergunta é se reconhecemos esta obrigação para com os demais, em particular aqueles que não fazem parte do nosso círculo de convivência.