"A política está mudando, eu disse, está ficando uma política maricona."
-- Sargento Getúlio
Houve um herói brasileiro antes do Capitão Nascimento. Não estou falando de Macunaíma, o "herói sem caráter". Falo do Sargento Getúlio, personagem principal do romance homônimo de João Ubaldo Ribeiro (também autor de "O Sorriso do Lagarto", transformado em minissérie pela Globo). Sargento Getúlio também virou filme, representado por Lima Duarte.
Getúlio é sargento da Polícia Militar de Sergipe, capanga e apadrinhado do importante político Acrísio Antunes, pelas mãos de quem ganhou essa divisa. É mandado a Paulo Afonso/BA para capturar um inimigo político e trazê-lo até Aracaju, para ser executado ou atirado à prisão por longos anos.
Getúlio vai com Amaro, seu motorista e amigo inseparável, usando um automóvel "hudso" (Hudson) como meio de transporte. A notícia vaza, há pressões políticas e Antunes manda cancelar a missão, mas Getúlio não compreende tais sutilezas; recusa-se a libertar o prisioneiro e só descansará quando entregá-lo pessoalmente ao chefe.
Por sua desobediência, enfrenta forças federais por repetidas vezes, até finalmente tombar no terceiro combate em Barra dos Coqueiros, a apenas 11km de cumprir sua missão.
(Sem dúvida o terceiro combate é uma alusão a Canudos, que só caiu na terceira grande ofensiva do Exército. A mitologia de Canudos é invocada diversas vezes no texto, por exemplo quando o sargento se refere aos inimigos como "fraqueza do governo" — conforme os sertanejos de Canudos chamavam à tropa federal — e a cantoria de versos que descrevem a mortandade de soldados no campo de batalha.)
Embora não fique explícito, o fato da primeira força federal exigir que o sargento entregue-se junto com o prisioneiro implica que Getúlio foi descartado e traído por Antunes, seu senhor.
É interessante o estilo em que o livro é escrito: longos monólogos de Getúlio que se estendem por várias páginas, sem parágrafos, uma frase grudada na outra, é algo difícil de ler. Só há parágrafos e frases curtas em alguns (poucos) diálogos ao longo da história.
"Se alembre: se em vez de lhe buscar em Paulo Afonso com todos cuidados e lhe trazer nessa viagem tirana da peste, peste, peste, peste! merda, Amaro, segure esse porra desse hudso que este pai dégua se desmantela-se! se em vez de lhe trazer eu lhe passasse o aço e lhe carregasse a cabeça dentro dum bocapio o que ia ter era muita sastifação em todo o Estado de Sergipe, seu bosta, digo mesmo, bosta, bosta, seu cabeça de bosta, coração de toloco, filho dum cabrunco! olhe o desgramado, espie aí, Amaro! fugir pra Paulo Afonso, ora fugir pra Paulo Afonso, fugir pra Paulo Afonso feito uma vaca, bexiguento! fugir pra Paulo Afonso, pra Paulo Afonso, lá nos infernos, viu, cão da pustema apustemado, lhe faço uma desgraça, pirobo semvergonho, pirobão sacano xibungo bexiguento chuparino do cão da gota do estupor balaio, mija-na-vareta, tem ginásio, tem ginásio! nunca vi ginásio fazer caráter, não responda porque é melhor, lhe meto a cabeça num bocapio e deixo o resto com os guarás, cachorro bexiguento, está pensando o quê, agora responda, capão do rabo entortado, peste! capão da peste, tiro um cunhão seu fora nesse minuto, para lhe ver amofinado e roncolho em Ribeirópolis daqui a pouco, nego fujão; fidumaégua, fidumavaca, fidumajega, viado corredor, peste, peste, peste peste! lhe como a alma, está pensando! lhe tiro o figo, está pensando, ora fugir para Paulo Afonso, amasiado com mulher dama, adeus mestre, ora taí, Amaro, homem creia! Não se enxira, Amaro, quando a cabeça esquenta o melhor é deixar refrescar. Tu tem curso de ginásio, Amaro? Que eu sei, você andava lavando a escada do Ateneu. Se lavar escada do Ateneu dá ciência, você vai bem. Pergunte a esse comunista daqui, esse maricão estrumado, esse capadócio desse udenista, esse peste ruim! pergunte, mas não vá pensando que ele responde, que ele não responde. Só fala com doutor, mas está aí de beiço tremendo como rabo de largatixa, com medo que eu dê um fim nele agora. Dou mesmo, peste!"
Embora a história represente algumas das piores coisas que há e houve no Brasil (coronelismo, pobreza, voto de cabresto), simpatizo com a história e com o personagem. Talvez pela grande interpretação de Lima Duarte, pela teimosia do personagem principal, ou pelo rígido código de honra que ele segue sem titubear até às últimas conseqüências.
No início do livro, o autor esclarece que "é um romance de aretê", alusão à deusa Areté (da virtude). O romance exaltaria as virtudes nordestinas, que já tinham sido muito bem enumeradas por Euclides da Cunha n'Os Sertões, onde, por exemplo, podemos nos comover com a honestidade canina dos criadores de gado do sertão, ou com a luta até o último homem em Canudos.
A trilha sonora do filme também é muito boa. Assim como Getúlio, ela também teve destino trágico: as fitas master foram perdidas porque o estúdio gravou outras músicas por cima, pois precisava reutilizar as fitas.
Tendo visto e gostado muito do filme "O Último Samurai", ficou claro para mim que o Sargento Getúlio me é simpático pelas mesmas razões que a cultura ocidental reverencia samurais e cavaleiros da Idade Média, mesmo sabendo que todos eram os executores dos desmandos dos senhores feudais/coronéis.
A feiúra do sistema contrasta com a beleza da aderência completa e total a um código de honra (mesmo que ele não faça muito sentido) e da bravura suicida por uma causa impossível e fútil.
O filme pode ser intermitentemente encontrado na Internet, na forma completa ou em pedaços. A maioria das versões parecem ter sido gravadas da exibição na TV Brasil. No momento, esta versão está completa e com qualidade melhor.
E o valente graduado tem arregimentado mais fãs, devagar e sempre. No blog "Tempo Contado" há uma belíssima "Carta ao Sargento Getúlio" cujo final de certa forma explica a admiração universal pelo samurai:
Muitos dos bons sentimentos que a você faltam, conheço-os eu de nascença, e quase tudo o que você é, representa, o que faz e o que sente, é para mim odioso.
Porém, e esse será o mistério da admiração que você me causa, e até certo ponto o da minha inveja: enquanto eu nunca torturei nem matei, tenho a certeza que no dia em que comparecermos no Julgamento Final, Deus fará para o meu lado um gesto de demissão, e o acolherá a si com um sorriso de ternura.
Porque só Ele sabe as razões que O levam a escolher a um para Seu instrumento do Mal, e a atirar a outro para a anonimidade da massa que, respeitosa da moral por temor ao castigo, cobardemente se conforma.
Três vivas ao Sargento Getúlio, mais macho que Chuck Norris!