Duas tendências modernas: Foo-As-A-Service (FaaS), também conhecida como "pague na medida em que usa", e gourmetização.
O FaaS está ganhando a guerra, depois de ter perdido algumas batalhas. A impressora de jato de tinta foi uma tentativa inicial frustrada, todo mundo já está esperto com ela. Mas outra espécie de jato-de-tinta já entrou em muitas cozinhas. Ela é mais conhecida como Nespresso, que cobra 2 Temers (*) por cafezinho, além do preço inicial da máquina. A cápsula descartável é bonita, colorida, esconde muito bem o fato de haver apenas 6g de café lá dentro e que o alumínio dela provavelmente não será reciclado. (Um pacote de café Melitta 500g custava 10 Temers em 2016.)
Mas Nespresso está para o café assim como o Sarney está para uma pessoa qualquer; não dá pra tratar um e outro da mesma forma, né? Nespresso é gourmet! Gourmetização e FaaS andam juntas, a segunda geralmente depende da primeira para "colar".
(Ainda sobre o Nespresso, ele realmente tem boa qualidade, e as cápsulas "piratas" estão longe da original no sabor. Muitos restaurantes têm inclusive adotado o Nespresso porque dispensa um barista treinado. Um espresso convencional, bem tirado, ainda é muito melhor; só que, de cada 10 cafeterias, só 2 sabem fazer o serviço.)
E o FaaS vai se alastrando: automóveis com garantia de 5 anos (que embutem revisões obrigatórias e caríssimas), música na nuvem, armazenamento de fotos pessoais na nuvem, aluguel perpétuo de iPhone, morar em condomínios verticais ou horizontais em que o condomínio tem de ser pago religiosamente todo mês, software com licença paga mensalmente, video-game que depende de Internet rápida para funcionar (o que implica que a Internet tem de ser paga todo mês, e você tem de morar num lugar onde ela exista, caso contrário o aparelho vira um peso de papel), e por aí vai.
Essas coisas me incomodam, porque 1) vão erodindo a renda discricionária das pessoas, pois até hábitos simples como tomar café implicam numa despesa fixa mensal de três dígitos, e 2) numa época de aperto financeiro, a qualidade de vida cai mais rápido que um helicóptero sem combustível. FaaS é algo que me deixa com uma enorme pulga atrás da orelha.
Meu amigo LVR me mandou de novo um montão de livros, e tenho de lê-los todos para pagar o tradicional tributo da resenha. De repente algumas idéias apocalípticas dos livros se cruzam com esse lance do FaaS, aí posso escrever um artigo mais bem pensado a respeito. Realmente não era meu objetivo falar de FaaS aqui.
A gourmetização é algo que ganhou vida própria, sem necessariamente vir acompanhada do FaaS. Sou menos cético em relação à gourmetização porque nela existe pelo menos uma opção: você pode ficar de fora desta ou daquela vertente gourmet sem virar um pária. (Poder-se-ia argumentar que a maioria das pessoas de classe média tem cabeça fraca e sente-se obrigada a surfar todas as ondas gourmet que aparecem, mas estou pouco me lixando para os escravos do desejo da cRasse média.)
Eu posso eleger um aspecto da minha vida, ou um hobby, e gourmetizá-lo. Por exemplo, quem gosta de cozinhar monta aquela cozinha fodona com ilha, eletrodomésticos Kenwood, etc. Eu acho besta, mas também acho correto que o mercado atenda bem aos eventuais interessados. É uma inegável evolução em relação ao status quo de 50 anos atrás, onde a cozinha era domínio exclusivo dos serviçais. A gourmetização da cozinha traz na esteira uma série de melhorias que aproveitam ao chef-wannabe e à empregada doméstica: ponto de água quente, eletrodomésticos mais seguros, produtos de limpeza mais eficazes e menos tóxicos, um ambiente de trabalho mais ergonômico e mais bonito.
Mas não deixa de me causar certo espanto, e certo divertimento, de ver como coisas simples podem virar ciências à parte por conta da gourmetização.
Esses dias, voltei a usar Linux. Depois de quase 8 ou 9 anos usando exclusivamente Mac como desktop principal. Bateu uma nostalgia, e é importante mudar de perspectiva de vez em quando. (Tentei variar primeiro com o Windows 8, mas, na boa, Windows é intragável.)
Usar Linux com teclado de Mac não é ideal, então precisei comprar um teclado estilo PC. Aí resolvi realizar um desejo de muitos anos: um teclado mecânico, daqueles que fazem cléc-cléc-cléc quando digita. Tinha experimentado teclados assim bem no início da minha carreira, isso em 1989, 1990, e a lembrança ficou. Teclados mecânicos tem uma chave e a respectiva mola para cada tecla, enquanto teclados normais têm uma só membrana de borracha moldada que serve a todas as teclas.
Não sou muito exigente com teclados, mas eles precisam ter uma qualidade mínima, senão os tendões do pulso e antebraço começam a doer no mesmo dia. Os Macs têm essa qualidade mínima, então escolher teclado é coisa que não faço desde 2003, quando adquiri o primeiro iBook.
Se você ganhou tendinite, desconfie em primeiro lugar do seu teclado! Antes de visitar um médico, experimente um teclado decente. Um Logitech de 70 reais provavelmente não vai causar dor, porque tem aquela qualidade mínima da qual falamos antes. Mas um teclado Xing-Ling de 50 reais provavelmente vai arrasar seus pulsos.
Além da óbvia qualidade de construção, a qualidade do circuito voga muito, talvez até mais. Teclados vagabundos se perdem quando mais de 2 ou 3 teclas são pressionadas ao mesmo tempo. O problema não fica imediatamente óbvio; o teclado parece "pegajoso", e o ato reflexo é digitar de forma mais travada, que acaba causando dor.
Pois bem, eu queria um teclado mecânico de qualidade, então fui olhar o que havia para vender. Nossa Senhora!!!!!
Primeiro que são caros. Teclados mecânicos começam em 400 Cunhas e vão até 2000 Aécios. Devia ter estocado teclados mecânicos nos anos 90! Mas dinheiro se arruma, vendendo uns trastes em desuso no MercadoLivre. Vendi inclusive um teclado Mac 2003-2007, aquele com bordas transparentes, de que muita gente ainda gosta.
Segundo, que os teclados gourmetizaram de uma forma inimaginável. Agora existe mais de uma dezena de chaves mecânicas para teclado! Uma faz cléc, outra não faz; cada tipo pede um esforço diferente para pressionar, e por aí vai. E há outras variáveis, como layout, taxa de amostragem, possibilidade de manutenção. Precisei estudar o assunto só para comprar um simples teclado.
O mercado de chaves é basicamente um monopólio dominado pela empresa alemã Cherry, que produz as chaves Cherry MX. Parece que muito recentemente outros fabricantes estão aparecendo. A Cherry utiliza cores para identificar cada tipo de chave, então os gourmets de teclado e mesmo os outros fabricantes adotaram essas cores para identificar o caráter do teclado mecânico.
Por exemplo, um teclado "verde" (que não vai ser pintado de verde) faz cléc e tem teclas mais pesadas, semelhantes ao venerável Model M da IBM. Um teclado "azul" faz cléc mas exige menos esforço. Estas "cores" são ideais para digitação porque o "cléc" é o ponto que a tecla funciona, então nem é necessário pressionar a tecla até o final.
Teclados vermelhos não proporcionam nenhum tipo de feedback tátil ou auditivo, e são preferidos por gamers. Um teclado "marrom" é híbrido entre azul e vermelho: o "cléc" não é audível mas pode ser sentido pelo tato. Se tiver curiosidade, consulte este site ou procure no Google.
Um terceiro aspecto do mercado de teclados gourmet, é que ele é um setor quase que totalmente dominado por gamers. O resultado disto é misto: teclados de alta qualidade, que aguentam muita porrada, mas de aparência ultra-brega. Todo teclado mecânico parece que saiu de um episódio do Buck Rogers ou Jornada nas Estrelas.
Jogadores também gostam de centenas de teclas, para criar macros e shortcuts, aí os teclados ficam enormes. As mãos ficam muito longe do mouse. Eu prefiro teclados de 84 teclas, com layout de notebook, desde que eles surgiram no mercado, e adotar este layout como padrão foi um dos grandes acertos da Apple. A propósito, esse layout de notebook também é conhecido como "75%", já que possui aproximadamente um quarto a menos de teclas que o teclado padrão PS/2 de 104 teclas.
(Pra você ver como eu sou velho: eu ainda tenho saudade do layout do teclado PC/XT! Nunca engoli o layout PS/2, por conta do tamanho excessivo; o reposicionamento do Caps Lock também ocoreu no layout PS/2 e um monte de gente desgosta disso.)
Acabei me decidindo pelo modelo Tesoro Tizona Elite Blue, que estava entre os mais baratos. A Tesoro é uma empresa espanhola que só fabrica teclados, fundada justamente por jogadores. Algumas vantagens desse teclado:
A 'música' das chaves azuis:
A quase totalidade dos teclados mecânicos são conectados via USB. Eu queria mesmo um teclado com cabo, mas a maioria das pessoas prefere wireless.
Se você quiser gourmetizar mais na hora de comprar seu teclado, fugindo dos modelos bregas para gamers, o céu é o limite! Opções realmente chiques são o Unicomp e o Das Keyboard. Ambos os fabricantes oferecem opções "em branco" (teclas sem os rótulos) — ideal para esfregar seu talento de datilógrafo na cara dos colegas!
Obviamente o teclado funcionaria de primeira no Windows. Se você usa Windows, pode pular esta parte do texto. No Mac e no Linux, o teclado pede alguns ajustes, por questões de ergonomia.
No Mac, pelo menos na minha visão, o ideal é inverter as teclas Command/Windows e Option/Alt, de modo que o Command fique fisicamente ao lado da barra de espaço, tal qual no teclado Mac. Esta inversão pode ser feita nas Configurações do Sistema / Teclado / botão Teclas modificadoras... . A dica é configurar o teclado ligado diretamente no Mac. Se estiver ligado através de um hub USB, a configuração não "pega". Às vezes uma segunda mudança não "pega" mesmo assim, e é preciso reiniciar o Mac para efetivá-la. Depois da configuração feita e testada, o teclado pode voltar a ser ligado no hub USB.
No Linux, não seria preciso mexer em nada se eu fizesse acentuação com "teclas mortas". (Lembrando que este teclado Tesoro, bem como a maioria dos teclados mecânicos, não é oferecido no polêmico layout ABNT.) Porém estou muito acostumado com o método de acentuação do Mac (e.g. Option-E + A = á) e quero continuar utilizando-o. Isto traz dois problemas: lá onde a mão esquerda procura a tecla Option, está a tecla Windows. Uma simples inversão Windows-Alt esquerdo também não resolve porque o Linux atribui acentuação apenas ao Alt direito.
Para resolver isto, adotei o layout English (Macintosh) na configuração normal, e dei aquela mexidinha básica no arquivo /usr/share/X11/xkb/symbols/us. No final do layout "mac", adicionei as seguintes linhas:
include "level3(lwin_switch)" include "ctrl(nocaps)"
Tentei primeiro fazer manualmente, fazendo key <LWIN> { [ ... ] } mas não me garanti. Mexer nas entranhas do X11 continua sendo bruxaria, mas existem inúmeras macros para as customizações mais comuns, como as que eu fiz acima. Note que aproveitei o ensejo para transformar Caps Lock em Control, já que o Control é muito usado no Linux (e no Windows) mas os teclados de PC fazem-no muito pequeno.
Se você preferir não futricar com os arquivos originais do xkb, pode rodar o seguinte comando no início da sessão, que faz a mesma coisa:
setxkbmap 'us(mac)+level3(lwin_switch)+ctrl(nocaps)'
O comando acima pode ser invocado manualmente num terminal (para teste), pode ser adicionado no seu .xinitrc, e pelo menos no Ubuntu o app Startup Applications permite adicionar comandos para início da sessão (lá já vão estar o agente de chaves ssh e o agente PGP).
No meu caso adotei uma solução mista: deixar o lwin_switch no arquivo do xkb, para que meu filho (que também já está acostumado com a acentuação Mac) tenha o layout de teclado alterado; e invoco o comando acima apenas no meu usuário porque eu uso o Caps como Control, mas meu filho ainda gosta de escrever coisas ALL-CAPS.
Muito antes da gourmetização dos teclados, já existia entre os desenvolvedores de software um certo culto ao teclado. Um modelo cultuado já citei: o IBM Model M. Existe a tradição de arrancar o CAPS LOCK ou transformá-lo em Control. Alguns caçavam teclados de workstation Unix nos lixões de hardware.
Na época da Conectiva surgiu o Happy Hacking, um teclado minimalista, com apenas 60 teclas, pretensamente voltado a desenvolvedores. Sem setas, porque hacker que é hacker usa vi e o respectivo "diamante" HJKL para movimentar o cursor. Sem teclas de função, cuja utilidade atual tende a zero até para o usuário comum (a totalidade dos notebooks atuais usa as teclas de função como teclas de mídia). Tecla Control de volta a seu lugar de direito (acima do Shift esquerdo).
De qualquer forma, todas as teclas "inexistentes" são acessíveis via Fn, porque algum programa mala pode precisar delas. Hoje em dia o Happy Hacking meio que se prostituiu: há combinações FN até para teclas de mídia...
É um teclado relativamente caro: 229 Obamas. Ficaria feliz se alguém me desse um, mas não gastaria meu próprio dinheiro num bicho desses. Tenho dúvidas quanto a real usabilidade. Um concorrente ainda em desenvolvimento, o MiniGuru, parece mais bem pensado e tem inclusive um "pointing stick" para substituir o mouse. Resta saber se o MiniGuru vai ser lançado um dia...
Em 2016, já existem diversas opções de teclados Happy Hacking-esque para comprar. São mais conhecidos como "layout 60%". Também existem teclados "65%", que adicionam as quatro setas, e às vezes PgUp e PgDn.
A variedade e presumível popularidade tiraram um pouco do glamour original de usar um teclado sem teclas de função. Minimalista hoje é o teclado "40%", que também omite os números! Esse tipo ainda é difícil de encontrar, é montado artesanalmente por entusiastas, e provavelmente vai permanecer assim.
Pode soar reacionário (um reacionário falando algo reacionário, não seria uma completa surpresa), mas não boto muita fé nesses métodos de entrada alternativos, como por exemplo comandos de voz. Pode ser útil para alguns casos de uso, é bom e importante que exista, etc. mas eu não utilizaria para ditar textos, mesmo que funcionasse 100%.
Por quê? Pelo menos para mim, o processo mental da palavra falada é completamente diferente do que produz a palavra escrita, da mesma forma que ler um livro causa uma impressão completamente diferente de ouvir alguém ler o mesmo texto. (E ler o texto numa tela causa uma terceira impressão, distinta das duas anteriores.) Além disso, os dois processos correm em paralelo; enquanto eu estou "falando" comigo mesmo, estou digitando palavras completamente diferentes. Se eu usar ditado em vez de teclado, um processo fica sobrecarregado e outro fica ocioso.
Além disso, existe uma intimidade física entre mãos e teclado. Assim como os projetistas de automóveis e motocicletas quebram a cabeça de modo a transmitir as reações do veículo para os sentidos do motorista, e isso é importante mesmo que a eletrônica embarcada faça 95% do trabalho de manter o carro estável, existe uma conexão entre mente, mãos, teclado e texto. De certa forma o escritor "pega o texto nas mãos" no ato de digitar. Não estou alegando ser um bom escritor, nem mesmo vou alegar ser um escritor, ponto; mas o pouco que escrevo parece "fluir" desse jeito.
Então, quando escritores de verdade alegam que sentem-se melhor usando uma máquina de escrever mecânica, ou alguém lança um daquelas aplicativos "para escrever" que tomam a tela toda do computador ou do tablet para evitar distrações, eu acredito nessas coisas. Tem aquela história do Jack Kerouac ter datilografado seus romances em bobina de teletipo, para evitar a distração de trocar a folha.
Nessa linha, faz bastante sentido investir num teclado que agrade ao tato. Apenas acho que esse luxo podia ser um pouco mais barato. Provavelmente os teclados decentes são caros porque 99.99% do mundo se contenta com teclados ruins. Fico imaginando as conseqüências econômicas, ainda desconhecidas, da pervasividade dos teclados medíocres. Falam mal da IBM, mas ela fabricava computadores com teclados decentes.
(*) Já mudando preemptivamente o apelido da moeda nacional, para o caso da presidenta cair nos próximos dias, assim poupamos o trabalho de alterar o artigo a posteriori :)