Essa questão do nazismo, de ainda haver admiradores do nazismo por aí, principalmente aqui no sul do Brasil, é um assunto que volta à baila a cada tantos anos, como uma epidemia de sarampo. Desta última feita, o vetor foi a expressiva votação que o 22 obteve no sul, especialmente em SC.
Mas afinal, tá cheio de nazistas aqui ou não? Não vou entrar no mérito porque, por mais que eu falasse a respeito, não mudaria a opinião de ninguém. Tem gente que acredita que o 13 vai implantar o comunismo amanhã. Tem gente que acredita que temos forças paramilitares nazistas aqui no sul. Ultimamente as pessoas aferram-se tanto às suas fantasias que o negócio é sorrir e acenar.
Mas sim, há um e outro admirador do nazismo por aqui. Assim como há no resto do Brasil. Assim como há no resto do mundo. E tenho genuína curiosidade: por que alguém desejaria um regime totalitário, repressor e que prega a eliminação de "indesejáveis"?
A pergunta pode ser generalizada para outros sabores de totalitarismo, em ordem decrescente de estigmatização: fascismo, caudilhismo latino-americano, comunismo.
Acho que o principal fator é a ilusão de ordem e progresso. A ideia de uma sociedade perfeitamente ordeira, com todos os esforços humanos trabalhando na mesma direção, em perfeita coesão, com planejamento de longo prazo, e cada pessoa sabendo o que deve fazer para o mundo andar para frente, é fascinante. Faz pensar o quão rápido a ciência, a tecnologia e a qualidade de vida poderiam avançar em pouco tempo.
Tudo isso a troco de um pouco de repressão política no presente não parece tão mau. Talvez persigam algumas minorias aí, mas se eu não faço parte delas, não faz diferença para mim. Como disse um ex-presidente aí, todo mundo morre um dia, né?
A própria produção cultural, principalmente a de massa, ajuda inadvertidamente a espalhar essa ilusão. Como os nazistas são pintados no cinema? Cruéis e obstinados, porém inteligentes, culturalmente sofisticados, totalmente focados no seu objetivo, com uniformes sempre alinhados. Pense na popularidade do Hans Landa, do Bastardos Inglórios, que rendeu fama e fortuna ao respectivo ator.
No livro e no seriado The Man in the High Castle, o mundo alternativo em que os nazistas ganharam a guerra é tecnologicamente avançado e arquitetonicamente impressionante. Nesse mundo, Josef Mengele logra construir um portal para outros mundos, estilo Stargate. Um tema muito recorrente é a trinca de valores visão, vontade e foco, que seduziram John Smith, o oficial americano que ingressou nas SS quando os EUA se renderam, e acabou como Führer deste lado do Atlântico. O final do seriado sugere que o regime afrouxaria, iniciando a construção de uma sociedade mais liberal, sobre uma base sólida.
A estética e a propaganda são essenciais. O The Man... impressiona pela estética, pela arquitetura, pelos uniformes impecáveis vestindo homens fisicamente impecáveis. As pessoas julgam o livro pela capa; associam beleza a virtude, e estética a ordem e progresso. Disso os nazistas sabiam muito bem, e souberam explorar muitíssimo bem. Os soviéticos também sabiam, pelo menos até certo ponto, conforme mostram seus desfiles militares e seu hábito de selecionar atletas desde a tenra idade (e dopá-los) para fazer bonito nas Olimpíadas.
O problema é que toda essa fama de o nazismo induzir visão, vontade e foco na sociedade, é falsa.
O que o nazismo fez foi comer do cadáver da sociedade alemã, da bagagem cultural e tecnológica preexistente. Confundindo de propósito partido com identidade nacional, mobilizando (e mesmo pilhando) todos os recursos da nação num curto período de tempo, dando a sensação de progresso rápido, sem realmente plantar nada, nem criar nada novo. E quando o cadáver estava no osso, a Alemanha perdeu a guerra, de novo.
O que cria coisas novas e leva o mundo para frente é justamente esse processo desorganizado, caótico, espontâneo, sem ninguém bafejando na sua nuca, sem a obrigação de dar lucro ou frutos nos próximos 5 minutos, sem ter de seguir ideologia ou orientação "superior". O desenvolvimento científico e tecnológico é caótico, e por isso é um processo que definitivamente não empolga o homem comum.
Ao contrário do estereótipo do típico oficial SS de cinema, inteligente e culto, as SS recrutaram pessoas pobres ou fracassadas, e mesmo criminosos perigosos. Não é crime ser pobre ou fracassado; mas facilita a criação de um vínculo de dívida e lealdade, no estilo da máfia. Aos que tinham berço mais privilegiado, a SS também oferecia atrativos: prestígio e liberdade de ação para construir o "mundo melhor".
De um jeito ou de outro, cada homem da SS devia à agremiação uma vida que jamais teria na sociedade "normal" em tempos normais. A continuidade dessa vida, e a garantia de impunidade para os crimes contra a humanidade (que no fundo cada um sabia que estava cometendo) dependia da continuidade do regime de exceção.
É crível um povo pobre e desesperado ter cacoetes sebastianistas, mas... como os alemães se deixaram enganar? Além dos bem conhecidos traumas da I Guerra e dos problemas econômicos dos anos 1920 e 1930, o regime nazista fez as coisas acontecerem em progressão geométrica, sempre criando um caso novo quando o anterior parecia encaminhado, sem nunca dar tempo para a sociedade respirar e pensar.
Resta a especulação de como a Alemanha seria se o nazismo tivesse conseguido arrancar uma vitória parcial ou um empate na guerra. Eu acho que não iriam muito longe. Temos uma amostra para comparar: a União Soviética. Mandou primeiro o homem para o espaço, mas o povo passava horas na fila para comprar um simples pão.
A propósito, os produtores do The Man in the High Castle usaram muito a arquitetura do leste europeu comunista como base para renderizar as paisagens do seriado. Mais, é claro, os planos para a nova Berlim que o Albert Speer do mundo real nos deu de bandeja. Em todo caso, são arquiteturas austeras, brutalistas, com o objetivo de apequenar a pessoa, fazê-la ver que sua individualidade não vale nada.
Também do mundo comunista extraímos outra lição: as estruturas de coerção estatal custam caro e acabam frustrando completamente o objetivo inicial de obter progresso rápido por meio de coordenação central. Para um mundo como o de The Man... funcionar, você precisa de um Estado paquidérmico, que consome quase toda a produção econômica.
Para tentar compensar isso, é necessário estar pilhando e escravizando pessoas, o tempo todo, sempre renovando o plantel, porque pessoas lesadas ou escravizadas tornam-se apáticas e deixam de ser membros produtivos da sociedade. É um aspecto citado no livro, mas que o seriado falhou em citar.
O que levanta a questão da perseguição a minorias. É impressionante a capacidade do ser humano de digerir injustiças que o beneficiam, ou pelo menos que não lhe afetam. Mas um governo totalitário está sempre criando problemas novos e procurando novos bodes expiatórios, então todo mundo terá sua chance de ser um perseguido. (Fica a dica: pagar de colaboracionista não funciona no longo prazo.) E quando o estoque finalmente acaba, o regime entra em autofagia e implode.
O ponto é: o homem comum deixa-se iludir pelo slogan "ordem e progresso" e aceita consideráveis perdas em outras frentes, como nos direitos humanos, se acredita que obterá ordem e progresso a câmbio. Como convencer as pessoas que essa troca não tem como dar certo?
Como disse um colega de trabalho da época da Conectiva (o gwm), os países democráticos permanecem democráticos porque existe uma boa dose de repressão para que assim seja. Pode não ser necessariamente repressão policial, mas certamente há uma boa dose de doutrinação para que as pessoas permaneçam acreditando que o regime democrático é o menos pior.
Isso é mais visível na Europa, principalmente nos países nórdicos. Os cidadãos recebem doses cavalares de doutrinação para manter a fé no Estado de bem-estar, e são controlados com rédea bem curta. Tá cheio de vídeos de brasileiros que mudam para lá e estranham deveras. Muitos não aguentam e voltam.
Essa doutrinação não é o aspecto mais sexy da nossa sociedade ocidental democrática, mas é necessária (talvez não na dose dos países nórdicos, mas é). A tendência natural do ser humano é na direção de um regime totalitário. As pessoas são fascinadas por regimes de pura ordem, sem segurança jurídica, porque isso terceiriza responsabilidades.
Não seria tão melhor que o Estado varresse a calçada da frente da nossa casa todo dia, deixando a cidade sempre limpinha, em vez de ter de contar com a iniciativa de cada morador? Quiçá usando mão-de-obra escrava, empregando presidiários, dissidentes, "indesejáveis" de todo o gênero, para não onerar os cofres públicos? (Admita aí que você gostou da ideia, ainda que apenas por um milissegundo.)
O que as pessoas percebem como "ordem" e eficiência, é muitas vezes preguiça mental, é evitar o esforço de pensar e fazer por si mesmas.
Especificamente no caso do nazismo, nas aulas de história existe um foco muito grande nos movimentos militares da II Guerra Mundial, e quase nenhum no processo político interno, em denunciar o artificialismo da prosperidade criada temporariamente pelo nazismo. Repete-se muito aquele mantra que o Mussolini fez os trens andarem no horário, fica sempre aquele gosto na boca que alguma coisa do fascismo seria aproveitável.
Fala-se muito sobre a perseguição aos judeus, mas os livros falham em mostrar que isso é uma padronagem comum: políticos e governos apontando bodes expiatórios para os problemas que eles mesmos criam. Basta abrir o jornal para ver isto acontecendo aqui e agora. (Felizmente, no nosso caso, é da boca pra fora.) O que distinguiu o nazismo foi acreditar na própria mentira, criando uma reação em cadeia, o "equivalente sociológico de uma bomba nuclear", nas palavras de Ian Kershaw, o melhor biógrafo de Hitler, na minha opinião.
Muita gente acha que um processo totalitário como o nazismo poderia ser temporário. Prende quem tem de prender, mata quem tem de matar, e ao final resta uma sociedade "melhor", estilo nórdico, onde já não é preciso usar de violência porque todo mundo já entendeu que tem de andar na linha. Em suma, acreditam que o processo é convergente.
Mas ele é divergente; dê ao governo ferramentas de coerção física aos bodes expiatórios du jour, e as "Grandes Purgas" nunca mais cessarão. O nazismo não conduz à sociedade nórdica, assim como o socialismo não conduz ao comunismo utópico. Conduz antes a países-prisão, com condições de vida horríveis e situação material de volta à idade da Pedra.
No Brasil, temos desafios adicionais. A república foi proclamada por positivistas. Getúlio Vargas, o homem mais importante do Brasil republicano, era um fascista, ainda que tropicalizado, de boa índole e de vistas muito mais largas que os caudilhos da época. O Brasil foi um país que saiu de um regime fascista melhor do que entrou, isso é forçoso admitir. Os ecos de um estado dirigista ainda se fazem sentir. A própria esquerda majoritária é orgulhosa herdeira do getulismo.
Para pegar mais uma vez no pé dos países nórdicos, é impossível não notar que eles possuem populações pequenas e etnicamente homogêneas. "Coincidentemente", são sociedades com alta coesão social; e conforme imigrantes são admitidos muito rápido, essa coesão social se esgarça visivelmente, vide o que está acontecendo na Suécia por esses dias. Muita gente logo deduz que então os nazistas tinham uma pontinha de razão. Como eu vejo o copo meio-vazio, isso para mim é antes uma faceta desgraçada do ser humano do que um alicerce para construir algo em cima.
É mais um problema para nós brasileiros: criar uma identidade nacional sólida sem basear-se numa etnia, nem em costumes homogêneos, nem num território com características homogêneas, pois somos um país continental e um manauara sempre terá uma vida radicalmente diferente de um pelotense, mesmo que sejam gêmeos univitelinos. É difícil... mas não é impossível. Os gaúchos enxergam-se como gaúchos independente da etnia, e Getúlio bem que tentou, via fascismo, imprimir uma identidade nacional baseada na "mistura das 3 raças", e não se pode negar que a ideia colou até um certo ponto.
Com esse pano de fundo, como é que se convence as pessoas que fascismo & cia. são ruins?
Enfim. Professores de história: virem-se, estou largando a bomba na mão de vocês.
Por conta do "8 de janeiro", está sendo muito citado o "paradoxo da tolerância" de Karl Popper. O contexto principal é usar das liberdades democráticas para pedir um golpe, mas a tolerância com grupos neonazistas entra nesse bojo.
Eu já fui da opinião que não deveríamos criminalizar nem proibir. Minha visão era a seguinte:
Hoje eu já não tenho tanta certeza, porque ficou claro que o número de pessoas com tendências extremistas é muito maior do que pensávamos, e os extremistas de direita estão em posição de fazer mais estragos.
Como disse o Reinaldo Azevedo, as sociedades ocidentais preocuparam-se muito em manter seus extremistas de esquerda sob rédea curta — porque nos anos 1970 os Baader-Meinhof da vida eram um problema muito mais premente que os neonazistas — e descuidaram dos extremistas de direita.
É claro, policiar e/ou criminalizar opinião, mesmo que se trate de opinião extremista, acaba sendo um dirigismo com risco real de descambar para repressão de correntes políticas legítimas. Há também o risco da repressão criar um espírito de corpo ainda mais intenso entre os extremistas, "confirmando" sua visão distorcida de mundo. Mas, se o problema tivesse solução simples, não seria um paradoxo, né?
Para satisfazer sua curiosidade, só vou abrir que votei no 12, inclusive no segundo turno. A prosperidade recente, mesmo em tempos de pandemia, que o sul do Brasil tem experimentado e que muitos creditam ao 22, na minha opinião é conseqüência de uma base industrial sólida e do dólar alto — é a receita cirogomista de desenvolvimento, sem tirar nem pôr.