Pessoas mais próximas talvez saibam que estudei Direito por dois anos, numa época em que cogitei mudar de profissão. Acabei trancando pela oportunidade de trabalhar na Conectiva, e depois do 11/9 as coisas ficaram bem caóticas, não tive cabeça para continuar. Mas considero um dos melhores investimentos em educação que já fiz. Foi uma experiência que "abriu a cabeça", e até os colegas de classe foram as pessoas mais interessantes com quem já convivi num curso acadêmico.
Num mundo ideal, todo mundo deveria receber uma formação básica em Direito. Quando mais não seja, porque existe muita gente safada que tenta crescer para cima dos outros, ameaçando entrar com ação X ou Y, contando com a ignorância das vítimas e/ou com o medo ou a "vergonha" de responder a uma ação judicial (***).
Nem tudo eram flores. A lógica jurídica é bem estranha para quem vem de um background de lógica matemática ou computacional. Também me incomodava que pela lei você tem direito disso, direito daquilo, mas havia um elefante na sala: quem paga por tudo isso? Aliás, esse é um estereótipo que poderia ser mais explorado pelos humoristas: o estudante de direito que acha que descobriu a pólvora, sai ameaçando processar tudo e todos, acha que o Direito é uma panaceia.
Um exemplo: na época a Constituição prescrevia taxa de juros reais máxima de 12% ao ano, o que era solenemente ignorado pelo sistema financeiro. Como pode isso?! Três professores tinham três opiniões diferentes sobre o caso. A minha própria opinião é: legislação que vai de encontro às leis da Física é letra morta, e por analogia a lei que vai de encontro às leis da economia tambem o é, mesmo que seja um artigo da Constituição. A taxa SELIC nessa época variou entre 19% e 45% ao ano. Teria sido divertido perguntar a um causídico qualquer que estivesse pleiteando tomar emprestado a 12% ao ano se ele aceitaria emprestar ou aplicar por apenas 12% ao ano.
O curso tinha uma infra-estrutura péssima; a boa fama era toda devida aos bons professores. Um deles, Norberto Schwartz, já falecido, era tão emérito que não ia mais ao tribunal, só elaborava teses. Uma elas é que mandado de segurança (*) deveria gerar honorários advocatícios. Ao impetrar um mandado, ele sempre pedia, e o juiz sempre negava. Mas o simples pedir não gerava penalidade, ele considerava o pedido justo, ainda que inócuo; e água mole em pedra dura...
Mais ou menos nessa época, criei um embrião de tese que poderia colocar à prova no futuro: a compensação por danos materiais em acidentes de trânsito deveria ser limitada a, digamos, um múltiplo baixo da mediana (**) do preço de um carro novo.
Dirigir é inerentemente perigoso, todos estamos sujeitos a cometer alguma barbeiragem, não acho justo alguém ir à falência porque teve o azar de bater num carro de 2 ou 3 milhões. Note que este um risco impossível de mitigar, pois os próprios seguros têm limite de cobertura.
Quem quer colocar um carro de 3 milhões na rua deve ser livre para fazê-lo, porém deve arcar sozinho com os riscos materiais, uma vez que o sistema viário é um bem público, dirigir é na prática um multiplicador indispensável do direito de ir e vir, então o Estado faria bem em limitar os potenciais passivos dos participantes.
Se eu fosse adEvogado por esses dias, levantaria ainda outra bandeira: o pão-durismo da justiça brasileira na hora de calcular indenizações por dano moral, emocional ou pessoal: agressão, ameaça, injúria, calúnia, violência ou truculência policial, homicídio, erro médico, etc.
Existe uma jurisprudência de extrema parcimônia nas indenizações por dano moral. Uma justificativa difusa é desencorajar a suposta indústria de indenizações baseada em ações frívolas, que entopem um Judiciário já sobrecarregado. Ademais, indenizações muito gordas caracterizariam enriquecimento sem causa; o objetivo de uma indenização é tão-somente restaurar o status quo.
Compreendo o princípio norteador, embora não concorde totalmente com ele. Nos EUA, as indenizações civis podem incorporar uma parcela de caráter punitivo, o que acaba turbinando os valores finais. Noves fora os exageros, eu acho isso correto, porque via de regra o dano moral é subnotificado e o perpetrante é reincidente. A vítima que se sujeita ao incômodo de processar deve ser compensada por isso, porque num certo sentido ela está prestando um serviço ao público.
Mas o ponto que realmente pretendo discutir aqui, é que o status quo custa muito mais caro do que os juízes andam calculando Brasil afora.
As indenizações concedidas no Brasil são, via de regra, irrisórias. Basta procurar no Google pelo assunto para encontrar inúmeros exemplos. Vou citar apenas este onde um homem perdeu a visão de um olho numa agressão, e a indenização foi fixada em R$ 30 mil. Em que planeta isto é indenização suficiente? Em casos de agressão sem sequelas permanentes, as indenizações ficam na faixa de R$ 2 mil, 5 mil...
Ok, não resisto: aqui vai outro exemplo interessante onde se justapõem uma indenização irrisória por violência policial, com outra vultosa (e a meu ver desarrazoada) porque nesta o ofendido é um juiz, por sinal o mesmo que determinou aquela.
Parafraseando a teoria das janelas quebradas, essa leniência generalizada com os comportamentos anti-sociais ditos "de menor potencial ofensivo" cria um ambiente de sensação de impunidade. Muita gente acha que pode fazer a merda que quiser, que não pega nada. É só dizer que perdeu a cabeça, ou que não sabia, ou que estava doidão, e está perdoado. Até que um dia o sujeito passa do ponto e comete um homicídio, quiçá um feminicídio — e fica surpreso quando vai para a cadeia.
Na tentativa de evitar uma indústria de indenizações, fomenta-se a indústria da agressividade, da truculência e da desconfiança mútua. E os juristas ficam coçando a cabeça, se perguntando porque tanta gente mata, porque tanta gente dirige de forma agressiva...
O trauma emocional é particularmente negligenciado. Uma pessoa que sofre bullying, assédio, agressão, racismo, ficará psicologicamente abalada por anos, talvez mesmo pela vida toda. Por muito tempo essa pessoa vai hesitar em sair de casa, talvez não consiga trabalhar, certamente vai ter problemas em estabelecer e/ou manter relacionamentos, pode ter de fazer tratamento caro (pesquise aí quanto custa uma única consulta com psiquiatra particular).
Numa busca rápida, vemos que as indenizações nos EUA são algo entre 100 vezes e 1000 vezes maiores que as nossas. Pinçando um exemplo que todo mundo conhece: a família do George Floyd fez um acordo e aceitou uma indenização de R$ 150 milhões. A família do Amarildo está para receber R$ 3,9 milhões, depois de 10 anos de recursos, neste momento deve estar na fila dos precatórios.
"Ah, mas os EUA são muito mais ricos!" Sim, mas o PIB per capita dos EUA não é 1000x maior que o nosso. É apenas 10x maior. Mesmo corrigindo por este fator, nossas indenizações típicas ainda são 10x a 100x menores. Fora a demora do trânsito em julgado. Fora a fila dos precatórios, quando o perpetrante é o Estado (o que infelizmente não é nada raro no Brasil).
(*) Mandado de segurança é uma espécie de liminar para proteger direitos contra abusos de autoridades públicas. É utilizado quando não cabe outras ações mais específicas como habeas corpus. Mais detalhes nesta página.
(**) Mediana não é média, embora os valores sejam iguais numa distribuição normal.
(***) Exemplos: a) Amigo deixou todos os bens, inclusive de antes do casamento, para ex-exposa que ameaçou fazer todo tipo de acusação falsa contra ele. b) Cliente, na pessoa de um gerente arrivista, ameaçou chamar a polícia caso não cumprisse o prazo (impossivelmente curto, e por ele determinado) de um projeto. "Demiti" o cliente, que demitiu o tal gerente quando descobriu que seu CV era falseado. (E continua falseado — o cidadão não menciona no LinkedIn que trabalhou na empresa em questão.)