Há alguns dias, tive o prazer de embarcar no Trem das Etnias. É a reativação do passeio de maria-fumaça em Porto União/SC, que já existiu no passado, até o final da década de 2000.
Este, mais o Trem das Termas em Piratuba/SC, são os únicos trechos ativos da Ferrovia do Contestado, de Mafra/SC até Passo Fundo/RS.
No momento, o passeio percorre um trecho relativamente curto entre as estações de União e Engenheiro Melo. Mas como o trem parte de um ponto intermediário (Instituto Cultural Grünenwald) e pára em cada estação, com atrações em cada local, o passeio dura 2h.
No futuro, a ideia é esticá-lo até a estação de Aquiles Stenghel, passando por mais um túnel e pelo “viaduto do km 13”, ponto turístico bem conhecido.
A Ferrovia do Contestado permaneceu sem tráfego de carga, mas em condições relativamente boas, até meados da década de 2010. Nos anos 1990 e 2000, o passeio de trem chegava esporadicamente a Caçador/SC, e pelo menos uma vez foi até Irineópolis/SC. O passeio maria-fumaça parou em 2009, por uma disputa sobre quem era “dono” da locomotiva.
Aí vieram as chuvas de 2014, que destruíram muita coisa, aí o abandono tornou-se completo. (Sinistramente, o mesmo aconteceu com o Tronco Principal Sul em 2024, cujo tráfego já era pouco e também cessou, sem previsão de retorno.)
Em 2020, uma associação local lançou a iniciativa do Trem das Etnias, com duas frentes: restauração da locomotiva 310, e a recuperação de um pequeno trecho ferroviário na região de Porto União. O trabalho incluiu a implantação de desvios em cada ponto de manobra.
Demorou bastante, mas contra todas as probabilidades, deu certo! Em particular a recuperação do leito ferroviário demonstra o quanto consegue realizar uma equipe pequena, porém motivada e trabalhando imperturbavelmente.
A locomotiva 310 é muito querida pois ela é centenária e realmente trabalhou neste trecho ferroviário na época áurea dos trens a vapor. Em muitos outros passeios de maria-fumaça, o material rodante é relativamente recente e oriundo de outras ferrovias. Por exemplo, a icônica 204 do passeio de Rio Negrinho/SC é oriunda da Ferrovia Tereza Cristina.
É só um detalhe, mas importante para quem é nostálgico abestalhado ^W^W connaisseur.
(Não desmerecendo obviamente quem mantém uma maria-fumaça funcionando, seja de onde ela tenha vindo. A restauração da 204 demonstra a capacidade técnica da ABPF-SC, ela é uma das poucas locomotivas Mallet em funcionamento no mundo, inclusive veio gente do estrangeiro fazer o passeio inaugural.)
A ideia inicial era que a restauração da 310 fosse feita pela ABPF-SC, na oficina de Rio Negrinho, que é referência neste tipo de empreitada. Houve algumas complicações, inclusive devido à pandemia e o trabalho acabou sendo feito em Porto União mesmo.
Apesar do passeio ser curto em quilometragem, ele conta com todos os elementos que compõem o estereótipo ferroviário: estação no centro da cidade, subida de serra, túnel.
Toda a região é de fácil acesso e muito segura (tanto do ponto de vista de Murphy como de Maquiavel), então fique mais um dia na cidade e refaça mais um batidíssimo vídeo do trem entrando ou saindo do túnel, desta vez do lado de fora.
A ferrovia está tristemente desativada para cargas (surgiu recentemente uma conversa para o estado assumir os trechos inativos da concessão federal). Entrementes, a cidade de Porto União teve a iniciativa inteligente de aproveitar a faixa de domínio para formar um longo parque linear, com ciclovia, evitando que as áreas fiquem sem uso ou degradem de outras formas.
Até a icônica ponte ferroviária sobre o rio Pintado, que estava no mato, foi adaptada para caminhada e ciclovia, além de servir como acesso de emergência para o distrito industrial em caso de enchentes, pois é mais alta.
Falando em nostalgia, é bem verdade que o trecho ferroviário que sobe a Serra Geral não é mais o original. O trem percorre a “variante de São João”, construída nos anos 1940. Ela possui seis túneis, enquanto o trecho original (que virou estrada de rodagem) não possuía nenhum túnel.
A variante começa atacando a serra pelo bairro Bela Vista, quase paralelamente à linha para São Francisco por um bom trecho, enquanto o leito original passava pelo bairro Vice-King. O ponto de inflexão fica próximo da Havan. O desvio para a linha original ainda está lá, pois um trecho da mesma sobreviveu mais alguns anos como ramal particular.
Trivia: da antiga ponte ferroviária até a Estrada Velha para Palmas, no bairro Vice-King, o acordo de limites entre SC e PR adotou o leito original da ferrovia como limite estadual, por aproximadamente 6km a partir da ponte de ferro.
Aproveitei a estadia para visitar a cidade vizinha de Porto Vitória/PR. A cidade em si é pequena e não tem grandes atrativos, embora a paisagem na chegada cause impressão. O atrativo é a geografia física do entorno, muito montanhoso. Senti falta de mirantes para melhor apreciá-la.
Nessa região, o Rio Iguaçu (altitude de 750m) logra atravessar a Serra Geral (1200-1400m de altitude). Em alguns pontos ele fica surpreendentemente estreito. Em outros, torna-se encachoeirado. São as famosas corredeiras de Porto Vitória.
É um gargalo natural que retarda o escoamento das águas quando chove muito a montante, provocando as célebres enchentes da região. Na última ocorrência, em 2023, alguns quarteirões ficaram inundados por semanas a fio.
Uma das soluções propostas é a remoção ou aprofundamento do leito de pedra das corredeiras em Porto Vitória, porém seria uma obra faraônica (custo na casa do bilhão de dólares) e ambientalmente agressiva, sendo provavelmente mais sensato desocupar as áreas urbanas suscetíveis e/ou construir um vertedouro para desviar parte das águas. Esta apresentação detalha as diversas propostas para mitigação do problema das enchentes.
Segue mais alguns vídeos do passeio, a quem interessar possa.