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Trem da Serra do Mar

Neste fim-de-semana a dose de train pr0n foi cavalar, foram 30h que pareceram uma semana inteira. Alvará da muié na mão, passeio em solitário.

Figura 1: Subindo a Serra do Mar no trem a vapor

Sábado de manhã, acordar cedo para ir até Rio Negrinho e pegar a maria-fumaça. A ABPF (Associação Brasileira de Preservação Ferroviária) mantém funcionando diversas locomotivas a vapor Brasil afora e promove passeios periódicos.

Este de Rio Negrinho é talvez o mais conhecido de todos (dentre os da ABPF; considerando as iniciativas comerciais, o Curitiba-Paranaguá é de longe o mais famoso), e é realizado todo mês. É uma das pouquíssimas oportunidades de viajar num trem de passageiros, ainda mais a vapor.

O trem vai de Rio Negrinho/SC a São Bento do Sul/SC, mais precisamente até uma localidade chamada Rio Natal, núcleo de colonização polonesa. Em linha reta é um passeio muito curto, mas com um pequeno detalhe: enfrenta boa parte do desnível da Serra do Mar. Isto proporciona belas paisagens montanhosas, Mata Atlântica, e a apreciação de uma obra centenária que é a Ferrovia São Francisco, que vai do porto homônimo até Mafra/SC.

Figura 2: Embarque em Rio Negrinho

De certa forma este passeio é uma versão "light" do Curitiba-Paranaguá: desce apenas metade da serra, dura metade do tempo, há menos túneis, e os abismos são menos profundos. Em vez de comida típica paranaense, é comida típica polonesa, servida na igreja católica do Rio Natal.

O passeio costumava ir até Corupá no início dos tempos, mas foi sofrendo sucessivos encurtamentos, e agora nem vai até a estação de Rio Natal, que está abandonada e caindo aos pedaços. (O mesmo aconteceu com o trem paranaense que agora só vai até Morretes).

Tem aquelas coisas típicas de programa para turista "de fora": bandinha de música, venda de lembrancinhas, etc. etc. Me deixaria irritado antes de 2005; depois de ter morado fora daqui, aprendi a valorizar tais coisas, ou suportá-las melhor :) Achei que ia ter meia dúzia de gatos pingados no passeio; que nada, foram 4 vagões cheios, o que dá 200 pessoas.

Figura 3: Embarque em Rio Negrinho

A atração única do passeio da ABPF/SC é a maria-fumaça. Locomotivas em geral impõem respeito, mas a máquina a vapor parece um enorme bicho vivo. Emana calor, faz barulho, precisa de cuidados constantes. Ficar no caminho do vapor durante os "purges" do excesso de pressão pode custar caro à saúde...

O apito é naturalmente muito mais musical que a buzina das locomotivas diesel. Por outro lado, o cheiro do carvão mineral queimado não é exatamente agradável; é algo que certamente enjoaria se tivesse de ser enfrentado periodicamente.

É curioso ver como as pessoas à beira da linha ainda acenam para o trem a vapor, apesar dele passar todo mês por muitos anos, e os trens cargueiros passarem várias vezes por dia...

Segue o playlist com todos os videos que fiz durante o passeio. Enjoy.

Um probleminha do passeio de ontem foi a chuva intermitente. Não chegou a exigir que se fechassem as janelas, mas me deu trabalho dobrado para filmar e fotografar. Felizmente, a chuva parou completamente durante a volta, o que permitiu uma apreciação completa e fez a felicidade da maioria das pessoas que pareciam muito interessadas na Mata Atlântica preservada.

Figura 4: Trecho ferroviário de serra, proximidade igreja Rio Natal

Claro que eu também gosto de mato, mas sou habitué das estradas do Rio Natal há muito tempo; meu interesse principal era a ferrovia em si, que em muitos trechos divergem da estrada e portanto eram completamente novos para mim.

O passeio começa as 10:00 e termina as 15:00, sempre em Rio Negrinho. Sobrou um bom resto do dia para ir à Pousada João de Barro deixar minhas coisas e ir passear um pouco na cidade, que está toda enfeitada para o Natal. Uma gigantesca chaminé da finada Móveis Cimo, que hoje enfeita a praça da prefeitura, foi toda decorada com luzes de modo a parecer com uma vela à noite.

A pousada está mais para um hotel, de muita classe e bom-gosto, até antiguidades como livros-caixa da época áurea da ferrovia adornam o salão de jantar, cujo terraço proporciona vista da parte central da cidade. Pena estar chovendo.

Figura 5: Paisagem noturna natalina Rio Negrinho/SC

Apesar de os cargueiros (cuja freqüência é função da safra da soja) serem muito raros nesta época do ano, passaram pelo menos dois enquanto eu estava no meu quarto. Vontade de pegar o carro e ir lá embaixo. Só não foi porque estava chovendo muito àquela hora da noite.

Domingo de manhã, infelizmente é hora de ir embora. Surpreendentemente, um dia de sol perfeito. Vou para meu segundo objetivo: visitar uma ponte ferroviária na divisa entre Rio Negrinho e Mafra, sobre o Rio Preto. Esta ponte não é diretamente alcançável por nenhuma estrada, é preciso andar 1,4km pelo trilho.

Meus "sagrados" mapas do IBGE não alcançam esta área, mas o Google Earth socorreu-me nesta; fui com o mapa impresso (não pega celular lá, o Google Maps do celular seria inútil) e foi uma boa idéia ter levado a impressão pois eu tive dificuldades de achar a estradinha que dá acesso ao local.

O GPS também fui útil, já que andar sobre trilhos acaba embolando os passos, e a excelente técnica escoteira de contar passos duplos para estimar distância deixa de funcionar. (Caso não conheça esta técnica, é muito simples: percorra uma distância exata contando apenas os passos de um pé, por exemplo o seu pé direito, e determine quantos passos precisou para percorrer 100m. Uma pessoa adulta usa entre 50 e 70 passos duplos. Quando precisar estimar uma distância à pé, simplesmente conte os passos. Se você usa muito essa técnica, refaça a estimativa inicial a cada meio ano, porque o tamanho do passo duplo de cada pessoa muda com o tempo.)

Figura 6: Ponte ferroviária em Avencal, Mafra/SC

É uma sensação estranha andar pelo trilho completamente sozinho, num silêncio ensurdecedor. Sempre vem aquela preocupação com segurança, embora a região seja extremamente tranqüila neste aspecto. Além do aspecto "security", tem o aspecto "safety", que é bem mais premente. Se me acontece algo, se eu caio num buraco, vai demorar um bom tempo até alguém passar por ali e achar o corpo.

Mas tudo transcorreu sem incidentes e missão cumprida. Infelizmente não passou nenhum trem para posar para minhas fotos, e eu tenho muito medo de altura, de modo que não atravessei a ponte para tirar fotos melhores da desembocadura do Rio Preto no Rio Negro. Na verdade o local é vizinho ao pátio de uma estação abandonada (Avencal), conforme descobri in loco. O pátio é utilizado para cruzar trens.

Figura 7: Pátio ferroviário em Avencal, Mafra/SC (2019)

Hora de voltar para casa, é claro que eu ia ordenhar o passeio de volta para ver mais trilhos, e quem sabe algum trenzinho de carga. Cheguei novamente à mesma igreja do Rio Natal seguindo por um caminho que eu não conhecia (Estrada dos Bugres). Mais um para a coleção do "senhor dos caminhos" :)

O GPS ajudou novamente, não para achar o caminho, mas para cantar a altitude, que era neste caso a chave para saber se estava indo no caminho certo (350m era o alvo). Desci o Rio Natal e, a caminho de Corupá, ouço o barulho de uma locomotiva diesel...

Figura 8: Pátio estação Rio Vermelho

Claro que eu não ia deixar passar barato. Fiz meia-volta e fui na mesma direção que ela. Infelizmente, a estrada de terra é cheia de curvinhas. E apesar da rampa desta ferrovia ser íngreme para os padrões ferroviários (3%) o trem anda rápido, e com a vantagem de andar em linha quase reta.

Quando cheguei no primeiro cruzamento, só vi vagões. Subi mais um pouco, perdi de novo. Neste ponto o trem faz uma volta e entra num túnel, enquanto a estrada vence o mesmo desnível muito mais rápido em linha reta. Mesmo assim, quando cheguei lá, só vi a fumaça da locomotiva. Ainda por cima apertei mal o botão Record do celular e nem os vagões que pensei ter filmado foram gravados. #FAIL.

Eu poderia ter subido até Rio Natal novamente e pegar o trem na estação abandonada, mas já estava na hora de ir pra casa, e vai que eu me atraso e perco o trem de novo? E foi assim não consegui ver sequer uma locomotiva diesel neste fim-de-semana (só vi a fumaça). Não se pode ganhar todas.

Filmagem

Em geral, se eu tenho a opção de fotografar ou filmar, prefiro fotografar. Mas no caso do passeio da maria-fumaça, faz muito mais sentido filmar, principalmente se se quer mostrar algo para terceiros. Deve ter sido o primeiro teste sério que fiz com o modo de filmagem da minha câmera Sony DSC-W150, e do celular Nokia N85.

Como a memória da câmera é de apenas 2GB e a Sony gera arquivos muito grandes (MPEG-2, creio eu), e eu não confiava na qualidade de filmagem do N85, acabei filmando até esgotar a memória da câmera. Ainda inventei de fazer alguns videos com qualidade "Fine" e aí a memória foi pro saco bem rápido.

Tive de apagar um ou dois vídeos menos interessantes para abrir espaço e tirar umas fotos extras, já que as fotografias do N85 são comprovadamente sofríveis. Até fiz uns filminhos com o N85, mais para testar como ficariam.

Por incrível que pareça os videos do N85 ficaram muito bons, no meu entendimento ao par com os da Sony, e num formato muito mais compacto (H.264) — fora que o celular vem com 8GB de memória na caixa. Da próxima vez, o N85 vai ser mais bem utilizado.

A terra, o homem e a luta

A Ferrovia São Francisco completou 100 anos em 2010, se considerado o início da construção — 1910. Ela chegou à Mafra em 1915. O principal desafio foi naturalmente a subida da Serra do Mar, que a ferrovia fez aproveitando o vale do Rio Natal.

Já havia uma estrada, ou picada, que subia por ali até São Bento do Sul (a Estrada Geral do Rio Natal) e a ferrovia tenta seguir mais ou menos o mesmo caminho, exceto quando a estrada é muito inclinada, quando então a ferrovia serpenteia por morros próximos para manter a declividade máxima de 3% — a mesma da ferrovia Curitiba-Paranaguá.

Figura 9: Paisagem aérea subida da serra da ferrovia

Acima está o snapshot ampliável do Google Earth para o trecho mais sinuoso, na localidade denominada "Rabo do Macaco", pouco acima de Rio Natal. Para efeito de escala, a largura da imagem é aproximadamente 2km, e os túneis #2 (direita), #3 e #4 (esquerda) estão marcados. Para cima = norte = subindo.

Esta ferrovia foi importantíssimo vetor de desenvolvimento para as regiões por onde passa, a começar pela exportação de erva-mate e madeira, substituídas paulatinamente pela industrialização do Vale do Itapocu, São Bento e Rio Negrinho.

O transporte de passageiros era o único meio razoável para viajar de Joinville ao Planalto, e mesmo depois das rodovias e linhas de ônibus continuou sendo mais barato, sendo assim preferido por muita gente até sua extinção completa no final dos anos 1980.

Note que comunidades como Rio Natal e Osvaldo Amaral, que tinham estação ferroviária, parecem não ser servidas por ônibus de linha até hoje, e a lacuna deixada pela extinção do trem de passageiros segue aberta.

Figura 10: Estação do Rio Natal (abandonada)

Os meios da época impunham o uso de vales e várzeas de rios, coisa que hoje em dia não seria permitida por motivos ambientais. Mesmo na área de planalto, uma olhada no Google Earth mostra que a ferrovia entre Mafra e Rio Negrinho segue quase que perfeitamente o curso do Rio Negro em sua margem sul.

O resultado é uma ferrovia cheia de curvas aparentemente desnecessárias, o que dá origem àquelas lendas que os ingleses introduziram curvas desnecessárias pois cobravam por quilômetro. Na verdade, as curvas evitaram muitas obras proibitivamente caras como cortes, aterros, pontes, viadutos e túneis.

Figura 11: Ponte ferroviária entre São Bento do Sul e Rio Negrinho/SC

A alternativa seria uma ferrovia com funiculares ("locomotivas" sem motor, puxadas por cabo de aço, com maquinário a vapor estacionário), ou uma ferrovia com cremalheira. A principal ferrovia que sobe de Santos para São Paulo nunca foi de simples aderência; era funicular e agora é cremalheira.

Provavelmente seria esta a solução numa ferrovia construída aqui nos dias de hoje. A obra mais simples e impacto ambiental menor são compensadas pela maior complexidade da operação, já que é preciso trocar de locomotiva antes e depois da serra; ou construir locomotivas especiais para o trecho, como é o caso das Hitachi de São Paulo.

Os "antigos" preferiram simples aderência, e provavelmente imaginaram que, uma vez a ferrovia lucrativa e a tecnologia evoluindo, o traçado seria retificado. Era praxe na época fazer uma ferrovia meia-boca com previsão de retificações a médio prazo se tudo desse certo.

Mas a escassez de meios tecnológicos foi substituída pela burrice dos nossos governantes, a ferrovia ainda mantém o traçado original, passando por dentro dos centros de diversas cidades, sem necessidade nenhuma já que hoje os trens só trabalham com carga a granel. O mesmo para quase todas as outras ferrovias importantes do Brasil.

Figura 12: Estação ferroviária de Joinville/SC (preservada)

Isto tem um aspecto positivo inesperado: o deleite dos amantes de ferrovias. Tais ferrovias centenárias são museus a céu aberto, talvez únicos no mundo. O Brasil detém, por exemplo, o recorde mundial de declividade para ferrovias sem cremalheira dentada: 10%, em Campos de Jordão.

Em contraste, considere a Ferrrovia do Aço, que foi construída nos anos 70 com parâmetros modernos: 1% de declividade máxima e curvas de 900m de raio mínimo. 25% do comprimento dessa ferrovia está sobre alguma obra de arte (túnel, viaduto, ponte etc.) e ela é bastante longa. Acho que o mais longo dos túneis (8km) também é recorde mundial.

A declividade é importante pois determina quanto peso uma locomotiva consegue puxar sem patinar. 3% significa que a locomotiva puxa não mais que 7 vezes o seu peso. Sempre é possível usar mais locomotivas, como de fato usam-se até 6 por composição, mas carregar o peso delas morro acima gasta combustível e não é carga que paga frete; é um problema estritamente econômico.

Como o movimento de cargas tanto da São Francisco quanto da Curitiba-Paranaguá é muito mais intenso no sentido interior-porto, o problema é mitigado já que a tração morro acima é via de regra de vagões vazios.

Voltando à ferrovia São Francisco. É muito acessível visitá-la pois, como foi dito, há uma estrada paralela; bem diferente da Curitiba-Paranaguá onde não há estradas de uso geral por perto. Mas muitas "jóias" da ferrovia ficam justamente nos trechos em que ela afasta-se da estrada e insinua-se entre os morros, para manter-se na declividade de 3%.

Ou seja, é preciso andar na linha férrea, um pouco ou um bocado, dependendo do que se quer visitar. Todos os túneis e viadutos da subida estão fora da visão da estrada, embora o túnel #1, o mais comprido de todos, esteja muito perto do cruzamento. Para quem não quer sair do carro, o prêmio de consolação é a ponte sobre o Rio Vermelho, que eu já postei neste blog outro dia. O Google Earth é amigo dos eventuais interessados. Como a solda era coisa nova na época, todas as pontes, viadutos etc. são rebitados.

Figura 13: Trem em frente à igreja de Rio Natal

Além desses alvos óbvios, qualquer passeio pela ferrovia (de trem, de carro ou à pé) revelará o capricho com que ela foi construída, apesar dos parcos meios da época: pás, picaretas e dinamite. Praticamente todos os pontos onde poderia haver deslizamento de encostas foram devidamente escorados com muros de pedra. As pontes e viadutos são aparentemente altos demais para a vazão dos rios num dia normal — pois levam em conta a gigantesca vazão deles quando chove muito. Qualquer riozinho besta tem seu bueiro, largo e aberto do lado de cima, em vez de um tubo de cimento facilmente entupido e difícil de inspecionar.

Exceto pelo túnel #1, os demais são revestidos de concreto, pois escavaram no barro. Me parece que há pouco morro "por cima" desses túneis revestidos (em particular no túnel #5), e eles talvez pudessem ter sido suprimidos em favor de cortes — que desmoronariam ano após ano. Mais um toque de capricho. E assim a ferrovia centenária resiste, enquanto obras muito mais recentes vêm abaixo com qualquer pluviometria acima da média.

Figura 14: Serra do Mar

Apesar dos prováveis danos ambientais iniciais de aproveitar vales e várzeas, certamente é menor o dano cumulativo de uma obra que não está jogando barro e areia nos rios o tempo todo. Para efeito de comparação, recentemente as obras de contenção na BR-280, num ponto próximo ao Rio Natal, jogaram tanto material na garganta de um rio próximo, que formou uma represa de 19m de altura. Toda essa terra não vai embora senão arrastada pela água, o que causa assoreamento leito abaixo.

Ainda sobre vales, é interessante notar que a ferrovia São Francisco era a principal ligação terrestre de Santa Catarina com o resto do Brasil. Embora hoje em dia a principal artéria terrestre seja a BR-101/376, que percorre todo o litoral catarinense e depois vai direto à Curitiba, a subida da "Pedra Branca do Araraquara" era um caminho inacessível tanto para a tecnologia anterior a 1940 quanto para a força física de pessoas e animais.

Todos os caminhos terrestres anteriores à BR-376 procuravam ir direto à oeste, explorando alguma facilidade natural que ajudasse na subida da Serra do Mar. O caminho dos jesuítas subia a Serra do Quiriri. A Estrada Dona Francisca ousou mais e subiu o vale do Rio Seco — outra estrada construída na base da picareta e dinamite.

A verdade é que a Serra do Mar sempre foi um obstáculo importante na luta pela interiorização do desenvolvimento do Brasil, de Santa Catarina até Pernambuco. A ferrovia São Francisco é apenas um capítulo desta luta, embora um dos mais românticos.

Figura 15: Ponte ferroviária

E está decidido: quando eu ganhar na loteria, vou tornar-me arqueólogo amador em tempo integral :)