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Fuga de corrente em aparelhos inverter

No momento, trabalho como SRE (Site Reliability Engineer). Relativamente à extensão da minha carreira, sou novato nesta área. Um chefe mais experiente me disse uma vez "a sina do SRE vai contaminar sua vida pessoal, coisas vão quebrar o tempo todo à sua volta para você ter de consertar".

Considerando que isso já me acontecia no inferno astral, estou duplamente amaldiçoado. E de fato, nos últimos anos aconteceram alguns problemas domésticos que aparentemente não acontecem com mais ninguém.

O último incidente é um desarme eventual do disjuntor DR.

TL;DR: equipamentos inverter podem ser incompatíveis com o disjuntor DR convencional (tipo AC) utilizado em instalações residenciais. O DR tolerante a esse tipo de carga é difícil de encontrar no Brasil.

DR - Discutindo a Relação?

Para quem não sabe, o disjuntor DR (Diferencial-Residual) não dispara em caso de curto-circuito, mas sim quando existe uma diferença entre a corrente que "entra" e a que "sai" da instalação. Essa diferença, conhecida como fuga de corrente ou fuga à terra, pode estar passando pelo corpo de alguém, cuja vida o DR vai salvar.

O DR é obrigatório em circuitos elétricos de "áreas molhadas". Instalações residenciais novas costumam estar 100% protegidas por ele. A cobertura de 100% também é obrigatória em certos esquemas de aterramento, em que um curto-circuito fase-terra não seria suficiente para disparar o disjuntor convencional.

A instalação da casa tem o cacoete de cair o DR durante trovoadas ou quedas de luz, desde durante a construção. Era um problema inédito, mas enfim, é uma casa na zona rural, então está mais sujeita a transientes. Tem vizinho com geração solar, que poderia ser um agravante.

E era algo que acontecia 2 ou 3 vezes por ano, não era o fim do mundo. Há 2 quadros na casa, cada um com sua fase e um DR de marca diferente, e os dois geralmente caíam juntos, então tinha de ser um fator externo.

O problema

De uns tempos para cá, o problema da queda do DR se agravou, em apenas um dos quadros. O respectivo DR começou a cair mais, às vezes uma vez por mês, às vezes 1x por semana, às vezes 3x por dia.

Desde então tenho procurado a causa, inclusive substituí alguns equipamentos que são conhecidos por disparar DR quando estão defeituosos, como no-break e filtro de linha (meu no-break antigo não era grande coisa, então foi um bom pretexto para mandá-lo embora).

Fuga de corrente é talvez o problema elétrico mais chato de diagnosticar, ainda mais quando intermitente. É o equivalente da virose/alergia da medicina. E há ainda o medo de descobrir que a causa é difícil de sanar, como um condutor com isolamento puído escondido atrás de camadas de alvenaria, acabamento e móveis planejados. Há 40 anos atrás, ele podia passar despercebido, era detectado apenas se fosse grande a ponto de pesar na conta de luz. Hoje em dia, o DR obriga a resolver.

O outro problema da fuga para a terra é que ela pode acontecer por diversos caminhos. Pode ser através do fio terra (verde), em caso de alguma falha (ou característica?) de um aparelho elétrico. Mas também pode ser literalmente para a terra, sabe Deus por onde.

Finalmente, troquei o próprio disjuntor DR, para a mesma marca do outro DR que já não caía há meses. Para minha surpresa, o problema piorou — o disjuntor caiu 2x nesse mesmo dia, inclusive negando-se a rearmar. Foi necessário desligar todos os outros primeiro, e religar um por um. Qualquer perturbação, como ligar uma fonte de computador na tomada, passou a derrubar o DR.

O culpado

Aproveitei o quadro aberto e rearranjei alguns fios do barramento terra para conseguir usar um multímetro de alicate. É um aparelho simples, não é nenhum Fluke, mas foi suficiente para determinar os culpados: três aparelhos de ar-condicionado split inverter instalados no ano passado — justo na época em que as quedas do DR ficaram mais frequentes.

Figura 1: Multímetro indicando a fuga de 4mA através do aterramento, com apenas uma unidade split energizada e em standby.

O aparelho da Fluke ideal para este serviço custa 8 mil, mas o humilde multímetro Hikari construiu um caso suficientemente bom:

Munido destas informações, chamei o técnico que instalou o split, até porque ele poderia abrir a carenagem do aparelho para fazer mais algumas medições nos fios. É só tirar um parafuso, mas o aparelho ainda está na garantia, então sacumé.

Conforme esperado, ele olhou primeiro todos os detalhes da instalação elétrica, inclusive dentro do quadro. Até mencionou que meu multímetro não tinha precisão suficiente. Mas a instalação aqui é exatamente como recomenda o manual do fabricante japonês: aterramento TT, DR de 30mA, fio de 2.5mm, circuito individual por split.

Um fato genuinamente curioso: o multímetro não conseguiu medir a corrente de fuga do lado do aparelho. Não sei se a carcaça de metal intefere, o fato é que por ali a medição resultava nula, aí poderia ser fuga pela fiação mesmo. Nem eu nem o técnico tínhamos multímetro capaz de medir corrente alternada através de pontas de prova.

Conectando-se e desconectando-se o fio verde no split, a medição feita no quadro reagia de acordo, então a fuga só podia estar vindo do split. Mas ficou essa bruxaria aí por explicar. (Se arrumar um multímetro capaz de medir corrente AC pelas pontas de prova, atualizo este texto com os resultados.)

A causa-raiz

O técnico entrou em contato com o fabricante, cuja resposta foi:

Como já era esperado, tiraram o deles da reta. Será que as alegações procedem?

O problema da fuga de corrente em eletrodomésticos inverter (não só ar-condicionado) é bem conhecido. A manifestação mais comum é tomar choque elétrico na carcaça, o que é sanado com aterramento. Aparelhos mais antigos, não-inverter, não fazem isso a não ser que estejam com defeito.

Uma fuga de corrente suficiente para disparar disjuntor DR parece ser mais comum em aparelhos Daikin. É difícil achar referências na Internet sobre o assunto, mas as poucas que encontrei são todas para este fabricante. Exemplos 1, 2, 3 e 4.

A propósito, um aparelho inverter tem esse nome pois controla o motor do compressor, do tambor da máquina de lavar, etc. através de um inversor que funciona com corrente contínua. Para suprir essa corrente contínua, é necessária uma fonte de alimentação bastante potente. Tanto o inversor quanto a fonte podem possuir componentes que causam essa fuga de corrente.

Não encontrei norma nacional sobre a fuga máxima admissível, porém menções a normas internacionais aqui e ali citam um limite de 3,5mA para equipamentos fixos, com alguma tolerância devido a variações de componentes.

Então, podemos dizer que uma fuga de 4mA está "ok", embora lambendo a trave — enquanto uma fuga de 10mA definitivamente seria um defeito.

A minha bronca é a seguinte: o fabricante não menciona em lugar nenhum que a instalação de múltiplos aparelhos sob um mesmo DR pode causar problemas. O manual manda seguir a norma, a norma manda ter DR de 30mA. Se fosse deixado claro que poderia haver interação entre o disjuntor DR e a instalação de múltiplas unidades, o cliente poderia se preparar melhor. Ou mesmo escolher outra marca, ou outro modelo.

Esta referência também menciona que harmônicas podem de fato causar disparo acidental de DR, e que este é um problema relativamente novo, causado pela proliferação de eletrodomésticos inverter. No exterior, já se vendem DRs resistentes a harmônicas (Tipo F). O manual de instalação em português de Portugal traz a seguinte menção:

Figura 2: Menção a DR compatível com inversor, no manual de instalação para Portugal.

Ainda não encontrei ainda esse tipo de DR à venda no Brasil. UPDATE: depois de muito procurar, achei um modelo da Eletromar. A própria norma internacional que define o DR Tipo F é bastante recente, de 2020.

Quanto à sugestão de trocar o disjuntor DR por um de 300mA, não acho prudente. A norma NBR 5410 diz que isto é para instalações industriais. 300mA (ou mesmo 150mA) é uma corrente de choque elétrico alta demais. Mesmo tomando cuidado, já meti a mão algumas vezes em fios vivos quando fiz alguma manutenção elétrica, e sempre o DR disparou (desta vez, corretamente), e não pretendo ficar sem essa proteção.

Como resolver?

A primeira opção é simplesmente desligar o fio terra dos splits — e rezar para a fuga de corrente não encontrar outro caminho. Considerando que a maioria das casas brasileiras nem tem aterramento adequado mesmo... Não é uma solução definitiva pois deixa o aparelho vulnerável a transientes, e o fabricante vai usar isso como motivo (ou pretexto) para negar garantia.

Você pode tentar trocar o DR do quadro por um modelo "Tipo F", se conseguir encontrá-lo à venda. Não vou por esse caminho porque no momento ele é raro e caro, e não tenho garantia que ele vai resolver meu problema. Se algum outro aparelho inverter começar a incomodar, aí o jeito será tentar esse caminho.

A solução mais efetiva é colocar as cargas problemáticas sob a proteção de um DR separado. Isto é possível fazer quando a instalação seguiu a norma (cada circuito com fios de fase e de neutro completamente independentes desde o quadro até a carga). É o que provavelmente farei aqui. Tenho bastante tempo, porque o clima vai permanecer frio por alguns meses.

Qual a sensibilidade do DR novo? Como vimos, o DR de 30mA vai cair sozinho com 3 aparelhos. Poderia ser o DR de 300mA, já que ninguém normalmente mete a mão nas unidades externas de metal. Existe o DR de 100mA, difícil mas não impossível de encontrar, que tem uma boa folga mas ainda protegeria de choques elétricos mais fortes.

Outra possibilidade seria deixar os splits sem nenhum DR. Também não me parece uma boa ideia porque a) contraria o que diz o manual do fabricante, b) deixa os splits sem nenhuma proteção contra grandes fugas de corrente e choques elétricos, e c) em esquemas de aterramento TT, um curto-circuito à terra pode não disparar o disjuntor comum, mas vai energizar a carcaça de todos os equipamentos da casa, fora o risco de incêndio.

Se não houver outro jeito, usar um DR de 100mA para toda a instalação seria uma solução de compromisso. Não é ideal do ponto de vista da segurança pessoal, porém é menos pior que um DR de 300mA.

Uma solução mais bruta, algo como matar uma mosca com um tiro de canhão, seria usar um transformador de isolamento para cada carga problemática. A vantagem é que nenhuma modificação precisa ser feita na instalação. Desvantagens: um transformador suficiente para alimentar um split será grande, pesado e principalmente caro (mais de 50% do preço de um split).

Ainda outra alternativa seria optar por um aparelho multi-split. Além da vantagem estética de haver apenas uma condensadora, haverá apenas um circuito elétrico e apenas uma fuga de corrente, que fica abaixo do radar de um DR comum (assumindo é claro que essa fuga é limitada a 4mA por condensadora, independente do tamanho). Os multi-split costumavam ser absurdamente caros (o dobro) em comparação à frota equivalente de unidades simples, hoje em dia ainda são mais caros porém a diferença estreitou bastante.