Uma decepçãozinha que tive ao ingressar no mundo do radioamadorismo, é a aparente concentração dos praticantes na banda VHF de 2 metros (144-148MHz), na modalidade fonia analógica, modulação FM. Não sou muito afeito a longos bate-papos, prefiro me expressar por escrito e de forma assíncrona.
Outra decepção é a bagunça dos modos digitais no radioamadorismo. Muito software ruim, documentação confusa, e adoção de modulações e codecs proprietários (DMR, C4FM e D-STAR têm componentes fechados). Talvez devido ao meu background em software livre, me parece um sacrilégio isso. É bem verdade que ainda não tive oportunidade de brincar com modos digitais em HF, onde no geral impera o software código aberto. As graves deficiências do serviço digital radioamador mais popular, o ARPS, demonstram que o radioamadorismo é cronicamente fraco no front de software.
E sim, eu estou tentando colaborar para mudar o estado de coisas, mas não tenho com quem trocar mensagens; no momento os possíveis interlocutores estão todos falando em FM no repetidor VHF mais próximo.
Mas enfim, o objetivo do artigo não é ficar reclamando, mas sim elencar as várias razões legítimas pelas quais os 2 metros "pegaram".
Trata-se de uma confluência de fatores. Os 2 metros são um ponto ótimo.
Além da fonia FM proporcionar uma qualidade sonora melhor que AM ou SSB, um amplificador RF para FM pode ser mais simples. A transmissão FM ocorre em potência fixa; ou está transmitindo, ou está desligado. O amplificador não precisa ser linear, pode ser até mesmo "classe C". Isto resulta num amplificador mais barato, mais leve, com rendimento maior, e que dissipa menos calor.
A modulação FM é imune a pequenas diferenças de freqüência entre transmissor e receptor. É a antítese do SSB, em que uns poucos Hz de desvio distorcem completamente a voz.
Claro que FM não é perfeito, nem adequado para todas as situações. Um sinal AM ou SSB consegue chegar mais longe, dada uma mesma potência. Aviação usa VHF AM pois permite ouvir diversas estações simultaneamente, enquanto em FM só se ouve a estação mais forte. Modulação FM usa mais largura de banda, que é muito escassa nas bandas HF.
Modulações analógicas podem ser consideradas "jurássicas" no presente estado da tecnologia, e a adoção de modulação digital melhora muito o alcance. Porém, outras vantagens da banda VHF permitem que até mesmo o paleolítico FM funcione bem.
Pelo fato da propagação VHF ser em linha (quase) reta, as estações precisam ter visada para estabelecer comunicação. Não adianta possuir um rádio VHF muito potente. Mesmo transmitindo de um ponto alto do terreno, com muita potência, é difícil passar dos 100km. Sendo assim, os rádios VHF costumam ter menos de 100W, permanecendo pequenos, baratos e fáceis de alimentar.
Devido às características do VHF, os radioamadores foram instalando repetidores em pontos altos, o que novamente vem ao encontro dos rádios móveis de baixa potência. Se há visada para o repetidor, até mesmo um HT de 5W funciona bem. (O maior problema do HT é a antena curta; se for possível conectá-lo a uma antena externa boa, ele vai quase tão longe quanto um rádio "sério".)
Já que não adianta modular com grande potência, o mundo dos 2m passa mais longe daquela subcultura de "botas", amplificadores lineares valvulados e gambiarras para aumentar a potência do rádio à custa da vida útil. Essa mania de "arregaçar o rádio" parece ser uma herança do PX, que opera em 27MHz — banda ruidosa em que os rádios homologados são fracos (10W no Brasil, 4W nos EUA) e qualquer incremento de potência melhora muito o alcance.
Na verdade, a propagação em VHF não é 100% em linha reta; ela acompanha um pouco a curvatura da terra, então é possível atingir estações um pouco além do horizonte visual. Mas quanto além? Isso varia conforme a hora, o clima e a época do ano. Da mesma forma, o VHF consegue negociar obstáculos urbanos e relevo.
Não existe uma freqüência exata a partir da qual a onda vai em linha reta. A tendência da onda seguir o contorno é proporcional ao comprimento de onda.
Ondas médias podem circular o globo mas ainda podem ser bloqueadas por cadeias de montanhas. Ondas longas conseguem seguir o contorno das montanhas. As ondas curtas (HF) são uma exceção à regra pois são refletidas pela ionosfera, propagando-se em ziguezague. Pode acontecer de um receptor próximo ser sombreado pelo relevo, enquanto o sinal HF "cai do céu" para receptores muito mais distantes.
De maneira geral, todas as freqüências "sub-GHz" ou abaixo de 1000MHz têm alguma capacidade de ir além do horizonte visual, contornar obstáculos e penetrar ambientes. É por isso que a banda sub-GHz é tão valiosa e disputada a tapa pelos operadores comerciais. (Na medida em que os radioamadores não ocupam as bandas de 70cm, 33cm e principalmente 1.25m, a tendência é que elas sejam realocadas pela ITU, pois são importantes demais para ficar ociosas.)
A banda de 2 metros tem uma grande capacidade de lidar com obstáculos naturais ou artificiais de médio porte, desde que com antena externa. Em ambiente confinado, e.g. comunicação entre funcionários de um hotel ou edifício, a banda de 70cm funciona melhor.
Quanto maior o comprimento de onda, maior a antena. Uma antena de HF adequada exige grandes espaços verticais e horizontais. Isto sempre foi a maior dor-de-cabeça do radioamador que modula em HF, e o problema só vai piorar na medida em que mais e mais pessoas vão morar em apartamentos e condomínios fechados. Mesmo que haja espaço físico, haverá conflito com síndicos e vizinhos.
Na banda de 2 metros, a antena dipolo tem 1 metro, e a antena monopolo tem 50cm. É fácil instalar ou improvisar uma antena. Até um HT pode ter uma antena razoável para 2m, embora as bandas de 70cm e 33cm "casem" melhor com os HTs.
Por outro lado, freqüências muito altas (5GHz ou acima) pedem antenas minúsculas que podem ser difíceis de sintonizar. Qualquer milímetro faria diferença, enquanto o ajuste de uma antena VHF não é tão crítico.
Finalmente, equipamentos de calibração são mais baratos para freqüências sub-GHz. Um medidor de SWR para VHF/UHF, suficiente para calibrar a antena, é um raro equipamento acessível num hobby onde tudo custa os olhos da cara.
Se a antena tem de ficar longe do rádio, haverá perda de sinal na linha de transmissão, que geralmente é um cabo coaxial. Por um lado, a perda em HF é pequena, quase desprezível. Por outro, é impossível transmitir microondas via cabo. (Os "cabos" que sobem uma antena de celular são na verdade tubos metálicos ocos, guias de onda.)
Para um amador trabalhar com microondas, e.g. com LoRa ou Wi-Fi de longa distância, faz mais sentido posicionar o transceptor perto da antena, e usar outra tecnologia qualquer para cobrir a distância entre o transceptor externo e o QTH.
Em VHF 2m, a perda no cabo é moderada, em torno de 2dB a cada 10m de cabo RG-58, e apenas 0.5dB por 10m de cabo LMR-400. Geralmente é viável usar o cabo RG-58 comum, que é mais barato e mais fácil de trabalhar.
O ruído de fundo de rádio, o QRN, produzido por fontes naturais, é (grosso modo) inversamente proporcional à freqüência. Ondas médias e HF são naturalmente mais "sujas" que VHF, UHF e microondas.
Segue esta mesma lei o QRM, ruído eletromagnético produzido por fontes artificiais: motores, lâmpadas de LED e fluorescentes, computadores, fontes chaveadas, sistema elétrico do automóvel, etc. Com uma diferença bem infeliz: as fontes artificiais de ruído estão cada dia mais abundantes. Recepção AM (ondas médias) dentro da cidade é praticamente impossível, e recepção de ondas curtas vai indo pelo mesmo caminho. O radioamadorismo HF é muito prejudicado pelos ruídos artificiais.
Mesmo considerando apenas os ruídos de origem natural, as estações HF se obrigam a transmitir com potência maior, pois não basta o sinal chegar no outro lado; a relação sinal/ruído tem de ser positiva no receptor. Ou seja, o radioamador se obriga a ter um equipamento mais potente, mais caro, mais pesado, uma antena melhor...
A banda de VHF 2m tem pouco ruído, seja natural ou artificial, mas retém um vestígio da vantagem da banda HF que é alcançar estações um pouco além do horizonte visual. A modulação FM ajuda a mascarar o ruído restante.
Também ajuda o fato da banda de radioamador ficar entre a banda de aviação e as bandas de utilidade pública (polícia, bombeiros, VHF marítimo, etc.). Qualquer equipamento que despeje QRM nessa banda vai ser rapidamente notado e suprimido.
A tendência da tecnologia é sempre buscar freqüências cada vez mais altas, simplesmente porque a largura de banda é muito mais abundante por lá. Essa vantagem acaba compensando todos os demais inconvenientes, afinal todo mundo quer Internet mais rápida...
Isto também vale para as bandas de radioamador. Por exemplo, a banda de 160m tem apenas 200kHz de largura, enquanto a banda 2m tem 4MHz, e a banda de 13cm tem de 50 a 150MHz, dependendo da região.
Muitas bandas de radioamadorismo são bem estreitinhas, ou são alocadas em base secundária — ou seja, são compartilhadas com serviços comerciais, radar, ISM, etc. A banda de 2 metros é uma exceção: é relativamente grande, e alocada em base primária. Há espaço para todos os modos, operação simplex, repetidoras, etc. etc.
No geral, quanto maior a freqüência de operação, mais caros são os componentes eletrônicos necessários, e mais complicada é a construção do circuito. No estado atual da tecnologia, podemos dizer que toda a banda sub-GHz é "amigável" à eletrônica. Isto se traduz em equipamentos baratos e fáceis de obter.
Uma coqueluche relativamente recente é o SDR (software-defined radio), geralmente encarnado num dongle USB que permite receber rádio no PC. Os SDRs mais comuns têm a faixa de trabalho ideal entre 30MHz e 1800MHz. (Ouvir fora desta faixa exige um conversor.) Os softwares SDR costumam trabalhar com modos analógicos e APRS, e o tráfego para radioescuta é mais abundante em VHF, criando assim um círculo vicioso com os 2 metros bem no centro.
Considera-se que os HTs chineses Baofeng UV-5R, que custam o mesmo que uma pizza, provocaram uma revolução no radioamadorismo, dando às massas a oportunidade de comprar seu primeiro transceptor sem quebrar a banca, e experimentar com radioescuta e radioamadorismo. Como se tudo isso não bastasse, o Baofeng pode fazer o papel de transceptor APRS (com o auxílio de um celular). Certamente esta é a forma que muitos radioamadores "estreiam" em modos digitais.
O radioamadorismo é bastante influenciado por tradição e pela idade média relativamente avançada dos praticantes. Porém, não é só isso que motiva a concentração dos radioamadores em torno da fonia FM em 2 metros. Áudio limpo e claro, obtenível com equipamentos baratos, leves, equipados com uma antena de tamanho moderado que pode ser confeccionada artesanalmente, alcance bem razoável e abundância de repetidores, facilidade de obtenção de peças e instrumentos de calibração, a oportunidade de experimentar facilmente com pelo menos um modo digital, tudo isso conspira para concentrar as pessoas nesta banda.