Talvez por ter nascido na Cidade das Bicicletas e numa época em que as crianças ficavam mais à solta, desde pequeno andei de bike e ia para todo canto. Ia fazer compras na mercearia próxima antes mesmo de tirar as rodinhas laterais da Monark aro 10" azul.
Como bom nerd, sempre tive simpatia por bicicletas, mas isso nunca transbordou para 2 rodas em geral. Nunca tive moto, nem pretendo ter.
Depois da bike infantil, veio a Monareta, que me levou para a escola e depois para o trabalho, de 1985 a 1995. Era muito boa para uso utilitário, embora a longevidade também seja devida a um motivo triste: tive duas bicicletas 26" roubadas em 1989, num intervalo de poucos meses.
A primeira vítima foi uma Monark Ranger, sem marchas, que ganhei no Natal de 1988. Antes do roubo, ela já tinha sido vitimizada pelas minhas primeiras incursões em manutenção, em geral desastradas.
A segunda perda doeu bem mais: foi uma Caloi Cruiser Montana, de 5 marchas e diversos componentes de alta qualidade. Era praticamente uma mountain bike da época, só faltava um câmbio dianteiro. Ainda estou pra ver cubos mais bonitos que os Sansin que equipavam esta bike. Tem gente pedindo R$ 1700 por uma Montana usada em 2019.
Mas, antes do roubo, visitei um amigo de trabalho, o Diomar, que tinha sido mecânico de bikes de corrida. Ele desmontou a Montana inteira, mostrando como engraxar, montar e regular o câmbio. Meu pai também sabia bastante de bikes normais (sem marchas), sabia mexer naqueles "puxavantes" com freio contra-pedal, e alinhava uma roda de raios como ninguém. Com essa mentoria dupla, consegui fazer quase toda manutenção eu mesmo pelos anos seguintes.
Por conta dos roubos, o uso diário voltou para a Monareta, que nem os ladrões queriam. Já tinha idade e gosto de ir mais longe no fim-de-semana, e para esse uso meu pai comprou uma bicicleta do meu primo Ademar: outra Monark Ranger, mas adaptada com 10 marchas.
A adaptação tinha sido muito mal feita, mas era um recomeço. O maior problema eram os cubos originais de baixa qualidade, que pegavam folga direto. Resolvi com cubos rolamentados. Não rodavam tão leves, certamente roubavam alguns watts, mas eram indestrutíveis. Logo em seguida coloquei uma coroa tripla, fabricada aqui em Joinville mesmo pela finada Metalúrgica Duque. As coroas triplas eram o objeto de desejo de todos, assim como os grupos 1X são hoje. O mundo dá voltas...
Nessa época as peças importadas ainda eram caras e difíceis de achar. Ficávamos na dependência de algum contrabando do Paraguai, de alguns fabricantes nacionais como esse que fazia o cubo rolamentado citado antes, e de mecânicos que tiravam leite de pedra, adaptando câmbios dianteiros de 2 marchas para coroas triplas, entre outras bizarrices. Havia até um fabricante nacional de câmbios, a Dimosil.
A Ranger me deu muita alegria, andei milhares de quilômetros com ela. Só tinha um problema crônico de freio, e não tinha como adaptar V-Brake. No início tinha um pesadíssimo velocímetro analógico, que adicionava um arrasto gigantesco. Logo foi trocado por um Cateye, que na época só se conseguia através de algum contrabandista.
Enfim, vivíamos numa espécie de republiqueta soviética, mas a gente se divertia. Tínhamos até uma fórmula de nutrição esportiva: Coca-Cola, Pingo d'Ouro, e balas Frigelis de cereja.
Em abril de 1993, comprei uma mountain bike Legnano Andaluso, que custou US$ 400 na época (uns US$ 700 em 2019). Esta já vinha com peças Shimano, embora o trocador de marchas não fosse RapidFire, este só encontrável em bikes mais caras tipo a Caloi Aluminum. Mas a Legnano era o que cabia no meu orçamento, e era excelente para o meu caso de uso.
Em particular o quadro dela era muito bom, muito ergonônico, apesar de ser de aço e pesado. A Legnano vinha com a famosa coroa Biopace, que até hoje não chegaram à conclusão se presta ou não, mas era curiosa, era bonita e parecia funcionar para mim. Rodei tanto com essa bike, que o freio "comeu" o aro original.
Neste ponto cabe justificar a predileção por mountain bikes. Um motivo é que estavam muito na moda no início dos anos 1990. Outro motivo é que fazíamos cicloturismo em estradas de terra, inclusive lugares quase intransitáveis como a descida do Rio do Júlio, então robustez era importante.
Nunca me interessei por competição, não gostava de rodar no asfalto; já nessa época o ciclismo de competição era estigmatizado pelo doping. Acho que nunca sequer montei numa bike de estrada.
Desde então, as mountain bikes "engordaram" muito, e o foco do esporte mudou para trilhas descendentes em bikes full suspension. Virou uma espécie de motocross sem motor, e as MTBs só fazem ficar mais caras.
Mas o antídoto já foi criado: a "gravel bike", uma bike com características intermediárias entre MTB e estrada. Acredito que a gravel bike será uma coqueluche na década de 2020.
Mais para o fim da década de 90, realizei o sonho de comprar uma Caloi Aluminum, apesar de muita gente criticar a geometria da mesma. E de fato nunca gostei muito de andar com ela, e olha que tentei muitas vezes. Pelo menos era leve, muito mais leve que a Legnano. Acho que o modelo era Andes Sport, mas não tenho certeza.
Outro problema dessa Aluminum era o quadro tamanho 20, incorreto para minha baixinheza. Era uma época em que mesmo as bike shops só queriam mover mercadoria, não tinha esse negócio de bike fit. Mas acabei ficando com essa Aluminum até 2005, quando então vendi para o Orlando lá de Recife, cuja altura mais avantajada certamente ornou bem com o quadro 20.
Outra coisa que não se comentava muito na época: quadros de alumínio (ou titânio) são muito menos confortáveis que os de aço (ou de fibra de carbono) pois não têm flexibilidade. Aço pode funcionar como mola sem fadigar, o alumínio não. Por isso que a gente era feliz e não sabia com as bicicletas tipo Andaluso, sem suspensão. E é por isso que até bikes de supermercado têm suspensão hoje em dia. Também é por isso que a fibra de carbono domina o mercado de topo, não é só por ser leve.
Uma vez que fibra de carbono não é reciclável, existe um movimento tímido de retorno ao aço (alguns enxergam o óbvio: tirante ciclismo de competição, uma bicicleta 5kg mais leve ou mais pesada não faz diferença) e ao alumínio ("amaciado" por avanços na geometria do quadro, no perfil dos tubos, e nas ligas empregadas).
Para ser honesto, entre 1995 e 2008 eu pratiquei muito pouco esporte. Eu podia dar mil desculpas, mas o fato é que não sou do tipo que puxa para atividade física, e não consigo ficar mentalmente desligado. Ficar meia hora que seja numa academia é uma tortura. Preciso fazer "algo mais" junto com o exercício e.g. ouvir música enquanto caminho. Ciclismo embute esse "algo mais" em si mesmo.
Em 2007, comprei uma Caloi Elite 2.4, desta vez quadro 18, correto para mim. Era uma boa bike, vestia como uma luva, e a suspensão dianteira realmente funcionava. Andei o suficiente para trocar uma ou duas correntes. Porém meu exercício predileto passou a ser caminhada, e também comecei a ficar com medo de andar de bike na cidade, de modo que acabei vendendo essa bike em 2014.
Disso me arrependo muito, era uma bike de pintura bonita, com bons componentes, e que custou caro (R$ 1700 em 2007 era bastante erva). Claro, foi melhor ter vendido do que deixar jogada num canto. Além do aspecto xintoísta de permitir que um objeto cumpra seu desígnio, uma bicicleta "envelhece" rápido hoje em dia. A evolução tecnológica e os hypes criados pela indústria te obrigam a trocar o quadro a cada poucos anos. É mais vantagem vender a bike usada e comprar outra nova que tentar fazer upgrades de grande monta. Por exemplo, desde 2007 já mudou o padrão do garfo MTB, e o freio a disco virou padrão até em bikes de supermercado. Outra grande mudança é a roda de 29", que obviamente afeta toda a geometria do quadro.
E no final de 2019, comprei uma Caloi Explorer Comp. Óbvio que eu sonhei, como todo ciclista sonha, com algo mais sofisticado, com transmissão 1X, full suspension, etc. Só que mesmo a bike mais cara do mundo continua sendo um veículo movido a propulsão humana, e este humano aqui está fora de forma. Pode ser que esse meu interesse renovado em bikes seja um fogo-de-palha. Às vezes penso que devia ter comprado um modelo mais barato.
A transmissão 1X, sem câmbio dianteiro, inovação que fez a fama da SRAM, parece uma volta ao passado. Mas eu concordo com a premissa básica. Câmbios dianteiros sempre foram temperamentais e difíceis de ajustar, em particular os triplos. O preço a pagar é uma corrente ainda mais fina, trabalhando torta o tempo todo, portanto menos durável, para que caibam 11 ou 12 pinhões lá atrás.
Eu ficaria muito feliz se, quando chegasse a hora de trocar de novo a bike, algum sistema selado de transmissão já tivesse dominado o mercado. Já tem o Pinion e o Affine, mas são caríssimos. A Shimano vai lançar uma "caixa de mudanças" que usa pinhões e câmbios em banho de óleo. Pode ser o Ovo de Colombo, quem sabe?