"Todo brasileiro é apaixonado por carro", já dizia a propaganda. E os motivos que levam a maioria das pessoas a optar por determinado modelo são totalmente irracionais, ou no mínimo desvinculados da utilidade primária do veículo que é levar pessoas e objetos do ponto A para o ponto B. Alguém poderia dizer que todas as nossas decisões de compra são irracionais... mas vamos restringir a discussão aos carros, e vamos fingir que nos espantamos com essa irracionalidade, ok? :)
Eu que me considero um sujeito racional, que não preciso brandir bens materiais para sentir-me "incluído", comprei uma S10 porque ouvi, uma vez, o motor V6 acelerando — o ruído me encantou irremediavelmente. Isso é que é uma compra irracional! Aliás, picape é o tipo de veículo que, racionalmente, não faz sentido algum. Tem gente que chega ao extremo de enxergar formas femininas em picapes.
Por isso é sempre temerário discutir gostos e preferências automotivas. Mas existem algumas manias, alguns preconceitos, que transcendem o tolerável.
A maioria dos itens com que vou implicar são cacoetes brasileiros, mas isso não quer dizer que o brasileiro seja o povo mais "supersticioso" a respeito de automóveis. Apenas foi mais fácil para mim coletar essas superstições porque sou brasileiro. Mas cada país tem seu próprio folclore automotivo.
Então vamos lá:
Parece que todo mundo no Brasil tem loja de carros, ou quer ter. O sujeito nem comprou o carro e já está pensando em vendê-lo!
Isso tem uma certa relação com o preço extorsivo de um automóvel 0km no Brasil, mas o contrário também é verdadeiro: os preços 0km teriam de baixar se as latas velhas não fossem tão valorizadas.
Talvez seja um cacoete residual da época da hiperinflação, quando estacionar uns carros no quintal era uma forma de "estacionar dinheiro" a salvo da corrosão inflacionária. Tinha ainda aquelas aberrações de um carro pouco usado custar mais que um novo, pelo fato do 0km ser tabelado (e obviamente escasso). Mas isso é passado, há 30 anos!
Temos também a realidade social: automóveis de 20, 30 anos de idade circulando. Mas nos EUA uma pessoa pobre compra um automóvel assim por 100 dólares. No Brasil, onde pobre nasceu pra se lascar, o sujeito endivida-se por anos pra comprar a lata velha...
Em função desse mítico "valor de revenda", muita gente deixa de comprar o modelo que realmente deseja, na cor que realmente deseja. Compra um carro branco e sem graça, às vezes até mais caro, porque julga que num futuro distante vai ser mais fácil vendê-lo ou dar como entrada do próximo carro.
Até recentemente, o brasileiro era amante do câmbio manual, e ainda por cima fazia mau uso dele, usando marchas muito altas para cada situação, e reclamando quando o carro não desenvolvia.
Alguns modelos já se estreparam no mercado local, pegando fama de "lerdos" ou "fracos", simplesmente porque tinham o esquema de marchas denominado "3+E" ou "4+E", onde a última marcha é extremamente longa para economizar combustível e fazer menos ruído em autoestrada — como o overdrive dos câmbios automáticos antigos. Mas é um conceito que brasileiro não entende, ele acha que carro bom tem de subir serra em quinta marcha.
Assim sendo, os fabricantes calibram as caixas de mudança dos automóveis do mercado interno para marchas mais curtas, e principalmente evitando que a última marcha seja longa demais. O cliente sempre tem razão, afinal de contas.
Toda boa lenda tem um pé na realidade. É verdade que um motor ciclo Otto beneficia-se de trabalhar com mais carga e menos RPM, porque a borboleta do acelerador fica mais aberta, o que diminui perdas por sucção e melhora o consumo.
Mas isso tem um ponto ótimo para cada RPM e % de carga. Apenas um câmbio automático CVT conseguiria dosar isso perfeitamente.
A propósito, não é bom para um motor "ficar apanhando", ou seja, ser forçado a trabalhar W.O.T. (100% de acelerador) em baixa RPM. Por quê? Porque a pressão do óleo do motor depende da RPM. Pouca pressão de óleo e muita carga significa mais desgaste e menos refrigeração.
Paradoxalmente, o brasileiro associava a presença da quinta marcha à modernidade, rejeitando automóveis de quatro marchas por antiquados.
Nos anos 2000, o Fiat Siena saiu com seis marchas, numa tentativa de parecer avançadinho. Havia ainda outra intenção: tentar compensar a anemia do motor 1.0, fraco para um sedã equipado com opcionais. Aí o embuste ficou óbvio demais.
No momento, o fetiche por um grande número de marchas paira (e isso no mundo todo) em cima dos câmbios automáticos. Para uso normal, quatro ou cinco marchas são perfeitamente suficientes, mas agora está na boca do povo que qualquer coisa abaixo de seis marchas é antiquado, beberrão, "lerdo", etc.
Como brasileiro gosta de subir serra em quinta marcha, o motor tem de ser "torcudo". Existe uma fascinação em torno do número do torque, que é mais ou menos uma função da cilindrada. Por exemplo, o torque máximo de um motor 2.0 típico fica em torno de 20kgm ou 200Nm, um motor de 4 litros tem torque na casa dos 40kgm, etc. O opalão 6 cilindros é o Santo Graal, com seu torque monumental (e potência medíocre).
Só que o torque do motor não quer dizer absolutamente nada; ele é facilmente multiplicado pela transmissão. Por exemplo, os motores de motocicleta têm torque muito baixo porque são projetados para atingir RPMs (e potências) muito altas. O mesmo acontecia com os finados motores Wankel, que tinham torque minúsculo.
O que realmente importa é a potência. Esta sim é absoluta, nem um câmbio de 400 marchas consegue esconder a falta de potência. Por outro lado, se existe potência, o resto se resolve. Veja este Fiat Uno andando muito, com motor de motocicleta, apesar de ter menos torque que o motor original.
Essa lenda também tem um pé na realidade. O torque do motor que consta no manual do proprietário tem seus significados. Tão importante quanto o torque máximo é a RPM em que ele ocorre.
Tipicamente, a RPM de máximo torque também é a RPM de máxima eficiência do motor — se estiver trabalhando com 100% de carga. Se o torque máximo ocorre em 3500 RPM, esta é a RPM mais econômica para subir a serra.
Quanto mais baixa a RPM de torque máximo, mais agradável será a direção. Então é fato que o motor "torcudo" é mais gostoso de dirigir, não porque ele é torcudo, mas sim porque ele tende à potência constante.
Por exemplo, o Opalão tem apenas 121CV a 3800 RPM, mas 70% dessa potência está disponível a 2000 RPM, um giro em que o motor ronrona como um gatinho. Motores elétricos têm potência constante; motores térmicos (a vapor ou combustão) têm força constante que é função da cilindrada. O Opalão consegue escapar parcialmente desta regra "estrangulando" o motor em RPMs mais altas.
O que não é um "defeito" do motor do Opalão, é uma escolha deliberada do projetista. No outro extremo, os Opalas Stock Car dos anos 80 atingiam 300CV com o mesmo bloco, sem turbo, o que mostra o potencial do motor. Porém eram unidades "tunadas" para corrida, extremamente desagradáveis em uso urbano por conta do funcionamento irregular e baixo torque em RPMs baixas, fora a barulheira devido a omissão de silencioso e admissão modificada.
O motor diesel é ainda mais "torcudo". Ele atinge o torque máximo numa RPM bem baixa, e vai decaindo nas RPMs mais altas, por conta da baixa velocidade de explosão do diesel. Por conta disso, apresenta uma larga faixa de potência constante, que é sua real vantagem.
Por conta disso, nos veículos que existem em motorização Otto e Diesel (e.g. picapes e SUVs) a versão diesel sempre tem menos potência, pois essa potência "vale mais" por estar disponível numa faixa mais larga de RPMs, redundando num desempenho semelhante na prática.
Esta jabuticaba criada pelo Collor infelizmente ainda não desapareceu. A ideia não era de todo má. Mas teria de ser nos moldes dos kei car japoneses, que também são pequenos e leves.
O que define o consumo urbano de um automóvel é o seu peso; já o consumo rodoviário é função da aerodinâmica. Se um motor de Opalão for adaptado num carro 1.0 leve e aerodinâmico, será econômico. Não tanto quanto o motor original, mas será. Por outro lado, um motor 1.0 num SUV não tornará o SUV econômico, e o motor será utilizado num regime muito mais severo, fazendo muito barulho e durando menos.
Como a RPM de um motor de automóvel dificilmente passa de 6000RPM, a cilindrada do motor tem de acompanhar o peso do carro. Infelizmente, na esteira da jabuticaba 1.0 e de uma estrutura tributária criada no contexto do choque do petróleo de 1973, os fabricantes brasileiros nos mantém numa dieta de motores de baixa cilindrada.
A coroação do ridículo é o "1.0 de luxo": grande e pesado, cheio de opcionais que sobrecarregam o pobre motor. O Siena 1.0 de 6 marchas foi o zênite dessa proposta furada. (Acho que já deu pra notar que não sou fã da marca...)
Brasileiro não é conhecido por ser precavido, e fiel à fama não costuma fazer manutenção preventiva. Lava o carro três vezes por dia, mas manutenção, não. Talvez por isso já fique pensando em como vender o carro, antes mesmo de comprar ("passar a bomba pra frente"). Isso num país onde, paradoxalmente, há uma enorme frota de carros com mais de 10 anos, e os carros usados têm alto valor de revenda.
Desse segredo de polichinelo brotam outras lendas, tipo "câmbios automáticos são problemáticos". Câmbio automático realmente dá problema se não receber manutenção preventiva, e não tem jeitinho. Quando quebra, não se conserta; a fábrica manda outro, recondicionado, e o seu vai embora na base de troca. Forçar um câmbio automático também causa quebra prematura, e isso é bem fácil de acontecer no Brasil, porque o povo daqui gosta de esmerilhar.
Novamente, o protótipo do carro ideal é o Opalão: qualquer mecânico de fundo de quintal conserta, as peças são vendidas a quilo, e aguenta abuso infinito. Os carros modernos estão indo na direção oposta: são cada vez mais caixas-pretas repletas de eletrônica, com todas as peças programadas para uma durabilidade semelhante. Se trocar a rebimboca da parafuseta do motor, estraga o motor porque a rebimboca não vai estar com a mesma tolerância das demais peças.
Essa combinação explosiva de alto valor de revenda, maus motoristas e manutenção negligenciada acaba elevando a simples compra de um carro usado à categoria de esporte olímpico.
Assim como no futebol existem zagueiros, centro-avantes, artilheiros, etc. todos correndo atrás de uma simples bola, também existe a fauna que gravita em torno do carro usado: lojistas pilantras, funilarias de fundo de quintal, fraudadores de odômetros... No futebol tem o goleiro, já no mundo do carro usado é o comprador quem toma o gol.
Existem zilhões de vídeos no YouTube a respeito do assunto, gerados por pretensos "buscadores" de carros usados em bom estado. E sim, até eu assisto, para me divertir.
Mas o comprador não é inteiramente inocente nesse jogo. Via de regra, ele busca uma utopia: um carro barato, de luxo, com baixa quilometragem, sem detalhes, cujo dono era a mítica mulher ou o mítico velho que andava pouco e não judiava do veículo. (Curioso que todo mundo xinga mulher e velho no trânsito, mas na hora de votar com a carteira, a conversa muda.) Esse tipo de comprador está implorando para ser enganado.
Aqui temos outro veículo que atende a todos os preconceitos do brasileiro: motor "torcudo", alto valor de revenda, barulhento, "econômico" e tolera abuso. Por ser grande, barulhenta e fumacenta, ela finge que anda muito, e o dono finge que acredita.
Pra botar a cereja no bolo, o gosto por picapes é um "contrabando" da cultura estadunidense, junto com as roupas de cowboy e o uísque. Mas a sonzeira é daqui mesmo, é o "sertanejo universitário".
Dê uma olhada nos preços das Silverado, D-20, F-1000, F-250, etc. Exemplares de 20, 30, 40 anos de idade custando mais que veículos médios 0km. O preço das peças também é assustador; e alguém se ilude que um veículo de décadas não vai quebrar peças importantes o tempo todo?
Não sou contra o cara comprar um carro velho. Se dirigir uma Silverado era seu sonho de criança, muito bem. O que me irrita é um carro velho custar uma fortuna e ainda ter todo esse folclore que "antigamente é que faziam carro bom". Esse preconceito é particularmente forte no mundo 4x4.
A fama de indestrutível do motor diesel, que não é verdadeira (basta acompanhar fóruns 4x4 para descobrir isso) tem um pezinho na realidade. As picapes antigas compartilhavam motores com caminhões e tratores. Tais motores eram extremamente simples e sem pretensões esportivas. Em compensação, duravam uma eternidade. O cúmulo da manutenção era uma visita ao bombista.
Com o tempo, foram surgindo os motores diesel mais "ligeiros", mais apropriados para veículos leves, cuja durabilidade ainda está sub judice. Diz-se também que o diesel S-10, menos poluente, tem menor poder lubrificante que o diesel "antigo". Isso pode ou não afetar a durabilidade dos motores, mas só saberemos de verdade daqui a alguns anos.
Um último fator que, talvez, alimente a popularidade das picapes antigas, é a possibilidade de rodar com diesel S-500. Se você mora num lugar muito isolado, pode ser interessante usar o mesmo diesel que abastece tratores e equipamentos agrícolas. Nem sei se existe algum rincão tão isolado no Brasil que justifique esse raciocínio. Só estou dando o benefício da dúvida.
Por outro lado, o brasileiro tem preconceito com picapes, SUVs, carros grandes em geral, movidos a gasolina. Diversos modelos já tentaram o mercado e acabaram indo embora, como por exemplo a S10 V6, a L200 Triton V6, a Ranger V6, a Dodge Dakota V8...
O famigerado baixo valor de revenda assusta, quando deveria ser um fator de alegria: veículos usados de grande porte a gasolina são relativamente baratos. Baratos, não; antes têm um preço mais condizente com sua condição de usados. Mas o fato é que são mais acessíveis. Quem realmente quer uma viatura, pode comprar. Só precisa largar mão do preconceito.
É inegável que as picapes a gasolina são beberronas, e o diesel é um pouco mais barato que a gasolina — subsídio injusto que teima em sobreviver no Brasil porque os políticos se borram de medo dos caminhoneiros. Mas essa diferença é devolvida no custo de manutenção e no seguro.
Existem duas situações que justificam optar por diesel: 1) se você roda muito, a ponto do gasto com combustível ofuscar as demais despesas, e/ou 2) se você precisa cobrir grandes distâncias em regiões sem postos, uma vez que a autonomia do veículo diesel é maior.
Se você mora numa região onde o GNV está disponível, e não precisa de grandes autonomias, poderia comprar uma viatura a gasolina (vide tópico anterior) e adaptar GNV para rodar mais barato que diesel. Parece um ovo de Colombo!
GNV é um assunto polêmico, é a arena onde se chocam dois cacoetes brasileiros antagônicos. De um lado, os zés-frisinhos. Do outro lado, os espertinhos caçadores de barganhas, que vêem o custo baixo por km rodado e acham que descobriram a pólvora.
Fico mais com o primeiro grupo. Já tive GNV, não teria de novo.
O grandíssimo problema do GNV é que ele tem de ser adaptado. (Não existe mais nenhum modelo com GNV de fábrica.) Por mais bem-feita que seja, cada adaptação é feita de forma ligeiramente diferente. O manual de serviço de cada automóvel com GNV teria de ser reescrito só para ele.
Obviamente, sem um manual de serviço confiável, a manutenção fica complicada e ad-hoc; grande é a chance do mecânico fazer algo errado e/ou afetar o sistema GNV. Por isso, muitas oficinas simplesmente se negam a consertar carro GNV.
Sem falar que a maioria das convertedoras é de fundo de quintal. Existem convertedoras excelentes, mas como separar o joio do trigo?
No meu caso particular, depois do GNV instalado, a S10 passou a queimar uma bomba de combustível por ano. O mecânico nunca descobriu por quê. O problema é que a bomba era 9V; a montadora ligou uma resistência em série para adaptá-la a 12V — uma gambiarra de fábrica. A convertedora, zelosa até, colocou um relé para a bomba trabalhar apenas na gasolina, mas a alimentação do relé não passava pela tal resistência, ou seja, era 12V direto. Só descobri a pegadinha anos depois de vender a viatura.
Eu só vejo viabilidade para GNV no seguinte cenário: você roda muito, e usa a viatura como ferramenta de trabalho. Então compra um veículo sem GNV, manda fazer a conversão, e roda até o fim da vida útil. Desse jeito, você sabe exatamente com que está lidando. Se você mesmo faz a manutenção, ou pelo menos conhece as idiossincrasias do seu carro adaptado para dar uma prévia ao mecânico, tanto melhor. (Até porque só mecânico de fundo de quintal vai aceitar mexer no seu carro.)
O pior caso seria comprar um veículo já adaptado com GNV, sem saber quantas gambiarras fizeram, e ainda pagar caro pelo privilégio. Se alguém me desse de graça um carro com GNV, eu removeria o kit no mesmo dia, mandaria para a oficina desfazer as descaracterizações (chicotes elétricos cortados, etc.) no dia seguinte, nem que fosse para fazer nova adaptação GNV no terceiro dia.