Ferrovia do Contestado é o nome extra-oficial de um par de trechos ferroviários: de Mafra/SC a Porto União/SC (da linha São Francisco) e de Porto União/SC a Marcelino Ramos/RS (da linha Itararé-Uruguai).
A construção e operação destes trechos foi uma das causas da Guerra do Contestado; e as linhas delimitam a área do conflito a norte e a oeste. Ambas foram construídas por Percival Farquhar. Em ambas as áreas os grandes negócios explorados por Farquhar foram a madeira e a colonização. Ambas usaram a mesma técnica de aproveitar o contorno de rios (Negro/Iguaçu e do Peixe, respectivamente) para baratear a obra.
Alguns incluem toda a linha São Francisco na "Ferrovia do Contestado", porém o trecho entre Mafra/SC e o Porto de São Francisco do Sul/SC é claramente diferente, com traçado mais elaborado, pois obrigou-se a passar por comunidades já estabelecidas (Araquari, Joinville, Jaraguá do Sul, São Bento do Sul).
O trecho paranaense da Itararé-Uruguai, praticamente todo erradicado ou abandonado hoje em dia, foi construído antes de Percival Farquhar assumir a E.F.S.P.R.G., em época, local, ritmo e situação diferentes, de modo que sua influência na história foi menos dramática que a do trecho catarinense.
Outro infortúnio compartilhado pelos dois trechos da Ferrovia do Contestado é o abandono comercial. Não foram erradicados e alguma manutenção ainda é feita, por pressão civil e judicial; mas não há nenhum tráfego comercial de cargas ou passageiros no presente momento.
Já escrevi alguns posts no meu "não-blog" a respeito do Contestado, mas nunca tinha realmente "pisado" naquelas terras. Até agora :) Nesta primeira parte do artigo, descrevo a peregrinação entre Mafra/SC e Porto União/SC.
Procurei visitar os locais das antigas estações, bem como uma e outra obra de arte mais vistosa. Na primeira viagem, comecei por Três Barras e não pelo interior de Mafra porque não posso ficar correndo na rua o mês inteiro. Em passeios subsequentes, visitei a maioria dos locais das antigas estações entre Mafra e Três Barras.
A região imediatamente a oeste de Mafra é bonita, com estradas boas, ainda que um pouco labirínticas. Muitas fazendas, silos, uma impressão geral de pujança. Os reflorestamentos silenciosos e tristes começam um pouco mais a oeste, para os lados de Três Barras.
Já as estações entre Mafra e Três Barras foram todas demolidas, as linhas de desvio removidas. Quando muito, sobra a plataforma, ou um pedaço dela. A oeste de Três Barras, ainda encontram-se um número surpreendente de estações preservadas, conforme veremos.
No mapa, quase sempre aparece uma estrada que segue mais ou menos a trajetória leste-oeste do rio e da ferrovia. Em muitos lugares as vias correm lado a lado, como nesta ponte entre General Brito e Canivete:
Na figura acima a ponte aparece com aquela fita amarela e preta porque estava danificada, apenas motos podiam passar. (A ponte foi consertada e estava ok em setembro de 2021.)
Embora Canivete tivesse acesso pelos quatro lados segundo o mapa (até uma ponte sobre o rio Negro consta ter havido), persistem apenas os acessos pelo sul e pelo leste. No mínimo 20km até atingir asfalto. Uma comunidade literalmente orfanada pelo trem de passageiros que não passa mais.
Apesar do isolamento, as pessoas ainda vivem, jogam bola e até escolhem descansar em paz em Canivete. A área da estação é mantida limpa por alguém; fora dessa área, a linha foi engolida pelo mato. A cruz na foto abaixo, que poderia sugerir um acidente ou assassinato ocorrido no local, na verdade sinaliza o pedido de um agente de estação, Sr. Pedro Corrêa, que morou por muito tempo ali e pediu que, ao morrer, fosse cremado e suas cinzas fossem ali depositadas.
O isolamento e as discrepâncias com o mapa ficam piores a oeste de Canivete. As comunidades que constam no mapa, e mesmo algumas das estradas, desapareceram.
Por exemplo, no mapa abaixo a localidade de Osório mostra boas estradas, ponte, capela, escola, um punhado de casas, e é claro a estação. Além disso, podemos ver no mapa o único túnel ferroviário entre Mafra e Porto União, num raro local em que os trilhos não seguem a trajetória do rio.
Pois bem, a figura abaixo mostra a realidade de Osório hoje:
Na foto acima, o morrinho à esquerda é onde o túnel ferroviário está. Obviamente tentei chegar lá mas a estrada fica impraticável logo em seguida ao local da foto. A parada ou estação 'Bugre' logo a oeste também aparece como uma vila no mapa e teve sorte semelhante.
Nesta região entre Canivete e Bugre o mapa do IBGE não é mais confiável, porque muitas estradas viraram caminhos dentro de reflorestamentos, que por sua vez possuem inúmeros caminhos internos, difíceis de distinguir das estradas públicas. Por outro lado, estradas públicas completamente novas também foram abertas no interim. O negócio vira um labirinto. Os pontos de referência tipo escola, igreja, etc. também desapareceram. O GPS salva a pátria em termos de localização, mas nem ele pode adivinhar que alguma estrada está impraticável.
Apesar dos pesares, e da má fama dos reflorestamentos, as idas e vindas a procurar o caminho revelam algumas paisagens interessantes.
Da localidade de Bugre (a oeste de Osório), há estrada boa para Três Barras e daí para Canoinhas.
A BR-280 foi construída em linha mais ou menos reta de Mafra a Canoinhas e dali a Porto União. Num longo trecho ela passa muito ao sul do Rio Negro/Rio Iguaçu, o que me obrigou a usar estradas interioranas entre Três Barras e Irineópolis.
Olhando no mapa ou no Google Maps, a ferrovia claramente segue o curso do rio e parece ter sido construída na barranca. Mas, vista do chão, isto não é óbvio. A ferrovia se apoiou exatamente onde o relevo "começa a subir", já fora da várzea. Ainda assim, aproveitar o vale aumenta bastante a quilometragem da ferrovia. Em alguns lugares o rio volteia a ponto de formar penínsulas, quase ilhas, e um túnel cortaria 80% ou 90% do caminho total.
Diversas localidades formaram-se em torno das estações da ferrovia. Como a BR-280 passa longe, as vilas minguaram com a extinção do transporte ferroviário de passageiros. Com a possível exceção da cidade de Irineópolis, que formou-se em torno da estação de Valões, todas as demais vilas estão menores no mundo real do que no mapa de 1980 do IBGE, sem falar nas que desapareceram de todo.
É o velho problema: a ferrovia oferecia um meio barato de transporte de passageiros, cargas e informação (correio e telégrafo — a "Internet" do início do século XX). De repente estes recursos desaparecem e nada vem em substituição. Queda e coice.
Três Barras, sede da legendária serraria da Lumber, ainda tem como principal atividade econômica a madeira, mas agora de reflorestamento. Muitas grandes empresas de madeira, papel e embalagens na cidade. Ainda assim é uma cidade bem acanhada.
A antiga estação ferroviária de Três Barras está muito bem conservada. Em tese é um museu, porém estava fechado, fato que se repetiu em todas as outras estações-museus que visitei... Curioso, isto.
Apesar da conservação da estação, a pavimentação asfáltica da rua próxima simplesmente recobriu a linha, sinal de que a ferrovia não tem muita esperança de reativação. Há uma esperança de ativar um passeio turístico entre as estações de Três Barras e Marcílio Dias, esta última reformada em 2021.
Algumas localidades não desaparecem completamente porque, além das finadas estações, também possuíam balsas para a travessia dos rios Negro e Iguaçu. Algumas balsas continuam em atividade devido à escassez de pontes: depois de Três Barras, a próxima ponte sobre o Iguaçu é só em Porto União.
Nestes lugares, as igrejas ainda cumprem sua função social de agregação, além de serem um marco geográfico. Nota-se como estão sempre bem pintadas e conservadas, com o indefectível salão de festas ao lado. E não vi nenhuma Mundial ou Universal por estes caminhos, graças a Deus :)
Uma coisa interessante é que a região é completamente arada. Ou tem plantações ou reflorestamentos. Quem mora no litoral de SC ou PR está mal acostumado, pois apesar dos pesares ainda há boas áreas preservadas da Mata Atlântica, bem como muita área de floresta secundária, regenerada. No Planalto não se vê muito disso; os primeiros morros com "cara" de floresta preservada eu fui ver nas imediações de Porto União.
As estradas interioranas estavam em geral em boas condições, nenhum trecho que exigiria 4x4. O solo é mole, meio argiloso/arenoso, típico do vale do Iguaçu. Semelhante ao que vi quando fui para Engenheiro Bley. As estradas devem ter exigido uma montanha de saibro para se consolidarem.
Irineópolis é uma cidade mais bonitinha que encontrei no trajeto (noves fora eu não ter passado por dentro de Canoinhas). Conseguiu escapar da sina das demais localidades dependentes da estação ferroviária.
Sua vista de longe lembrou aqueles típicos cenários de filme, com a plantação se estendendo ao infinito e a torre da igreja em destaque lá no fundo. Cenários que você não vê da rodovia asfaltada :)
Uma característica "chata" que verifiquei em alguns lugares, como em Canoinhas, é que o entorno da ferrovia vira favela ou local de moradias populares (desde casas de madeirite até loteamentos estilo Minha Casa Minha Vida). As próprias casas de ferroviários, sempre próximas às finadas estações, também estão via de regra ocupadas por posseiros. E por causa disto, estão incidentalmente mais conservadas.
A conservação da linha varia bastante, há lugares com mato alto, outros completamente limpos. Algum veículo (trem de capina ou auto de linha) tinha passado recentemente; geralmente as passagens de nível acumulam um pouco de lama, e nela viam-se marcas de flange.
De certa forma me surpreendeu que algumas estações ainda estão sendo preservadas no trecho. Mas um bom número simplesmente "evaporou". O resquício mais fácil de identificar é a esplanada da estação (faixa de terreno aplainado para suportar o pátio). A linha auxiliar normalmente já foi arrancada mas a base consolidada ainda inibe o crescimento do mato.
Não fosse por isso, seria impossível achar. O mapa do IBGE nesta área é 1:100.000; nesta escala o detalhamento é parco e há alguns erros (provavelmente porque algumas coisas têm de ser deslocadas para as letrinhas caberem).
Para não deixar os reles transeuntes da BR-280 chupando dedo, há uma belíssima obra de arte visível da rodovia: a ponte sobre o rio Timbó, entre Irineópolis e Porto União.
A ponte pode ser visitada facilmente pelo lado leste (direção de Canoinhas). Basta entrar na primeira estrada de terra a partir da rodovia, e caminhar pelos trilhos a partir da passagem de nível. (Não é possível atingir os trilhos pelo lado oeste nas proximidades desta ponte.)
Considere o leitor que, além destas obras de arte serem belas e jazerem prontas para uso, elas custaram ao País uma incrível fortuna, pelo menos em termos relativos, já que foram todas importadas no início do século XX. Nesta época o Brasil não tinha nem siderúrgicas nem divisas para pagar a conta em libras. Muita dívida externa foi contraída para pagar estas pontes metálicas.
Só por conta disto, deveriam ser mantidas em uso. Não concordo mas compreendo quem preferia ver a RFFSA mantendo as ferrovias funcionando ainda que deficitárias.
Fazer este tipo de pesquisa implica meter o nariz em lugares que a maioria das pessoas consideraria "suspeitos". Bairros pobres, estações ocupadas por posseiros etc. Na prática sou eu quem assusto os moradores :) O susto é facilmente dissolvido com um cumprimento e algumas perguntas sobre a ferrovia. O ser humano sempre fica feliz quando alguém se importa.
Cheguei em Porto União ainda durante o dia, afinal tinha de procurar um lugar para ficar. Aproveitei o resto de dia e dei umas voltas na cidade, atrás de alguns pontos turísticos bem óbvios.
Pelo acordo de limites entre Paraná e Santa Catarina, o rio Iguaçu é divisa desde Três Barras/SC até a ponte ferroviária de Porto União/SC. Dali em diante, o limite dos estados passa a ser a própria ferrovia, por uns poucos quilômetros. Da ponte em diante, o rio Iguaçu corre dentro do Paraná até as famosas Cataratas.
Apesar da ferrovia não mais atravessar o Iguaçu, o acordo não foi modificado. Portanto, na foto da Figura 51 eu estou pisando exatamente em cima do limite estadual. Este lugar, entre a estação e a ponte, foi convertido numa espécie de praça ou parque e os trilhos foram mantidos justamente para ilustrar esta questão dos limites.
A margem direita (*) do rio pertence integralmente ao Paraná e à cidade de União da Vitória/PR.
(*) Momento cultura inútil: a margem de um rio é definida como "esquerda" ou "direita" olhando-se para jusante, ou seja, para onde a água corre. No caso do Iguaçu, que corre mais ou menos no sentido leste-oeste, a margem direita está ao norte.
Há dois morros que permitem uma visão panorâmica da cidade, um de cada lado do rio. No primeiro dia, visitei o "Morro do Cristo", ao norte. A estrada de subida é asfaltada mas há uma escadaria adicional. Praticamente um exame cardiológico, e de graça :)
Perto deste morro, está a primeira ponte rodoviária de União da Vitória. Apesar de nunca ter sido ponte ferroviária, ela é igualmente estreita, passa apenas um automóvel da cada vez. A ponte de mão-dupla mais próxima é a da BR-476.
No entorno desta ponte, na área inundável do Rio Iguaçu, há um parque público bastante simpático. Esta é a destinação correta de tais terras, já que cedo ou tarde tomadas pelas enchentes periódicas.
Por outro lado, muitas destas várzeas são densamente habitadas, ou pior ainda, destinadas a uso industrial, tornando calamidades como a de junho 2014 uma coisa inevitável e até corriqueira.
Eu adoraria morar num lugar como Porto União. Meu maior temor é como seria o acesso à Internet, como usuário compulsório e compulsivo que sou. O problema é ainda maior devido à grande área e baixa densidade populacional destas regiões interioranas. Sempre fico pensando como o pessoal do interiorzão se vira para obter conectividade.
Observei que toda casa menos-má tem uma daquelas antenas para celular rural e/ou antenas para telefonia rural. Também é forte por essas bandas a figura do pequeno provedor de Internet, que no litoral foi praticamente extinto pela concorrência das grandes telecoms. Mais sobre isto nos próximos tomos do artigo.
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