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Já que tive de andar com pressa no dia anterior, aproveitei a viagem de retorno para novamente passar em revista às localidades que margeiam o Rio do Peixe, desta vez sem obrigações de horário. Mesmo assim, evitei Joaçaba, tratei de passar pelo outro lado do rio, que já é Herval d'Oeste/SC.
Aliás, este é um padrão que se repete algumas vezes ao longo do rio: cidades gêmeas nas margens opostas do rio: Ouro e Capinzal, Piratuba e Ipira, Joaçaba e Herval d'Oeste...
Um outro padrão encontrável em cidades gêmeas é o "primo rico/primo pobre". Herval d'Oeste é a "prima pobre" de Joaçaba, com uma notória (mas infelizmente comum) faixa de casas muito pobres nas proximidades do rio e da ferrovia.
O típico morador destas periferias, bem como os posseiros em antigas casas da ferrovia, tem a feição morena com traços indígenas. Protótipo do caboclo do Contestado, discriminado então e discriminado agora (*).
A outra característica repetitiva é que o vale do Rio do Peixe é "profundo". Já tinha notado isto em Caçador. As cidades têm uma avenida principal na margem do rio (mais a ferrovia, se for a cidade da margem leste) e todo o resto é morro acima, com grande declividade. É bonito (dizem que pessoas que moram perto de montanhas são mais felizes) mas deve causar uns transtornos, como o trânsito problemático que enfrentei em Joaçaba.
Confirmei minha impressão inicial sobre a pujança das cidades do Meio-Oeste catarinense, criadas a partir da Ferrovia do Contestado mas sem ter sofrido tão diretamente seu impacto social. Realmente o mapa da NASA não se engana: ele mostra o oeste de SC mais "iluminado" que a região central, e isto corresponde a desenvolvimento bem visível no chão.
Alguns lugares na beira da estrada ofereciam mudas de erva-mate, coisa que nunca tinha visto antes. Também passei por uma grande fábrica de mate, e coloquei a lente olho-de-peixe do DealExtreme pra trabalhar.
Parei na cidade de Pinheiro Preto/SC, onde está o único túnel construído na linha original (a variante da serra construída nos anos 1940 adicionou mais seis túneis). Em centenas de quilômetros, a ferrovia só deixa a margem do Rio do Peixe em dois pontos: na Volta Grande (onde foi trivial elidir um volteio do rio) e em Pinheiro Preto por conta do túnel.
O túnel de Pinheiro Preto está bem sinalizado, como uma atração turística mesmo. O acesso está mais fácil de um lado que de outro, mas pode-se atravessar pela própria linha. Além da unicidade, o outro aspecto pitoresco deste túnel foi ter sido palco de um "Assalto ao Trem Pagador", perpetrado pelo próprio capataz da obra do túnel.
Outra nota trágica é um pequeno cemitério próximo, apenas para os quarenta (!) trabalhadores mortos só na construção deste túnel. A construção da ferrovia consumiu 3.000 dos 8.000 ou 10.000 trabalhadores empregados nela. Isto era normal na época; a maioria morria de doença.
Há muitos pomares ao longo do Rio do Peixe, a cidade de Pinheiro Preto em particular intitula-se capital da uva, há parreiras ao longo das principais ruas. Como sempre o vale do rio é o aspecto dominante da paisagem.
Infelizmente a estação ferroviária de Black Pine está largada e ocupada por posseiros. Por outro lado, nas cidades de Rio das Antas/SC e Tangará/SC as estações estão devidamente conservadas.
De novo cogitei voltar por Timbó Grande, mas acabei preferindo visitar a localidade de Presidente Pena, no meio do nada entre Calmon e Caçador.
Sim, a estação possui este nome porque o presidente foi lá. Hoje é o estereótipo da desolação, embora houvesse bom movimento de carros na área, as pessoas vão tocando a vida.
Da sede de Calmon até ali, a ferrovia dá muitos volteios pois precisa descer 200m num trecho relativamente curto. A partir de Presidente Pena os trilhos seguem fielmente o Rio do Peixe, que começa a ganhar volume nesta região.
A paisagem geral da região de Presidente Pena faz muito mais justiça ao nome ilustre. A Figura 11 (fotografada a partir da estrada que leva para a localidade de Adolfo Konder em Caçador) mostra isso. Mantive a resolução original da foto para que você possa ampliá-la e apreciar os detalhes.
No caminho para Presidente Pena, se olhar com atenção para o morro na Figura 12 parece ser possível enxergar por onde desce a ferrovia. As árvores parecem alinhar-se, formando uma discreta linha reta horizontal. Você concorda ou eu estou vendo coisas?
O caminho para a antiga estação de Anhanguera, também em Calmon/SC, é o mesmo, uns 6km a partir da rodovia há uma bifurcação em Y, à esquerda fica presidente Pena, à direita fica Anhanguera. Na verdade, a estrada adentra uma propriedade particular a partir da passagem de nível mostrada na Figura 13 mas parece que o tráfego é tolerado, talvez porque haja enclaves (casas ou sítios completamente cercados pela propriedade maior).
Apesar da ferrovia estar bloqueada tanto do lado de Caçador quanto na serra em Porto União, trechos como este surpreendem por ainda não estarem completamente degradados. Apesar de muito sinuosa, a ferrovia parece ter inclinação bastante suave, algo em torno de 1,5%.
Minha intenção era ir até Anhanguera mesmo, visitar a caixa d'água que ainda está lá, bem como o famoso "loop" onde o trilho volteia um morro e retorna, quase formando uma pêra, não fosse por alguns metros de desnível vencidos pela manobra. A imagem abaixo dá uma possivel ideia da paisagem local:
O video a seguir, de onde foram retirados os fotogramas acima, mostra imagens raríssimas de um trem percorrendo os trilhos entre Caçador e Porto União:
Infelizmente há gente trabalhando no mundo enquanto nós passeamos, e a estrada para as imediações de Anhanguera estava bloqueada por um caminhão carregando madeira, e não haveria como o caminhão manobrar para abrir passagem, mesmo que o motorista não estivesse em horário de almoço.
Uma possibilidade é caminhar pelos trilhos a partir da passagem de nível. É uma saudável caminhada de uns 10km em subida leve... e a paisagem promete muito, pelos volteios visíveis no mapa e no Google Earth. Infelizmente não tinha tempo de fazer isso quando estive lá.
Noutro dia, tentei chegar em Anhanguera por noroeste. Consegui ver o morrinho do Anhanguera em muitos lugares, e cheguei bem perto dele (400m) porém o trecho final teria de ser à pé e com indumentária própria para entrar no mato, e tendo de cruzar o Rio do Peixe (que é estreito neste ponto, mas ainda é um rio molhado). Não encontrei estrada praticável que se conectasse com aquela outra vinda de Presidente Pena.
Mas valeu o passeio. Esta região é a nascente do Rio do Peixe e verte água em inúmeros lugares, na forma de olhos d'água e banhados, apesar de toda a devastação.
Para o outro lado da mesma estrada, descendo o Rio do Peixe, encontra-se a comunidade de Adolfo Konder, em Caçador/SC, onde também a estação desapareceu e as coisas estão bem mais devagar do que o mapa sugere.
Até a igreja que consta no mapa já sumiu. Só o cemitério, por razões óbvias, não foi embora. As roupas penduradas a secar, junto a casas que talvez pertencessem à ferrovia, dão o único toque colorido.
A estação de Adolfo Konder costumava ficar lá no "vanishing point" dos trilhos, onde eles são engolidos pelo mato, na Figura 19 .
(Devo aqui esclarecer que as últimas cinco fotos são anacronismos: foram tiradas em 2015, enquanto o artigo original é de 2013. Devido às enchentes de 2014 que interromperam de vez o tráfego vindo de Porto União, a pouca manutenção que havia cessou e a ferrovia deteriorou-se muito.)
Outra estação abandonada sem acesso direto por estrada de rodagem é a de General Dutra, entre Calmon e Matos Costa.
General Dutra parece ser o ponto mais alto da ferrovia. Pelo menos não há nenhum relevo mais alto que o observador, e o GPS indica quase 1200m de altura. A paisagem em torno é plana, com alguns banhados onde nascem os rios da região (o próprio Rio do Peixe nasce num lugar semelhante, perto da sede da cidade).
Por não ter acesso direto, General Dutra tem uma certa fama de difícil acesso, mas o único empecilho real é ter de andar algumas centenas de metros. Chegando a Calmon vindo de Porto União, entre na primeira estrada à esquerda depois do cruzamento do trilho com a ferrovia. Dá para ir de automóvel até as coordenadas 26º32'47"S, 51º05'02"W, se você se dispuser a entrar numa rua de reflorestamento. Se preferir não fazê-lo, a estrada pública principal margeia o trilho logo antes, e você pode seguir à pé a partir do ponto da imagem abaixo (apenas note que a foto abaixo olha para o sul e a estação está ao norte!).
É incrível como os trilhos nesta região ainda estão em bom estado, apesar da falta de manutenção e tráfego completamente interrompido de ambos os lados. A estação possui as coordenadas 26º32'15"S, 51º05'01"W, menos de 1km à pé a partir das coordenadas anteriores. Até a tradicional caixa d'água ainda está lá.
Nestas paragens interioranas, ainda se vê pouco de igrejas caça-níqueis. As igrejas tradicionais ainda mantém sua significação "totêmica", é o edifício que invariavelmente chama a atenção em cada localidade.
No caminho de volta, em Mafra/SC, vi que um trem com vagões-tanque tinha acabado de passar (no ponto onde o Tronco Sul cruza com a rodovia BR-280). Tentei segui-lo mas a estradinha que margeia o trilho acabou em lugar nenhum.
Quase chegando em casa, a nobreza obriga descer pelo Rio Natal (São Bento do Sul/SC) para ver se encontrava algum trem por ali. Pela n-ésima vez consegui não encontrar o caminho para esta localidade a partir do centro da cidade; sempre acabo me perdendo e fazendo uma volta desnecessária. Também é curioso que, sempre neste ponto, todos os aplicativos de mapas do celular se concertam para me deixar na mão :)
Enquanto estava perdido, identifiquei um recadinho do além:
Passar pelo Rio Natal valeu a pena, já que ali havia um trem, que o celular deu conta de filmar apesar de ser crepúsculo:
Curiosamente, havia nada menos que três automóveis com "trainspotters" na área! A "caçada" terminou com noite feita e chuva. Os demais se mandaram para casa, eu ainda insisti para ver se o celular ou a câmera iam funcionar melhor no escuro (o celular ganhou):
De Corupá para casa, feliz ou infelizmente de volta à vidinha cotidiana.
Muita gente deve achar que estes passeios são pointless. Como diria o Dogbert: coisa de gente rica, de mau gosto e sem nada pra fazer.
É certo que esta busca pela história e geografia locais visam satisfazer à camada mais alta da Pirâmide de Maslow. Também é certo que tais incursões exigem bastante tempo, tanto no planejamento quanto na execução.
Considero que tempo é o recurso mais escasso, que realmente limita a freqüência e escopo dos passeios. O custo de hospedagem e alimentação são muito baixos no "interiorzão". Eu sempre acabo perguntando duas ou três vezes o valor da conta, porque veio R$ 16 e eu esperava R$ 60.
No dia seguinte ao retorno, numa única visitinha ao shopping, gastamos mais do que eu tinha despendido em toda a viagem — excetuando o combustível. Se bobear o custo de vida "sedentário" com seus espasmos consumistas é maior que o custo de vida "em vôo".
Combustível é de longe o custo mais pesado, já que ele é (curiosamente) mais caro no interior, e geralmente rodo muito pois tenho de visitar muita coisa num curto intervalo de tempo. Neste passeio em particular, rodei 1311km, o que dá mais de 400km por dia.
O ideal seria rodar menos (menos de 200km/dia), permanecendo mais tempo em cada paragem, quiçá levando uma bicicleta, ou até indo de bicicleta ou outro transporte qualquer. Mas aí, haja tempo :)
(*) A tradução literal da expressão "then and now", significando, "no tempo passado e também no tempo presente" é válida em português ou acaba resultando num anglicismo?