NOTA: este artigo foi originalmente escrito em Janeiro de 2013 e atualizado em Julho de 2015.
Este texto não tem grandes pretensões, nem é sobre ferrovias. É apenas para "colocar no mapa" uma região muito bonita do estado de Santa Catarina. A correria começa em Ibirama/SC e dali para o norte, sempre para o norte, como o Lex Luthor em Superman II.
O local em questão é o vale do Rio Itajaí do Norte, mais conhecido localmente como rio Hercílio, que deságua no Rio Itajaí-Açu em Ibirama/SC. A partir de Ibirama, pólo do rafting, pode-se subir o rio por estrada até próximo das nascentes, passando por José Boiteux, Barra da Prata, e dali para Itaiópolis, Papanduva (onde nasce o rio) ou Santa Terezinha (onde nasce um afluente inicial importante, o Iraputã).
Esta é uma das áreas mais "verdes" de Santa Catarina, com relativamente pouca ocupação humana e bastante mata nativa, primeiro devido ao relevo, depois por ser terra indígena e hoje em dia pela preservação ambiental. A ocupação existente já está muito acima do tolerável, afinal é área de manancial, qualquer perturbação ali implica em secas e enchentes mais severas lá embaixo, em Blumenau.
Eu "namoro" a região desde os tempos de escoteiro, por ter comprado o mapa do IBGE da área. A idéia era ir de bicicleta, projeto nunca realizado; a vida adulta chegou mais rápido. Já fui lá outras duas vezes de carro, muito menos do que eu gostaria, dada a distância de Joinville.
Um atrativo óbvio da região é a represa de contenção Norte, uma das três que controlam os principais afluentes do Itajaí-Açu de modo a mitigar as enchentes em Blumenau. A represa Norte é maior que a soma das outras duas.
Ali era o coração da reserva indígena, que teve de ser realocada para terras mais acidentadas e menos férteis. Isto é motivo de conflitos até hoje. Já passei por dentro da nova reserva em outra oportunidade, quando saí do vale principal e subi a Serra do Vigante. A estradinha acaba na localidade de Bonsucesso, rodovia SC-477, entre Benedito Novo e Itaiópolis.
Não há terras adjacentes disponíveis para restaurar a reserva ao seu tamanho e qualidade originais. Seria necessário comprá-las de colonos, mas o governo não quer meter a mão no bolso. Desapropriar sem indenização, como em tese a lei permite no caso de terra indígena, também não é uma opção; converteria um problema social em outro, ainda mais explosivo.
Em 2015, a barragem estava novamente ocupada por dezenas de pessoas, que inclusive estavam impedindo a manutenção do maquinário.
O ponto da estrada de onde tirei a fotografia abaixo fica completamente submerso quando a represa é posta a funcionar:
Ou seja, quando a represa enche, a estrada deixa de existir nesse trecho, e quem vive a montante fica ilhado. Uma estrada mais alta é outra reinvindicação dos indígenas, mas a bem da verdade o problema afeta a todos que vivem a montante.
Normalmente o rio está na caixa original, mas a vegetação morta denuncia a parte inundável. A represa afeta as margens do rio por muitos quilômetros acima.
Devo avisar que é muito fácil perder-se em toda esta área. Há muitas estradas, muitas encruzilhadas e bifurcações, nem todas sinalizadas. O lance é fazer download dos mapas do IBGE, e ir com GPS (que quase todo celular tem hoje em dia). O mais importante não é nem latitude e longitude, é conferir a direção geral. Sempre noroeste. Nunca perca de vista o vale do rio Hercílio; a estrada sempre segue a margem direita do rio.
Peraí, como assim margem direita? Todas as fotos do texto mostram o Hercílio com o observador à esquerda! Sim, mas a convenção para denominar as margens é olhar para jusante, ou seja, para onde a água está correndo. Usando esta convenção, não há ambiguidade. Neste texto, estamos sempre na margem direita do Rio Hercílio, mas estamos subindo o rio, indo na direção da nascente. É claro, do meu ponto de vista de motorista eu estava sempre do "lado esquerdo" do rio, porque a percepção de esquerda e direita depende do observador. Mas seria incorreto (e ambíguo) dizer "margem esquerda".
O erro mais fácil de cometer é tomar alguma estrada à esquerda, que vai margear o vale de um afluente. Algumas destas estradas derivadas têm saída, outras não. Outro erro é atravessar um rio aparentemente caudaloso e achar que está atravessando o Hercílio.
Já cometi vários erros do gênero! Da segunda vez que fui à região, acabei subindo o vale do rio Dollmann a partir da represa, em vez do Hercílio, e acabei na cidade de Vitor Meireles. (A estrada certa permite ver a barragem pelo lado avesso, enquanto a estrada para Vitor Meireles ganha altura e se afasta do rio, embora pareça ser a estrada correta, talvez por ter mais tráfego.) Felizmente, de lá, havia outro caminho sinalizado para voltar à Barra da Prata, onde o rio da Prata deságua no Hercílio.
Lembro até hoje do comentário idiota que eu fiz, a certa altura: "Como o rio estreitou rápido na medida que subimos, né?". Se você estiver acompanhando um rio trivial, pode ter certeza que errou o caminho. O rio Hercílio é largo e profundo em toda a extensão; ele só diminui perto das nascentes.
A quantidade de água na região é impressionante. Basta parar com o automóvel em qualquer lugar, que se ouve uma cachoeira próxima. Deve haver um afluente importante a cada poucas centenas de metros, fora os fios d'água que brotam em todo canto e às vezes atravessam a rua.
Depois de muito chão, se você não errou o caminho, chega-se à bonita localidade de Barra da Prata, o epicentro das atrações naturais. Merecia ter um hotel ou pousada. Facilitaria a visitação em torno, porque como eu disse o local é longe, e tudo em volta é longe. Fazer a região em um dia, com família a bordo ainda, é uma corrida maluca.
No Rio da Prata você tem a opção de seguir adiante, ou então subir o vale do Rio da Prata, cuja estrada sai em Vitor Meireles. A bifurcação é bem sinalizada e está antes da ponte abaixo:
Ao longo desse caminho que sobe o Rio Hercílio, há diversas pontes: de concreto, madeira ou suspensas (apenas para pedestres). Se você mora e.g. no norte de SC, em algum momento pode escolher uma delas para cruzar o rio e tomar o caminho de casa. A ponte na região da Prata, que permite atravessar para o lado de Itaiópolis, é de madeira. Vista de longe:
Oops, desculpe, esta ponte era de madeira. Foi derrubada na enchente de 2014:
Uns quilômetros adiante, há a ponte Parolin, em região homônima. Ela é pênsil e não serve para um automóvel ir a Itaiópolis, mas é divertida de percorrer à pé porque balança muuuuuito. Antigamente se utilizava muito esse tipo de ponte sobre os rios da região, por ser mais barata e mais fácil de fazer bem alta, a salvo das enchentes:
Subindo o rio mais uns 10 quilômetros a partir do rio da Prata, há uma segunda ponte de concreto, que também conduz na direção de Itaiópolis. Pelo menos esta ainda está de pé. (A estrada entre esta ponte e Itaiópolis também é muito bonita e vale a pena ser percorrida.)
Deste ponto em diante, o vale fica mais estreito e fundo, com o rio correndo num leito de pedra. Quase um cânion.
A estrada "normal" conduz para oeste e para cima, para as comunidades de Blei Pombas e Craveiro, esta última uma vilazinha razoável que tem até posto de gasolina. Mas há uma estradinha bem estreita, que de relance parece apenas uma passagem para chegar à beira do rio. Por ali você pode continuar margeando o Hercílio. Essa estrada pode ficar tão estreita que parece um caminho particular e sem saída. Mas ela prossegue. Dependendo do clima, talvez um veículo 4x4 seja recomendável.
Uma boa parte do alto vale do rio, exatamente neste trecho onde a estrada torna-se vestigial, é uma RPPN (reserva particular de patrimônio natural), louvável iniciativa do Instituto Rã-Bugio.
A região possui um tipo de rocha bastante interessante, parece grafite, brilha como se estivesse molhada:
A direção genérica do Rio Hercílio, e da estrada, continua sendo noroeste como sempre, até uns 30km acima da Barra da Prata. Finalmente começa a descrever uma curva à esquerda e tomar o rumo oeste. Neste ponto havia uma terceira ponte, que também levava a Itaiópolis, também levada pelas águas em 2014. Com este rio não se brinca!
Neste ponto, finalmente a estrada deixa de margear o rio e ganha altitude na direção sudoeste. O rio continua a oeste.
Um grande afluente, o rio Iraputã, também possuidor de um vale profundo, vem pelo sul e deságua no Hercílio. Os vales dos dois rios delimitam a região do Craveiro — um platô de 700m de altitude, para sair de lá em qualquer direção é preciso descer ao nível de um rio (500m) e atravessar por uma das poucas pontes disponíveis. O cenário é muito bonito, basicamente uma região cercada de abismos por todos os lados.
A região alta é um contínuo de pequenas propriedades rurais. A navegação fica ainda mais difícil porque não há mais um vale de rio proeminente para se guiar. A carta do IBGE para a região (Santa Cecília) é em escala 1:100.000 e bastante desatualizada, então mesmo com mapa e GPS nem sempre é simples achar o caminho, em particular se você procurar estradas mais secundárias, como eu faço. Escolas e igrejas acabam sendo as referências mais seguras em terra.
O rio Iraputã, afluente do Hercílio, é um obstáculo natural importante a oeste do Craveiro. Subindo o rio desde a foz, são 15km em linha reta até achar a primeira ponte, próxima da localidade de Nova Cultura:
Apesar de estar próximo da nascente, o rio Iraputã ainda tem bastante volume, fruto da ainda enorme área de drenagem que o alimenta.
A localidade de Nova Cultura encontra-se num pequeno platô da região, em torno de 100m mais alta que os vales de rios que a cercam. Ao sul e a oeste deste ponto, estão os contrafortes da Serra Geral.
Esta região parece mais desenvolvida no mapa do que no chão. Um desafio ao navegar nesta área é a inexistência de estradas que constam no mapa. Provavelmente foram caminhos cortados na época áurea da exploração desenfreada de madeira.
Nesta região, um marco geográfico bastante visível é o Morro do Taió, por ser alto e isolado. Na foto abaixo ele pode ser visto de forma bem destacada, a partir da estrada que liga Nova Cultura à BR-116 de forma mais ou menos direta:
Diz a lenda que o primeiro monge do Contestado, São João Maria, quando desapareceu, tinha ido ao morro do Taió e dali para o céu. De certa forma, este morro é mesmo um marco oriental do Contestado.
Nesta região a BR-116 está mais ou menos sobre o divisor de águas entre os vales do Itajaí e do Negro/Iguaçu. Os rios que nascem a leste da BR-116, como o Hercílio que nasce perto da sede de Papanduva, correm para o Itajaí-Açú. A oeste da rodovia corre o rio Canoinhas, que demarca a cidade homônima e deságua no Rio Negro. Outras estradas seguem padrão semelhante: a SC-477 que leva de Itaiópolis a Blumenau também corre em parte sobre a Serra da Moema, divisor de águas entre os vales do rio Benedito e Preto.
Fique com mais algumas imagens da região de Iraputã, de tirar o fôlego, fotografadas a partir do norte dessa região, descendo da "Volta Triste".
O Morro do Taió, que não fica em Taió e sim em Santa Terezinha/SC, tem acesso fácil e sinalizado a partir da estrada que leva da região de Nova Cultura ao município citado. A base do morro serve como opção de lazer local, para churrascos e acampamentos, e pode-se subir o morro para mirar a paisagem. Prepare as pernas, que são 200m de desnível.
Infelizmente, a vista é desobstruída apenas para oeste, que é a face mais íngreme do morro. Para enxergar o lado leste, que é o vale do Hercílio, é preciso forçar a vista por entre as árvores ao longo da trilha. Binóculo ou máquina fotográfica com zoom é o que você precisa para poder ver o "avesso" da paisagem (pelas outras fotos do artigo, pode-se constatar que o morro é visível a partir de muitos pontos do vale do Hercílio e mesmo além).
Pois é, eu disse que não falaria de ferrovias, mas existe uma leve relação entre este vale e o transporte ferroviário. A E.F.S.C. tinha planos genéricos de subir pelo vale deste rio em direção ao Planalto Norte. A declividade natural do vale seria muito apropriada. Um pequeno ramal chegou a ser construído até Ibirama/SC, mas não foi adiante.