A idade ensina uma coisa: as coisas passam. A passagem da idade não me incomoda, mas o desaparecimento de coisas queridas, sim. Por isso, deve-se correr atrás delas antes que seja tarde demais.
Já que é assim, vamos correr atrás, inspirado no livro de Ralph Giesbrecht que empresta o título a este artigo.
Dado o meu status de "train geek", era realmente surpreendente não ter andado cada metro de trilho da estação ferroviária de Joinville. Mas esta lacuna foi preenchida!
Na verdade já tinha percorrido o pátio principal mais de uma vez, mas faltava um desvio mais afastado, que já criou bastante mato, e dado o (pequeno) risco de topar com uma cobra, a melhor época para fuçar ali teria sido no inverno... mas enfim.
Talvez seja invasão de propriedade entrar na estação. A rigor, até andar na linha férrea é proibido. Mas enfim, quebrar uma regrinha de vez em quando faz parte da vida, até pra reproduzir a gente tem de "invadir" outro ser vivo :)
A outra preocupação é topar com um andarilho. Sempre se vê alguém andando no trilho, mas descobri uma das razões: há muitas casas habitadas dentro da estação, umas vinte ou trinta. Naturalmente os moradores (inclusive crianças) vêm e vão. Talvez sejam ocupações irregulares, ouvi dizer que há muitos casos de descendentes de ferroviários que pleiteiam usucapião.
Acima você pode ver o quadro sinótico da estação de Joinville. A linha vermelha é justamente o desvio abandonado que percorri quando tirei as fotos deste artigo.
Não deixa de ser interessante o contraste entre o quadro sinótico e a "coisa real" (foto logo abaixo). O serpentear dos desvios parece criar complexidade quase infinita, enquanto o quadro mostra que a estação é inteligível. Quase decepcionante de tão simples.
A estação de Joinville realmente não é das maiores, sempre foi "de passagem". Por exemplo, nunca teve um triângulo ou rotunda — dispositivos utilizados para virar uma locomotiva (tarefa tornada desnecessária pela migração do vapor para o diesel).
Com o tempo a própria estação tornou-se um estorvo, já que o trem não mais transporta passageiros, nem correio, nem cargas "miúdas". Nenhuma linha que não a principal é utilizada, nem mesmo para cruzar trens, já que a estação (que parecia infinitamente grande quando eu era criança) é muito curta para os quilométricos trens atuais.
Além do mais, cruzar trens dentro da cidade suscitava muitas reclamações pois interrompia o trânsito. Pátios novos, fora da cidade, foram construídos para este fim.
Ainda a respeito do tal desvio abandonado (ou melhor, mais abandonado que os demais), é provável que ele tenha sido construído bem depois do pátio principal.
Um documento antigo da RVPSC, o "Relatório ref. ao ano 1956 apresentado ao Ministro da Viação e Obras Públicas", encontrável no Arquivo Público do Paraná e no Google, menciona a desapropriação nas vizinhanças da estação por volta de 1950, mas talvez esta tenha sido a data do pagamento.
Mais curioso ainda é que uma empresa daqui de Joinville chegou a reparar vagões ferroviários. A "Metalúrgica Joinville" celebrou contrato de terceirização deste serviço com a RVPSC. Neste livro há até uma foto do desvio ferroviário para a tal empresa. Parecia estar ao sul da estação, mas não tenho 100% de certeza.
Lembro (dos tempos de infância) que havia um galpão, provavelmente um depósito de locomotivas, ou oficina. Duas linhas passavam por dentro dele.
Que havia alguma coisa, está claro; o "esqueleto" ainda está lá, conforme pode-se ver na foto, mas não consigo mais lembrar cor ou formato do prédio. A velha ladainha: devia ter fotografado e/ou visitado enquanto era tempo...
Quando o contorno ferroviário for terminado, o trem não passará mais por ali, os trilhos serão arrancados. Mas pelo menos visitei e fotografei a tempo.
Por incrível que pareça, Joinville já teve um porto, praticamente a única ligação com o resto do mundo antes da ferrovia. Era no bairro Bucarein, na área do Moinho Joinville (hoje pertencente à Bunge).
Note, na foto acima, uma ponta da linha embutida no calçamento. Há uns vinte anos atrás, não havia muro e era possível ver sua continuidade ao longo do moinho.
O ramal ferroviário do Bucarein, entre a estação e o porto, foi construído bem depois da Linha São Francisco.
No "Relatório de 1956" da RVPSC há uma menção bem taciturna, mas suficiente para situar a data de construção do ramal em 1952.
Parece que o empresário Lauro Carneiro de Loyola foi o proponente da construção deste ramal. Este grande empresário e político, nascido em Paranaguá, que fez muito pela nossa cidade, também vai caindo no esquecimento. Ao menos alguém lembrou dele na hora de batizar o aeroporto de Joinville.
O porto foi caindo em desuso, provavelmente porque não comportava barcos grandes e devido ao progressivo assoreamento do Rio Cachoeira (hoje a profundidade de maré baixa é praticamente zero). Ainda assim o ramal tinha movimento por conta das empresas marginais (moinho, Confloresta e Stein).
O Bucarein é um bairro interessante, por já ter sido industrial/portuário — e por ter perdido este status. Prédios abandonados, casas com estilo antigo, trilho margeando a rua, cara e "peso" de subúrbio decadente. Delimitado por rios e ferrovia, é cheio de ruas sem saída. Era um lugar que dava medo ir. Não porque fosse inseguro; era apenas assustador.
Está mais vivo (e menos interessante) por conta da ponte Mauro Moura e pela ressurgência como bairro residencial. No "meu tempo", morar no Bucarein era praticamente "esconder-se". (*)
O ramal ferroviário foi morrendo aos poucos, por constrição da cidade à sua volta. O último embate entre linha férrea e prefeitura foi por volta de 1999. Logo depois, o asfalto cobriu a linha férrea, em frente à Arena Joinville. A própria arena foi construída exatamente em cima da linha, quitando seu destino.
Paulatinamente, outras passagens de nível entre o Bucarein e a estação foram eliminadas. Cheguei a ver vagões estacionados no ramal por volta de 2003. Os cruzamentos com a rua São Paulo e Florianópolis foram selados depois disto.
Uma parte da faixa de domínio ainda pertence à União e não teve outra destinação. Deste modo, ainda encontram-se trechos de linha férrea, em graus variáveis de conservação (ou decomposição), variando do quase sumido ao quase intocado.
O ramal do Bucarein foi moldado pela hidrografia, o que não é exatamente uma surpresa, já que servia a um porto fluvial. Seguia aproximadamente os rios Bucarein (outra não-surpresa) e Cachoeira. Isto não o isentou de uma ponte sobre o rio Jaguarão.
A propósito, este conjunto de rios é o que complica o trânsito em todo o entorno (bairros Bucarein, Guanabara, Boa Vista) pois o único jeito de passar de um bairro a outro é atravessar alguma ponte, e pontes são sempre um recurso escasso.
Assim como o rio moldou a linha férrea, esta moldou o bairro, já que muitas ruas e inúmeras propriedades foram recortadas em função da faixa de domínio, e continuarão assim por todo o futuro previsível.
A imagem acima mostra a "cicatriz" diagonal, num trecho onde o trilho está praticamente desaparecido (enterrado ou coberto pelo mato).
Aí entra o que eu falei no início do artigo. Tive muitas oportunidades de fotografar o ramal enquanto ainda estava "inteiro", mas deixei passar. Agora o jeito é correr atrás dos pedacinhos que restam.
No quadro sinótico da estação ferroviária de Joinville, mostrado no início do artigo, o ramal Bucarein não passa de uma linha singela verde, mas na verdade ele possuía alguns desvios.
Havia um pequeno pátio com duas ou três linhas no porto (conforme mostra pelo menos uma foto antiga) e linha dupla em paralelo à rua Morro do Ouro.
A foto acima mostra o antigo prédio do Stein, ainda com o logotipo. A linha férrea dupla passava exatamente onde está a ciclovia.
Lembro que sempre havia vagões estacionados neste trecho em frente ao Germano Stein, até meados dos anos 80. Os trilhos e o próprio AMV (aparelho do desvio) estavam ali talvez até 2007, jazendo inúteis porque as passagens de nível do ramal tinham sido asfaltadas.
A rua Morro do Ouro segue a linha férrea, e em certo trecho o trilho acabou simplesmente enterrado, em vez de removido.
Acho que sempre houve uma relação de "promiscuidade" entre rua e ferrovia por ali. Por exemplo, sempre houve casas "do lado de lá" do trilho, e a linha sempre foi parcialmente enterrada para que eventuais automóveis pudessem cruzá-la em qualquer ponto.
A rua vai estreitando, estreitando, até ficar da largura típica de uma linha férrea. Diz a lenda que é a largura dos traseiros de quatro cavalos, lado a lado.
Explico: quando fizeram a primeira ferrovia na Inglaterra, a largura baseou-se nos caminhos preexistentes, que tinham sido construídos pelos romanos. Que tinham definido esta largura com base nas "bigas", aquelas carroças de um eixo puxadas por dois cavalos emparelhados. A estrada tinha de ser larga o suficiente para duas bigas cruzarem.
Assim, concluímos que a largura da rua Morro do Ouro é definida em função da bunda do cavalo :)
Pela idade aparente das casas, os moradores devem ter convivido com o trem literalmente "na porta de casa".
E certamente as casas são irregulares, pois estão em faixa de domínio — embora a extinção do ramal deva ter aliviado este problema.
Segundo uma moradora, a União cobra uma taxa anual, semelhante aos terrenos de marinha, embora seja possível pedir isenção quando a renda é baixa.
Considerando a proximidade com o rio Cachoeira, que está mais para braço de mar, eu não duvido que sejam realmente terrenos de marinha.
Além da bunda do cavalo, outra lenda, esta mais específica do ramal Bucarein. Diz-se que o prefeito Nilson Bender pretendia estender o ramal até o Distrito Industrial, ou seja, uns 15km para o norte, inclusive visando transporte de passageiros. Mas teria sido "desencorajado" pelas empresas de transporte coletivo etc.
Ouvi essa história uma única vez de uma única pessoa, então não tenho a menor ideia se tem algum fundo de verdade. Mas a ideia de esticar o ramal era realmente boa. O decreto municipal 4163/80 sugere que foi cogitada a extensão do ramal no sentido oposto: para o bairro Boa Vista.
Há muita discussão do que fazer com os trilhos que passam por dentro de Joinville, Curitiba e Jaraguá do Sul (cidades onde contornos ferroviários estão sendo construídos ou planejados). Sempre se aventa o reuso para transporte de passageiros, mas a chance disto acontecer é tão grande quanto na época do prefeito Bender...
O trecho final do ramal, que inclui a ponte, está mais difícil de acessar: bem coberto pelo mato e implica desrespeitar uma placa de entrada proibida, bem visível. (Talvez se eu fosse sem óculos? :)
Uma opção seria andar exclusivamente pelo leito, que no sítio da foto faz uma suave curva à direita. Com esse mato todo, e cobras e lagartos, é coisa pra fazer no inverno, e devidamente trajado. Não num passeio pós-prandial.
Meia-volta, volver. Mas não por muito tempo.
O final da rua Coronel Francisco Gomes ainda conserva o legítimo ar pesado de subúrbio do Bucarein: quintais de indústrias, prédios semi-abandonados, lixo (ou melhor, reciclagem) no final do beco sem saída.
O trilho cruzava com esta rua, nas imediações da empresa Sofix e fundos da Arena Joinville. Até a última vez que tinha passado por lá, a rua ainda possuía a "lombada" do trilho, agora nem isso.
As fotos acima mostram onde estava a passagem de nível. A primeira das três é o estado atual. Atrás da cerca-viva, o trilho ainda aparece. Surpreendentemente bem conservado, como se a linha ainda estivesse sendo mantida. Alguém deve estar passando veneno, apesar de ser "terra de ninguém".
O contraste é mais evidente olhando-se para o outro lado da rua: mato enfezado e fechado, não é mais possível distinguir onde havia a linha férrea, é como se ela nunca tivesse cruzado a rua.
A fixação do trilho com parafuso direto no dormente entrega a idade. Hoje, linhas com tráfego usam fixação indireta: mesa de metal fixada no dormente, trilho fixado na mesa. As linhas mais bem mantidas usam molas para ligar o trilho à mesa (sistema Pandrol ou similar).
UPDATE: Infelizmente, em setembro de 2017, constatei in loco que aquele pedacinho de trilho foi totalmente retirado :(
Restaria visitar o trecho cortado pelas ruas Florianópolis, São Paulo e Getúlio Vargas, mas também está completamente tomado pelo mato. Uma pena, pois daria uma excelente travessia para pedestres e ciclistas.
Assim o ramal do Bucarein vai penando sua morte, sem ter direito a um enterro decente.
As coisas passam, e isto não é um problema meramente individual. A memória histórica perde-se muito facilmente, principalmente a memória do plano local/municipal que praticamente não tem historiadores profissionais dedicados a guardá-la.
E este problema ficará mais grave com o avanço das mídias digitais. Por mal preservado que esteja nosso passado recente, ainda há toneladas de papéis nos arquivos históricos, legíveis a qualquer interessado. Já a informação digital, uma vez perdida, não deixa rastros. Dados criptografados ou em formatos obsoletos são inúteis mesmo quando preservados.
Costumo dizer que, quando ganhar na loteria, vou tornar-me um "fuçador de velharias" em tempo integral, sendo o "fuçador" um híbrido de antropólogo, arqueólogo e historiador...
...mas o fato é que preservar a memória é importante demais para esperar por este improvável evento. Tem de ser feito logo e sempre, na medida do possível.
Neste ponto, tiro meu chapéu para os que já têm feito este trabalho à grande, como Ralph Giesbrecht do site 'Estações Ferroviárias' (que já citei antes), Henry Henkels e Flávio R. Cavalcanti do site VFCO.
Ao revisar as fotos mais acima, vi que tinha material bastante para escrever um artigo sobre o ramal ferroviário e descansar em paz a respeito.
Exceto por um item: a ponte sobre o rio Jaguarão.
Não tinha conseguido fotografá-la, nem mesmo vê-la. Procurei muito na Internet, mas há apenas uma referência num documento oficial da prefeitura. Nenhuma foto panorâmica que mostra o Moinho estende-se suficientemente à esquerda para mostrar uma nesga de ponte.
Por que este fetiche por ponte? Honestamente não sei, mas é algo comum entre train geeks. Um dos motivos racionais (ou racionalizados) que eu tinha para querer ver a tal ponte, é que sua construção e estilo entregam a época em que foi projetada. Outro motivo é que, em se tratando de ramal extinto, a ponte pode desabar e/ou ser removida a qualquer tempo.
Deu um certo trabalho, porque todas as áreas adjacentes, às margens do rio Cachoeira, são particulares e fechadas. Fui no museu Fritz Alt, num morrinho exatamente na frente da foz do rio Jaguarão, mas há muitas árvores. Mal dá pra divisar a foz, quanto mais a ponte... Devo ter feito ainda umas dez voltas no quadrilátero Ciser-Ponte do Trabalhador, à procura de um ponto de fotografia, e nada.
(Algumas fotos em zoom que tirei "às cegas" mostraram uma nesga da ponte, que não tinha conseguido ver a olho nu. Então a ideia de ir no Fritz Alt não foi de todo má.)
Só restavam três opções, todas incômodas: ir de barco, pelo matagal fechado ou pelo Moinho, com permissão. Entrei numa rua que margeia o rio Jaguarão, imaginando que fosse chegar nos fundos do Moinho, já escolhendo as palavras para ver se me deixavam entrar.
Mas descobri que ali é o clube social do Sindicato do Comércio, onde há restaurante e o acesso é mais ou menos público. Deste clube, é possível ver uma boa parte da ponte, conforme as fotos mostram. Missão cumprida!
É certo que a foto mais bonita seria tirada de dentro de um barco, para pegar a ponte inteira e a foz do rio. É algo a se fazer um dia desses, por completeza, mas sem urgência. Pelo Google Earth a ponte mede apenas 10 metros, então já peguei a maior parte.
Indo pelo terreno da rua Morro do Ouro, não ia conseguir chegar nem perto. O matagal está muito alto e aquelas plantas típicas de beira de rio estão tomando a própria ponte. Mais um tempo e vai parecer um jardim suspenso.
O estilo da ponte (aço rebitado) é igual ao de muitas outras da linha São Francisco, construída em 1915. Ou reaproveitaram esta ponte de outro canto, ou o ramal Bucarein é mais antigo do que eu imaginava.
O clube termina antes da antiga linha férrea, então não pude "tocar" a ponte. Mas para fins de fotografia talvez tenha sido melhor ali que no Moinho (além de economizar minha saliva).
Deu pra ver que há um portão enorme bloqueando o acesso (naturalmente para impedir invasão ao Moinho a partir da outra margem) e há uns arbustos enormes em volta. A única visão 100% desimpedida é a partir da água, mesmo.
Uma bela joia, incrustada no centro de Joinville, que praticamente ninguém conhece. Qualquer dia desses, desaba e desaparece para sempre. Mas desta vez eu cheguei antes.
Notas e atualizações
(*) O bairro Bucarein estende-se às ruas Anita Garibaldi, Getúlio Vargas e São Paulo, que são bastante movimentadas. Os moradores destas imediações tendem a identificar seu bairro como "Anita Garibaldi" ou "Rua São Paulo", reservando o nome "Bucarein" apenas para aqueles quarteirões a leste da rua Procópio Gomes.
Talvez esta distinção tenha emergido naturalmente, pelo fato do bairro ter blocos tão diferentes entre si. Ou uma manifestação de micro-bairrismo pura e simples. Como ex-morador das imediações do Keuneke, sempre identifiquei meu bairro como "Anita Garibaldi" e reproduzi o erro no artigo, "sem querer querendo".