Segundo reportagens como esta que pipocaram neste início de 2020, tratores velhos, de 40 anos de idade, estão alcançando valores bem altos no mercado, porque os fazendeiros estadunidenses estão disputando-os a tapa.
Por mais que um trator velho beba mais e quebre mais, o conserto pode ser realizado com mão-de-obra local. Não raro o próprio fazendeiro sabe um pouco de mecânica e se vira sozinho. Já os tratores novos exigem computadores especiais, ferramentas especiais, na prática deixando o dono à mercê da fábrica. Não ajuda o fato de um trator novo ser realmente caro, em torno de US$ 200 mil nos EUA.
Não é segredo que o "Foo-as-a-service" (FaaS), vendor lock-in e obsolescência programada formam o cerne do plano de negócio de todas as grandes empresas hoje em dia. De Nespressos a videogames a tratores. Até na mecânica de bicicletas está uma folia de ferramentas especiais e incompatibilidade entre fabricantes!
Isto não é necessariamente uma grande conspiração do patriarcado capitalista militar-industrial branco estadunidente. No passado, vendor lock-in era uma prática mais associada aos japoneses, vide a profusão de mídias e formatos proprietários que a Sony já lançou.
A própria evolução tecnológica é a grande causa. O mercado pede equipamentos cada vez mais leves, energeticamente eficientes, bonitos, aerodinâmicos, práticos, baratos, inovadores, de baixa manutenção dentro do prazo de garantia. As pessoas querem ver os carros e os iPhones renovados a cada ano.
Para atender estas expectativas, é preciso ceder em outro lugar, e esse lugar é a complexidade de construção, que leva à dificuldade ou impossibilidade de manutenção posterior. Dá pra fazer um iPhone que seja consertável, com ferramentas comuns? Dá, mas seria grande e pesado como um tijolo. E se existisse a expectativa da Apple manter peças de reposição para esse iPhone ao longo dos próximos 30 anos, ele custaria ainda mais caro.
Em outro texto, ridicularizei alguns cacoetes automotivos dos brasileiros. Existe por aqui esse verdadeiro culto por carros velhos: Opalões, jipes, picapes diesel. Também existe uma infinidade de canais do YouTube sobre carros velhos, dicas de manutenção, discussão animada sobre as decisões de engenharia da época, etc.
Não compartiho desse gosto, não gosto de meter a mão na graxa, mas dá pra entender por que tanta gente aprecia tecnologia um pouco mais antiga. Quando você mora lá onde Judas perdeu as botas, onde não tem concessionária próxima, e o posto não tem diesel S-10, até para os endinheirados faz sentido andar de Silverado ou de F-1000.
Entre caminhoneiros autônomos, acontece algo parecido. Muitos estão preferindo caminhões antigos, que já deviam ter ido para o ferro-velho há muito tempo. Mas são fáceis de manter, e não raro as peças de reposição vêm mesmo do ferro-velho.
É como viver num mundo estilo Mad Max, porém o apocalipse não foi causado pela guerra nuclear, e sim pela evolução tecnológica, que vai abandonando aquela parte da clientela que vive fora da bolha.
Outra origem inadvertida de vendor lock-in e obsolescência programada são as proteções anti-roubo. A Apple é notória por bloquear o funcionamento de peças transplantadas em Macs e iPhones. No mundo automotivo isso também é comum hoje em dia: se motor, transmissão e centralina não estiverem pareados, o veículo não funciona.
Numa primeira aproximação isso é totalmente desejável, pois inibe o roubo desses bens móveis caros. Mas, num segundo momento, quando o fabricante nem fornece mais peças de reposição, não vai ser possível obter peças nem mesmo por canibalização.