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O que é seqüência zero ou terceira harmônica

Muitos materais, inclusive a NBR 5410, falam de "corrente de seqüência zero" e de "terceira harmônica". O negócio deve ser importante, porque mexe no bolso: isso influencia na escolha da bitola dos cabos elétricos, que estão super caros por causa da cotação do cobre. Também se ouve aqui e ali que fontes de aparelhos eletrônicos e lâmpadas de LED são "vilões" do sistema elétrico, pelos mesmos motivos.

Até o Great Scott (youtuber de eletrônica, que também vende circuitos, como o popular transceiver SDR HackRF) publicou recentemente um vídeo sobre o assunto.

Mas do que se trata exatamente essa "seqüência zero", por que os aparelhos eletrônicos geram esse negócio, e por que isto é ruim? E, finalmente, devemos nos preocupar com isso?

Circuitos lineares, ou não

No contexto deste artigo, uma carga linear é aquela que consome uma corrente proporcional à tensão, ao longo de todo o ciclo de corrente alternada (AC).

Aparelhos "burros", sem eletrônica envolvida, são naturalmente lineares. Neste grupo entram as cargas puramente resistivas como chuveiro elétrico, forno elétrico, ferro de passar, lâmpada incandescente, etc. Também são lineares as cargas indutivas, como os motores, ainda que possuam fator de potência menor que 1.

Aparelhos eletrônicos costumam ser não-lineares. Por exemplo, um método comum de controlar potência usando eletrônica é o circuito "chopper", que conduz corrente apenas durante parte do ciclo. É um circuito simples e barato, que usa apenas um componente ativo (SCR ou TRIAC).

Figura 1: Curva de corrente de um circuito chopper (vermelho vivo) contra a curva de tensão AC (vermelho suave).

Hoje em dia, até mesmo chuveiros usam o "chopper", pois ele permite variar a potência continuamente e custa mais barato que uma chave mecânica (lembra dos chuveiros de antigamente, com a chave verão/inverno?) Lembrando que o chuveiro é o aparelho mais potente de uma residência típica.

Depois do chuveiro, as cargas mais pesadas costumam ser o ar-condicionado e a geladeira, que estão migrando para a tecnologia "inverter", com motor de corrente contínua (DC).

Da mesma forma, computadores, TVs, carregadores de celular, lâmpadas LED, etc. todos funcionam com energia DC, e portanto embutem uma fonte de alimentação para converter AC em DC.

O coração de uma fonte AC-DC é um retificador, que produz DC pulsante, seguido por um capacitor, que produz DC mais ou menos constante. O capacitor funciona como filtro e também como elevador de tensão, fornecendo uma tensão DC eficaz maior que a tensão AC eficaz de entrada, pois nivela a tensão por cima.

Figura 2: O coração de uma fonte que converte AC para DC. O transformador rebaixador de tensão pode vir antes ou depois deste bloco.

O problema da fonte DC típica é que ela só puxa corrente quando a tensão absoluta AC ultrapassa a tensão DC já acumulada no capacitor. O resultado é um perfil de corrente AC pulsante, conforme o gráfico abaixo.

Figura 3: Onda de corrente de uma fonte AC/DC de baixa qualidade.

Puxar corrente pulsante de uma bateria (que é um gerador DC "natural") não seria tão problemático. Porém, ela causa diversos aborrecimentos numa rede AC.

Circuito não-linear versus rede trifásica

Como você deve saber, a rede elétrica é trifásica. A soma das tensões das três fases é sempre igual a zero, ou pelo menos tende a zero. Se as cargas estiverem razoavelmente bem distribuídas entre as fases, a corrente de neutro tende a zero, pois a corrente tende a fluir direto de uma fase para as outras duas.

Figura 4: Rede de energia trifásica. Mesmo que as residências sejam monofásicas, a corrente tende a circular entre as fases, o neutro servindo primariamente como referenciamento de tensão zero, por ser aterrado.

Isso quando as cargas forem lineares. Quando cargas não-lineares entram na jogada, acontece de uma fase conduzir enquanto as outras estão "desligadas", forçando toda a corrente a retornar pelo neutro. Vamos revisitar o gráfico de uma carga pulsante, para uma fase:

Figura 5: Onda de corrente de aparelho eletrônico conectado a uma rede monofásica.

No gráfico seguinte, sobrepomos as correntes pulsantes de três fases:

Figura 6: Aparelhos eletrônicos conectados às três fases de uma rede trifásica. Os traços finos e vivos são as ondas de corrente, os traços largos e suaves são as ondas de tensão. As cores correspondem a cada fase.

Observe que, quando a fase vermelha está conduzindo corrente, as fases verde e azul não estão conduzindo nada, portanto a corrente de retorno não pode fluir por elas, sendo obrigada a retornar pelo neutro. O mesmo acontece com as demais fases, em instantes diferentes. E assim o fio neutro tem de conduzir toda a corrente de retorno das três fases.

O gráfico abaixo mostra a corrente do ponto de vista do fio neutro:

Figura 7: Onda de corrente de neutro numa rede trifásica, quando há exclusivamente cargas pulsantes conectadas às fases.

Temos dois problemas aqui. Primeiro: uma vez que o neutro tem de conduzir toda a corrente de retorno de três fases, ele está conduzindo uma corrente eficaz três vezes maior que cada fase. Portanto, o condutor de neutro tem de ser de bitola maior que os condutores de fase.

Isso desvirtua a ideia do sistema trifásico, que é justamente conduzir o máximo de energia usando o mínimo de cobre. As cargas pulsantes deixam o sistema com "cara" de monofásico, com as desvantagens do monofásico.

Segundo: se você reparar, o ciclo da corrente de neutro é três vezes mais rápido que o da fase. Ou seja, estamos empurrando uma corrente de 180Hz numa rede elétrica que está preparada para lidar com apenas 60Hz. 180 é o triplo de 60. É a temida "terceira harmônica".

Harmônicas

Como vimos, numa rede trifásica com cargas pulsantes, a terceira harmônica não é uma filigrana teórica; realmente corre energia a 180Hz no neutro.

É por isso que "carga pulsante" e "terceira harmônica" são praticamente sinônimos na literatura especializada. Uma análise mais rigorosa mostra que os pulsos também produzem harmônicas de 9a ordem, 15a ordem, 21a ordem... coletivamente chamadas de "terceiras harmônicas".

Mas, o que podemos dizer da corrente em cada fase? Ela é pulsante, mas continua sendo de 60Hz, certo?

Em eletricidade, vale o chamado "princípio da superposição", em que a soma de duas ou mais ondas produz um resultado linear. Então, para entender os efeitos de uma corrente cuja forma de onda é complexa, podemos desmembrá-la em diversas ondas mais simples, e então analisar o efeito de cada onda individual.

Por outro lado, o matemático Fourier provou que qualquer onda periódica pode ser formada pela soma de ondas senoidais, cujas freqüências são múltiplas inteiras da fundamental, também chamadas de harmônicas. Desta forma, podemos analisar a corrente pulsante como sendo a soma de diversas harmônicas:

Figura 8: Sintetização de uma onda pulsante (verde-limão) pela soma de ondas senoidais segundo a receita: 1.0x a fundamental, 0.33x a 3a. harmônica, -0.2x a 5a, -0.14x a 7a, 0.11x a 9a. A adição de mais harmônicas produziria uma onda com cantos mais vivos.

Assim sendo, podemos analisar os malefícios de uma corrente pulsante investigando as suas harmônicas, em particular a terceira, que é seu principal "ingrediente".

Componentes simétricos e seqüência zero

Na rede elétrica trifásica, as ondas das tensões fundamentais das fases estão espaçadas em 120 graus. É graças a isso que a soma das três é sempre zero.

Porém, se houver cargas pulsantes nas três fases, as terceiras harmônicas das três fases estarão em perfeito sincronismo, como se fosse um sistema monofásico com três condutores.

Como vimos antes, podemos analisar o sistema como se fosse a soma de outros dois. Então, na presença de correntes pulsantes, a rede elétrica tem caráter trifásico em 60Hz, e monofásico em 180Hz.

Bem antigamente, o maior problema do sistema trifásico era o desbalanceamento entre fases. Para tratar este problema, criou-se a ferramenta dos "componentes simétricos", que desmembra um sistema trifásico complexo em três sistemas simples, como se ele possuísse três geradores:

Note que a terceira harmônica é uma corrente de seqüência zero, pois ela é idêntica nas três fases, é como se fosse um gerador de 180Hz injetando sujeira na rede, e o retorno dessa corrente é obrigatoriamente pelo neutro.

Porém, nem toda corrente de seqüência zero é uma terceira harmônica. Um sistema trifásico pode possuir apenas cargas lineares e ainda apresentar uma corrente de neutro (de 60Hz) se estiver desbalanceado.

Problemas causados pelas harmônicas

O malefício da corrente de seqüência zero, não interessa se é fundamental ou harmônica, é circular pelo neutro. Em casos extremos, o neutro precisa ser superdimensionado em relação às fases.

Além disso, as harmônicas estressam todos os componentes da rede elétrica, que estão preparados para uma freqüência de 60Hz, não para 180Hz ou acima. O principal problema é aquecimento nos transformadores de força.

O fio fase também pode necessitar de superdimensionamento. Por exemplo, uma carga que conduza 20A por apenas 1/5 do ciclo tem corrente eficaz de apenas 4A. Porém, talvez não seja possível usar um fio de 4A, pois a queda de tensão desse fio será de 20A, durante os momentos de condução.

Nesse ponto você pode estar pensando "nossa, tanto barulho por uma omelete!". Lâmpadas de LED consomem pouca energia, computadores idem, por que essas cargas seriam um problema para a rede elétrica?

O problema das cargas de corrente pulsante (ou pelo menos as de baixa qualidade) é que elas pulsam todas ao mesmo tempo, em perfeito sincronismo. Todas as fontes DC de todas as lâmpadas LED e de todos os carregadores de celular puxam corrente no mesmo topo de ciclo, e o efeito coletivo disso é enorme.

Um ponto de filtragem de correntes de seqüência zero é o transformador de rua, que costuma ser delta-estrela, sem neutro no lado da alta tensão. A terceira harmônica é induzida no delta, mas circula apenas dentro do delta, sendo convertida em calor.

Por um lado, isso é bom, e é um método óbvio para filtrar harmônicas. Por outro lado, excesso de harmônicas pode causar superaquecimento do transformador. Na prática, isto significa que os transformadores precisam ser maiores para entregar a mesma potência útil.

O sistema elétrico é cheio de capacitâncias e indutâncias parasitas, por exemplo entre dois fios que correm em paralelo, ou entre espiras de uma bobina. Mesmo na freqüência fundamental (60Hz) elas podem causar pequenas fugas de corrente, detectáveis na forma de pequenos choques que se toma num fio desligado, ou em lâmpadas desligadas que ficam piscando. As harmônicas pioram esses efeitos, pois, quanto mais alta a freqüência, mais fácil é para a energia escapar por indutância ou capacitância.

Finalmente, as harmônicas causam interferência. Quanto mais alta a freqüência do sinal, mais fácil ele irradia. Muito embora as lâmpadas fluorescentes compactas e as LED tenham "destruído" a recepção de rádio AM e de ondas curtas, neste ponto as harmônicas não são o principal fator, mas sim as fontes chaveadas sem blindagem.

Seqüência negativa

Embora nossa arenga esteja concentrada na terceira harmônica (seqüência zero), a quinta harmônica também é gerada em quantidade por cargas não-lineares, e ela tem importância em ambientes industriais por ser de seqüência negativa.

Conforme dito antes, a seqüência negativa equivale a um gerador girando ao contrário. Da mesma forma, um motor AC alimentado com harmônica de seqüência negativa também vai querer girar no sentido contrário ao esperado. Claro que ele não vai realmente girar ao contrário, a corrente fundamental ainda prevalece; o efeito líquido é o motor consumir mais energia para manter sua RPM normal.

Além desse efeito particular da seqüência negativa, qualquer harmônica de qualquer seqüência causa problemas a motores AC, na forma de vibração, aquecimento, indução de correntes parasitas, estresse na isolação, etc. Então, torna-se importante filtrar harmônicas de todo o gênero quando grandes cargas lineares compartilham a rede elétrica com motores AC.

Fatores de potência linear e não-linear

Potência real é a desenvolvida por um aparelho. Potência aparente é o produto tensão x corrente, sem considerar formas de onda ou fases de onda. Numa carga puramente resistiva, potência real e aparente são sempre iguais.

Já numa carga indutiva ou capacitiva, a potência real é menor, pois a carga absorve mais energia que o necessário em parte do ciclo, e "devolve" para a rede logo em seguida. Discutimos longamente o assunto no artigo sobre impedância.

Um exemplo extremo é o motor de indução. A corrente (e a potência aparente) de um motor rodando em vazio é praticamente a mesma de um motor trabalhando a plena carga. Muda apenas o fator de potência (FP), que é a proporção entre potência real e potência aparente.

Em cargas lineares como o motor de indução, o FP pode ser explicado unicamente pela defasagem entre as ondas de corrente e de tensão, e expresso como um ângulo. Assim, ele é chamado de FP reativo, ou FP de deslocamento.

Já em cargas não-lineares, temos "outro" fator de potência, que é a proporção entre a corrente fundamental (60Hz) e a corrente total (com todas as harmônicas). Este é denominado FP distorcional.

Figura 9: No gráfico acima, a onda azul é gerada pela usina elétrica, enquanto as demais harmônicas são geradas pela carga. A soma dos dois geradores produz a onda pulsante, conforme o princípio da superposição.

Como as harmônicas são efetivamente geradas pela carga, não pela usina, isto significa que nem toda energia absorvida pela carga é transformada em trabalho; uma parte é devolvida à rede, com o agravante de ser devolvida na freqüência errada.

O exemplo do gráfico acima apresenta FP de deslocamento unitário, pois o pulso está bem alinhado com o topo do ciclo. Mas é perfeitamente possível que uma carga produza pulsos desalinhados — é justamente o caso de circuitos "chopper" baratos. Neste caso, tanto o FP de deslocamento quanto o FP distorcional serão baixos.

Antigamente, baixo FP (de deslocamento) era um problema apenas em grandes indústrias, que são obrigadas a possuir equipamento para mitigar o problema. Hoje, as zilhões de lâmpadas LED ligadas na rede produzem um baixo FP distorcional, e consumidores residenciais não são obrigados a instalar nenhum equipamento de mitigação, então virou um problema sistêmico.

FP distorcional versus condutores

Assim como acontece com o fator de potência de deslocamento, o FP distorcional afeta o dimensionamento de condutores, com a diferença que o FP distorcional é menos conhecido e costuma ser negligenciado. Considerando que o FP de lâmpadas LED típicas é de 0,5, isto significa que os condutores precisariam ser dimensionados para o dobro da potência real.

Dificilmente isso é necessário numa residência, porque os condutores de iluminação de 1,5mm já são superdimensionados por questões de resistência mecânica. Mas certamente é necessário levar o FP em conta numa instalação comercial ou industrial, onde iluminação é uma carga relevante.

Mas por que exatamente o fio tem de "engrossar"? Em vez de invocar o princípio da superposição, vamos fazer um raciocínio prático. Suponha um chuveiro eletrônico que gasta 36A na posição "inverno" e 12A médios na posição "verão". Suponha ainda que esse chuveiro nunca será usado na posição "inverno". A pergunta é a seguinte: podemos dimensionar a fiação deste chuveiro para 12A, usando fio 1,5mm?

Por ser eletrônico, o chuveiro reduz a potência usando um circuito "chopper", ou seja, ele consome 36A por 1/3 do tempo. A fiação vai esquentar apenas 1/3 do que seria o caso em 36A contínuos. Sem dúvida essa fiação não precisa ser de 6mm.

Por outro lado, segundo a lei de Ohm, uma carga linear que consome 12A contínuos gera apenas 1/9 do aquecimento na fiação, se comparada a uma carga de 36A. Se utilizarmos fiação de 12A para nosso chuveiro eletrônico, ela aquecerá 3 vezes mais do que deveria (pois 1/3 é o triplo de 1/9).

Brincando um pouco com a lei de Ohm, concluímos que a fiação tem de ser dimensionada para 21A lineares a fim de suportar corretamente o nosso chuveiro eletrônico (ou seja, 2,5mm). Provavelmente o FP distorcional desse chuveiro na posição "verão" seria de 0,57, pois 12 dividido por 0,57 é igual a 21.

FP versus a concessionária de energia

Estendendo o raciocínio desenvolvido acima a respeito dos condutores, podemos ver que as harmônicas causam problemas para todo o sistema elétrico. Não só por conta do aquecimento Joule de condutores, mas também pela necessidade de suprir picos de corrente.

Supondo um aparelho com fator de potência distorcional 0.1 (esperamos que um aparelho tão horrível nunca saia do reino das hipóteses!) cujo consumo médio seja de 20A. Grosso modo isto significa que o aparelho absorve energia em picos de 200A durante 10% do tempo.

Para a rede elétrica fornecer 200A, mesmo que seja em pulsos curtos, a capacidade tem de existir, a energia tem de vir de algum lugar. Em tese o pulso poderia se propagar de volta até a usina de geração, porém o mais provável é que as impedâncias reativas no caminho (transformadores, indutores, capacitores, e as próprias linhas de transmissão), que armazenam alguma energia, é que vão dar a primeira resposta.

Seja como for, a estrutura para fornecer 200A para o consumidor (mesmo que em pequenas doses) tem de existir e custa dinheiro. Porém, a conta de energia remunera a concessionária pelos 20A médios, não por 200A × 10% do tempo (pelo menos em se tratando de consumidores classe B, de baixa tensão).

Cálculo do fator de potência de distorção

O fator de potência de distorção pode ser "facilmente" calculado se conhecermos a corrente de cada harmônica:

THD = √(I22 + I33 + ...) / I1
PF = 1 / √(1 + THD2)

Vamos revisitar um exemplo de onda pulsante, decomposta em senóides pelo princípio da superposição:

Figura 10: Interpretação de uma onda quadrada pulsante como uma soma de ondas senoidais de diversas frequências e amplitudes.

Para a onda acima, a "receita de bolo" é: 1.0x a fundamental, 0.33x a 3a. harmônica, -0.2x a 5a harmônica, -0.14x a 7a harmônica, 0.11x a 9a harmônica.

THD = √(0.332+0.22+0.142+0.112) / 1.0
THD = √0.1806 / 1.0
THD = 0.42 ou 42%

THD é a quantidade de harmônicos em relação à fundamental, geralmente considerando que a corrente é distorcida mas a tensão permanece firme.

PF = 1 / √(1 + 0.422)
PF = 1 / √(1 + 0.1806)
PF = 1 / √(1.1806)
PF = 1 / 1.086
PF = 0.92 ou 92%

O fator de potência ficou em 92%, que é surpreendentemente bom, considerando a forma de onda claramente "quadrada" e o respectivo THD que é substancial. Ajudou muito que a onda de exemplo é um pulso relativamente largo. Uma lâmpada LED típica tem fator de potência de 0.5; se isto for totalmente devido às harmônicas, significa um THD de 173%!

Sim, THD maior que 100% é possível. Na teoria, um trem de pulsos infinitamente estreitos tem infinitas harmônicas ímpares, todas com a mesma intensidade da fundamental, o que significa um THD infinitamente grande. Na prática, isto significa que uma carga com pulsos muito curtos de corrente apresenta uma terceira harmônica tão potente quanto a fundamental, o que se traduz num fator de potência horrivelmente baixo. Exemplo:

Figura 11: Corrente de pulsos extremamente curtos, sintetizada pela adição de 3a, 5a, 7a e 7a harmônicas com a mesma intensidade da fundamental.

Isto vale quando a carga drena apenas um pulso de corrente por ciclo. Se ela drena vários pulsos por ciclo, a situação (paradoxalmente) melhora. 5 pulsos por ciclo transladam a harmônica mais baixa para 660Hz, bem acima da temida terceira harmônica (180Hz), lembrando que harmônicas de freqüências mais altas são muito mais fáceis de filtrar. Exemplo:

Figura 12: Corrente de pulsos curtos, porém com cinco pulsos por ciclo. Sintetizada pela adição da 11a, 21a, 31a e 41a harmônicas com a mesma intensidade da fundamental.

O fator de potência total é aproximadamente igual ao produto dos FPs distorcional e de deslocamento. Por exemplo, uma carga com FP de deslocamento de 0.7 e FP distorcional de 0.9 tem um FP total de 0.63 ou 63%.

Mitigações

Uma mitigação já citada é o transformador em delta, que é essencialmente um conversor de harmônicas em calor.

Um simples indutor, funcionando como reator, impede as harmônicas de "escapar" da carga, reduzindo o fator de distorção, mas aumentando o fator de deslocamento. Um circuito LC "tanque" tem desempenho melhor.

Estes são exemplos de correção passiva de fator de potência, pois usam componentes passivos. Ajudam mas não resolvem se a carga apresenta demanda variável. Outro problema é que, para filtrar sinais de baixa freqüência como é a terceira harmônica (180Hz), indutores e capacitores precisam ser de alto valor, relativamente grandes e caros.

No caso dos circuitos "chopper", existem versões mais elaboradas que fazem diversas comutações por ciclo, o que melhora ambos os fatores de potência, e também migrando as harmônicas para freqüências mais altas, que são mais fáceis de filtrar.

Figura 13: Onda de corrente de um circuito chopper melhorado.

Outra melhoria possível no "chopper" é pulsar apenas ciclos completos, ou grupos de ciclos completos, como proposto neste trabalho, com a ressalva que causaria outros problemas numa instalação elétrica insuficiente.

No caso das fontes de computadores, lâmpadas, celulares, etc. a solução mais adequada é a "correção ativa de fator de potência", também conhecida como PFC ativo. É basicamente um "boost converter", ou seja, um elevador de tensão DC que funciona numa ampla faixa de tensões de entrada.

O circuito é controlado de modo a absorver energia em pequenos e numerosos pulsos ao longo de todo o ciclo AC, procurando imitar o perfil de corrente de uma carga linear. O efeito é semelhante ao do chopper melhorado: diminui a intensidade e aumenta a frequência das harmônicas, que podem ser quitadas por indutores pequenos.

A maioria dos aparelhos eletrônicos não possui nenhuma correção de fator de potência. Países desenvolvidos têm paulatinamente obrigado os aparelhos mais potentes como fontes de computador a implementar PFC ativo. Carregadores de celular e lâmpadas LED são isentos por enquanto, por serem (individualmente) de baixa potência.

Uma vez que as cargas eletrônicas fazem uma porcentagem cada vez maior do consumo de eletricidade, a tendência é que a exigência de PFC ativo vá sendo estendida a tudo e todos. Isto adicionará custo aos aparelhos. O impacto será proporcionalmente maior naqueles mais baratos e com ponto de preço muito sensível, como as lâmpadas LED.

Solução definitiva

Uma vez que todos os dispositivos eletrônicos funcionam internamente em corrente contínua, uma outra solução seria adotar alimentação DC dentro de residências e escritórios, pelo menos para os dispositivos de baixa potência.

Uma instalação de baixa tensão DC evitaria a problemática e o custo de adicionar PFC a cada aparelho individual, e poderia inclusive reduzir o custo deles, pois diversas proteções de alta tensão que hoje são obrigatórias, poderiam ser removidas.

No caso específico das lâmpadas LED, poderíamos adotar lâmpadas sem driver embutido, o que pelo menos em tese mitiga outro problema: a baixa confiabilidade das luminárias LED, que deveriam durar para sempre, e a evidência anedótica é que o ponto fraco é o driver.

Sistemas de telefonia e alguns datacenters já usam 48V como tensão primária de trabalho, então 48V seria um bom candidato a padrão. É uma tensão segura, embora ainda alta o suficiente para ser eficiente.

Quase todas as fontes AC-DC modernas fazem a retificação antes do rebaixamento de tensão, então em tese elas podem ser alimentadas com corrente contínua, sem modificações. De fato, há quem experimente alimentar aparelhos (de lâmpadas LED a equipamentos de rede) com DC de alta tensão.

Acho difícil que aconteça uma padronização de DC residencial no meu tempo de vida; é mais fácil a companhia de energia obrigar cada residência a instalar uma caixa-preta na entrada de energia para filtrar harmônicas. Mas sonhar ainda é de graça.