Continuando a minha procura por novos ares, novos caminhos e principalmente novos trilhos, visitei Mafra/SC nas férias natalinas. Já estive no território mafrense várias vezes — até as leis da probabilidade ajudam nisto, já que Mafra é o quarto maior município de SC — e já passei pela cidade, tentando ir de Curitiba a Joinville sem pegar o tráfego pesado de carnaval, mas era noite. (É, eu sei, eu deveria entrar em Piên em vez de ir até Mafra, mas errei o trevo.)
Mafra é um entroncamento rodoviário e ferroviário. totalmente conurbada com outra cidade de outro Estado (Rio Negro/PR). Exceto pelo rio Negro que separa fisica e politicamente as cidades, não se distinguem.
Há uma explicação para isto: tudo era Rio Negro/PR até o acordo de limites do Contestado, que definiu a fronteira estadual com base no rio. Mafra, batizada em homenagem ao advogado que defendeu os interesses catarinenses junto ao STF, "nasceu adulta". Aliás, a fronteira final entre PR e SC é fonte abundante de curiosidades. Mais a oeste, em Porto União, a fronteira abandona o rio Iguaçu e passa a seguir um objeto artificial: a ferrovia!
No geral, encontrei uma cidade tranquila, porém maior e mais bonita do que eu esperava. (Todo catarina descendente de alemães acha que, a oeste de São Bento, acaba a civilização.) Achei que ia ter dificuldade de achar um hotel, mas há inúmeros. De minha parte, procurei mostrar que ainda há gente do mundo "civilizado" que pára na faixa de pedestres, causando certo espanto entre os aborígenes.
Foi-me dito que Mafra melhorou muito nos últimos anos. Não seria um fenômeno inédito; testemunhei um processo parecido em Rio Negrinho. Meus amigos de esquerda (quase todos são) diriam: "nunca antes neste país...".
Não tenho mapas do IBGE para aquela área, então tive de contar com o santo Google Maps e ser paciente com a internet móvel da TIM. No fim topei com as oficinas da ALL por acaso mesmo, e a ferrovia São Francisco margeia o rio Negro o tempo todo, então seria quase impossível não achar o que procurava.
O atrativo ferroviário de Mafra é ser um ponto de "cruzamento" entre o Tronco Principal Sul (sentido norte-sul) e a ferrovia São Francisco (sentido leste-oeste). Cruzamento entre aspas porque, em ferrovia, isto nunca é simples. Aí você tem o rios Negro e Lança complicando a travessia, e as oficinas, e o cenário está formado.
Não tenho nenhuma informação sobre o volume de tráfego norte-sul. Sei que há muito tráfego norte-leste (do Paraná para o porto de São Francisco) mas quase nada para oeste. A meros 2km a oeste das oficinas, o mato já toma conta da linha.
O Tronco Principal Sul é uma ferrovia mais ou menos recente: foi entregue em 1969. Basta bater o olho na linha para notar que ela é "diferente". Já foi construída com parâmetros técnicos consideravelmente melhores que a centenária São Francisco. Isto significa menos curvas, menos uso de várzeas de rios. E talvez menos charme. Afinal de contas foi construída pelos militares; o charme sem dúvida passou longe.
Com a extinção de quase todo o trecho paranaense da antiga ferrovia Itararé-Uruguai, o Tronco resta como a única ligação ferroviária de SC e RS com o resto do país. O projeto da Ferrovia Norte-Sul prevê uma ligação adicional mais a oeste, mas sabe Deus quando, ou se, isto sai do papel.
A ligação entre a ferrovia São Francisco e Curitiba-Ponta Grossa é bem mais antiga: o Ramal de Rio Negro foi construído ainda no século XIX. Todo o trecho de Rio Negro até o entroncamento em Engenheiro Bley foi sendo paulatinamente retificado e melhorado, sendo finalmente entregue como parte do Tronco Principal Sul em 1964. Até uma nova ponte sobre o rio Negro foi construída. A ponte antiga ainda está lá, no mesmo lugar. Por uns tempos ela continou em uso porque o batalhão ferroviário tinha sede do outro lado do rio. Quando ele mudou-se para Minas Gerais, a ponte restou abandonada.
Antes do Tronco, a única ligação ferroviária para o RS era a ferrovia Itararé-Uruguai, que cruza Santa Catarina bem mais a oeste, a partir de Porto União e ao longo do rio do Peixe. É a famosa "Ferrovia do Contestado", construída por Percival Farquhar em troca de exploração de madeira. Por diversos motivos ela está sem uso, exceto por curtos passeios da maria-fumaça da ABPF.
A Figura 4 mostra um quadro sinótico de como as ferrovias se interligam. Como eu disse antes, cruzamento ferroviário não é algo trivial.
É curioso que duas linhas (Tronco vindo do sul e São Francisco vindo do leste) convergem e passam por dentro das oficinas da ALL, cuja área também inclui a ponte antiga sobre o Negro. Não há como expandir nem sair do caminho porque a cidade e o rio pressionam de todos os lados. As manobras de trens são feitas em Rio Negro/PR, do outro lado do rio, onde há um pátio enorme, que eu esqueci de visitar :(
Há ideias de reaproveitar a tal ponte antiga para tráfego de veículos. Não sei se vale a pena. Há uma rua de acesso (desta vez eu não invadi pelo trilho, a segurança pareceu mais estrita) mas faz uma volta esquisita. Abrir rua direta, só desapropriando parte da oficina.
Mais curioso ainda são as duas pontes sobre o rio da Lança (que deságua no Negro logo perto), uma para cada linha. Claramente os estilos são de épocas diferentes. A mais antiga parece muito com a ponte do ramal Bucarein, aqui em Joinville.
Fazendo pesquisas posteriores à visita, descobri que o local, chamado Vila Paraíso, é uma "quebrada" de má fama entre os mafrenses. Ignorância é uma bênção. Atualização: em 2018 a área estava mais urbanizada e limpa dos dois lados do rio, foram construídos parques, e a ponte do Tronco Sul está totalmente visível a partir da rua (pena que não passou um trem quando visitei novamente).
Uma locomotiva U5B, que eu não lembro de ter visto ao vivo antes, estava lá ocupada manobrando.
As duas linhas terminam de mesclar-se na antiga estação ferroviária de Mafra. Como deve ser de conhecimento geral, não há mais trens de passageiros, e a sede é utilizada pela prefeitura. O pátio em si virou um gigantesco cemitério de vagões.
No cruzamento das linhas com a rua, perto das pontes, vi uma cena curiosa: várias pessoas, com jeitão de pedintes, tirando soja de um vagão aparentemente avariado, com um talho aberto a maçarico. Não sei se estavam sendo pagos para isso ou se estavam removendo a soja para outro uso (talvez alimentação de animais?). Uns poucos metros adiante, operários da ALL discutindo em torno de um desvio, devia ser uma aula prática de manutenção.
Mais a oeste, o triângulo que liga a linha São Francisco ao Tronco vindo do norte. E é claro, a ponte nova sobre o rio Negro. Em volta do triângulo cresceu um bairro novo, de casas muito simples. Os projetistas foram espertos o suficiente para fazer uma passarela para pedestres. Pena que o trem não passou naquele horário...
Depois de assustar o povo ("o que faz esse doido por aqui numa quarta-feira à tarde?") fui rodar um pouco mais pela cidade e achei por acaso a famosa ponte Dinis Assis Henning, construída em 1896. A ponte é muito bonita, embora estreita para os padrões atuais.
Finalmente, tive de ir embora. Mas hei de voltar mais vezes. Como eu disse antes, esqueci completamente do pátio ferroviário de Rio Negro/PR e foi uma omissão meio "imperdoável", que pretendo compensar assim que possível.
UPDATE: Voltei ao local e visitei o pátio ferroviário de Rio Negro/PR.
Referências:
Site "Estações Ferroviárias", Ralph Mennucci Giesbrech.