Site menu Transformador - cheatsheet

Transformador - cheatsheet

Este texto é mais um brain dump de algo que tenho tentado entender há algum tempo, para ler de novo caso esqueça, do que propriamente para consumo público. Vou tentar florear o texto para fazer algum sentido, mas peço desculpas de antemão se não for especialmente útil ao leitor.

O transformador é um dispositivo elétrico com diversos usos. O mais comum é elevar ou abaixar tensão. Isso é tão útil, em tantas situações diferentes, que é basicamente o motivo pelo qual a corrente alternada "venceu" a famigerada "Guerra das Correntes" entre Thomas Edison e Nikola Tesla.

Um transformador só funciona em corrente alternada (CA), embora o uso de eletrônica de potência permita sua adaptação a corrente contínua (CC). Porém, sempre que possível é melhor usar o transformador sozinho, por ser um dispositivo simples, robusto e barato.

Um transformador monofásico é composto simplesmente por duas bobinas enroladas sobre um mesmo núcleo de material ferromagnético. Uma bobina é, no fundo, apenas um monte de fio enrolado. Se uma bobina for ligada a uma fonte de CC, só vai fazer esquentar até queimar (e gerar um campo magnético, mas o núcleo de um transformador é construído de forma a não deixar esse campo "vazar", então um transformador não funciona bem como eletroímã).

Se alimentado por uma fonte de CA, o transformador reage diferente, e pode realizar trabalho útil. A fórmula prática que regula o funcionamento do transformador é a seguinte:

E = 4.44 N.f.A.B 

E: tensão RMS gerada pelo enrolamento
N: número de espiras do enrolamento
f: freqüência da corrente alternada
A: área do núcleo
B: valor máximo de densidade de fluxo magnético observada no núcleo

Esta fórmula é conhecida como "equação do transformador" e provavelmente é o que um fabricante de transformadores usa como base para fazer um produto sob medida (*). Para quem só compra e usa o trafo, interessa mais a relação de proporção entre as grandezas do que os valores absolutos.

Embora não esteja explícito, o fluxo magnético B é proporcional à corrente que atravessa o enrolamento. Porém, cada material de núcleo possui um limite de saturação para B. Como é de se esperar, quanto mais alto esse limite, mais exótico e caro o material.

Portanto, se B é proporcional à corrente mas é limitado pelo material, o fabricante deve projetar o trafo com área de núcleo (A) suficiente para dar conta da potência a ser transformada. E também para a reatância indutiva do primário fazer frente à tensão da fonte. Naturalmente, se aumenta a área de núcleo, aumenta o tamanho externo do transformador.

Uma forma alternativa da equação do transformador é

E = 4.44 N.f.Φ
Φ = A.B

onde Φ é o campo magnético total (densidade × área do núcleo). Para quem está apenas usando o transformador, partindo do pressuposto que ele foi corretamente dimensionado, esta fórmula é tão boa quanto a outra.

Caso 1: transformador de tensão

Vamos começar analisando o caso do transformador de tensão, ligado da seguinte forma:

Figura 1: Circuito típico com transformador de tensão.

O enrolamento primário é ligado a uma fonte, o enrolamento secundário é ligado a uma carga. A única coisa ligada à fonte é o primário, que como vimos é apenas um monte de fio enrolado. Por que isto não fecha um curto-circuito?

Caso 1A: transformador de tensão sem carga

Vamos começar analisando o caso em que o secundário não tem corrente, ou seja, a carga é na verdade um circuito aberto.

Nesta situação, o primário do transformador comporta-se como um simples indutor, e o que impede um indutor de ser um curto-circuito é sua reatância indutiva. Nesta situação, a "equação do transformador" é uma versão disfarçada da fórmula da reatância indutiva.

A corrente que circula pelo primário (I1) é a corrente de repouso do transformador, que não realiza trabalho útil. Idealmente ela seria zero, mas isto é impossível (**), mas ela é feita tão baixa quanto possível, desde que não prejudique a performance sob carga.

Conforme discutido em nosso texto sobre impedância, um circuito atinge o equilíbrio quando a carga gera tensão suficiente para fazer frente à tensão da fonte. Ou seja, E1 (a tensão "E" gerada pelo primário) tem de ser igual à tensão da fonte.

Alguma corrente é preciso haver para gerar o fluxo magnético Φ que faz o indutor funcionar. Mas quanta corrente? Isso vai depender dos demais fatores. Núcleo maior e mais espiras reduzem a corrente de repouso.

Quanto maior a freqüência CA, menores podem ser outros números. Este é um motivo pelo qual se usa CA de 400Hz em aviões e navios: os transformadores podem ser proporcionalmente menores. Carregadores de celular e fontes de computador usam fontes chaveadas em alta freqüência para encolher ainda mais.

E, nesta situação, qual a tensão E2 observada no enrolamento secundário? Relembrando a equação:

E = 4.44 N.f.Φ

O fluxo magnético Φ gerado pelo primário é (idealmente) igual ao fluxo observado pelo secundário, pois são bobinas montadas sobre um mesmo núcleo. Se o número de espiras do secundário N2 for o mesmo do primário N1, a tensão E2 será igual a E1.

Se o número de espiras for diferente, a proporção E2/E1 é idealmente igual à proporção N2/N1, o que explica a amplamente conhecida "relação de transformação", só que aqui demos um verniz de fundamentação teórica.

Caso 1B: transformador de tensão com carga

Como vimos, o transformador de tensão produz uma tensão fixa E2 no secundário. A presença de uma carga consumindo energia no secundário não muda este fato.

O que muda é que a corrente circulando pelo enrolamento secundário gera um campo magnético secundário, de sentido oposto ao primário, que "cancela" parcialmente o campo magnético do primário. (Note que a corrente de secundário circula no sentido oposto ao primário, o que acaba sendo uma coisa boa, pois assim o sentido geral da circulação de corrente entre fonte e carga permanece o mesmo.)

Quando o campo magnético é enfraquecido pelo secundário, a reatância do primário diminui e ele passa a admitir mais corrente, até restaurar o campo magnético original. O resultado final é que a corrente de primário aumenta na proporção exata para sustentar a carga no secundário.

No caso de um transformador 1:1 (N2 igual a N1), a corrente tem o mesmo acréscimo dos dois lados. E quando a relação de transformação é diferente?

Suponha uma relação de transformação 1:2 (N2 com metade das espiras de N1). A regra prática é que a potência é igual nos dois lados, portanto se a tensão no secundário E2 é a metade (e é, porque N2 é metade de N1), a corrente I2 deve ser o dobro de I1.

Mas qual o fundamento disso? Segundo a equação do transformador,

E1 = 4.44 N1.f.Φ
E2 = 4.44 N2.f.Φ

Sabemos que Φ é sempre igual no primário e no secundário, porém como isso é possível se afirmamos que a corrente I2 é diferente de I1, e Φ é proporcional à corrente?

É verdade, dissemos antes que Φ é proporcional à corrente. Porém esquecemos de dizer que ele também é proporcional ao número de espiras do indutor (***). A título de exemplo, para uma solenóide (****), a fórmula é

Φ = μ.A.N.I / l
μ: constante de permissividade do material do núcleo
A: área do núcleo
I: corrente elétrica
l: comprimento do indutor

O cálculo do fluxo magnético de uma bobina de transformador pode não seguir a fórmula acima, mas continuará guardando proporção direta com o número de espiras. Podemos ainda assumir que o primário e o secundário possuem exatamente as mesmas características, diferenciando-se apenas no número de espiras.

Como dissemos antes, Φ é igual no primário e no secundário. Porém, N2 é metade de N1. Para compensar isso, I2 deve ser o dobro de I1, o que restabelece a igualdade. Se assim não fosse, se Φ2 fosse a metade de Φ1, isto também reduziria E2, reduzindo I2 novamente, até zerar a corrente de secundário.

Um transformador de tensão pode ser entendido como um transformador de impedância, porém neste caso a relação é quadrática. Uma relação de transformação 1:2 transforma impedância na proporção de 1:4 (uma impedância de 10 ohms no secundário é percebida como 40 ohms no primário).

Caso 1C: transformador de tensão em curto, ou carga excessiva

O transformador com secundário em curto, ou com uma carga excessiva, sofre de duas formas.

Uma forma é o aquecimento, pois a resistência do próprio transformador passa a ser uma parte importante da impedância total do circuito. O transformador consegue atender à demanda da carga no secundário, mas esquenta, até eventualmente queimar.

Outra forma é a saturação do núcleo, onde o excesso de corrente gera um fluxo magnético B acima do limite do material do núcleo. O transformador não consegue fornecer toda a corrente solicitada, e a corrente de primário deixa de ser linear pois o excesso de fluxo diminui o valor da reatância indutiva. O primário do transformador comporta-se então como um curto-circuito nos momentos de fluxo excessivo.

Um transformador convencional não funciona como limitador de corrente. O limite estipulado pelo fabricante é determinado pelo aquecimento a plena carga e pela saturação do núcleo.

Caso 2: transformador de corrente

O transformador de corrente, também chamado de transformador em série, é ligado da seguinte forma:

Figura 2: Circuito típico com transformador de corrente, com a carga de verdade no primário e a carga de medição (burden) no secundário.

A ideia é produzir uma corrente de secundário igual ou proporcional à corrente de primário. Para nós leigos que estamos acostumados desde sempre ao transformador de tensão, isto parece bizarro.

A primeira questão aqui é que a corrente de primário I1 não é limitada pela reatância indutiva do transformador, e sim pela carga em série com o primário. Portanto, a queda de tensão no primário E1 será menor que a tensão da fonte.

Uma vez que a utilidade prática do transformador de corrente é a instrumentação, interessa que ele interfira o menos possível, de modo que a reatância do primário e E1 serão quase sempre minúsculos.

Caso 2A: transformador de corrente com secundário em curto

Supondo um transformador 1:1, a tensão E2 observada no secundário é forçosamente igual a E1.

Uma vez que o secundário está em curto, o próprio enrolamento secundário é a única queda de tensão disponível para limitar a corrente. Relembrando as equações:

E1 = 4.44 N1.f.Φ
E2 = 4.44 N2.f.Φ

Se E1=E2, N1=N2 e Φ1=Φ2, a única conclusão possível é que I1=I2. I2 não pode crescer além de I1 pois neste caso ele aumentaria o fluxo magnético total, transferindo energia ao primário.

E se o transformador tiver uma relação de transformação, por exemplo 1000:1? A corrente de secundário multiplica ou divide por 1000?

Neste caso, devemos invocar novamente o raciocínio que Φ é proporcional tanto à corrente quanto ao número de espiras. Para manter o mesmo fluxo, se o secundário possui 1000 vezes mais espiras, a corrente deve ser 1000 vezes menor. Portanto, no transformador de corrente, I1/I2 = N2/N1.

Isto permite instrumentar correntes muito altas de forma muito simples e.g. uma corrente de 100A produz apenas 100mA no secundário de um transformador 1000:1. O "primário" deste transformador é o próprio cabo, que conta como apenas uma espira; o secundário pode ser um anel toroidal através do qual o cabo passa. Amperímetros de alicate sem contato funcionam segundo o mesmo princípio.

Caso 2B: transformador de corrente com carga no secundário

Uma forma simples de medir corrente é medindo a queda de tensão que essa corrente produz numa carga de pequena impedância. Assim sendo, é comum ligar-se uma carga, denominada "fardo" ou "burden" ao secundário do transformador de corrente como parte da instrumentação.

Qualquer burden reduz a corrente e tira o circuito da condição ideal do secundário em curto. Os transformadores de corrente vêm com uma especificação em ohms e.g. 10 ohms, significando que um burden de 10 ohms provoca um erro de 1%. Isto significa que a reatância do secundário (neste exemplo) é de 1000 ohms.

Caso 2C: transformador de corrente em aberto

Diz-se que transformadores de corrente nunca devem trabalhar com o secundário aberto, ou com um burden de impedância muito alta. Por quê?

No caso do transformador 1000:1, a tensão de secundário E2 é 1000 vezes maior que E1. Enquanto o transformador está em curto, essa tensão E2 não é observável. Porém, com o transformador aberto, essa tensão pode exceder o limite de isolação da bobina (geralmente de fio muito fino, com isolação de esmalte mais fino ainda).

Uma vez que, hoje em dia, muitas cargas geram harmônicos, isto significa que o "f" da equação do transformador tem valores instantâneos muito altos, o que produz tensões de pico no secundário muito mais altas do que seria o caso para cargas lineares.

Excesso de tensão queima a isolação e coloca parte do secundário em curto. Com isso, a relação de transformação diminui, descalibrando a medição. O pior caso é se a corrente de secundário aumentar a ponto de aquecer o trafo e quiçá pegar fogo.

Outra possibilidade é a tensão E2 atingir níveis perigosos para pessoas e equipamentos. Numa situação de alta corrente e.g. 100A, se E1 atingir 0,1V, E2 pode atingir 100V, e suprir uma corrente de 100mA, ambas suficientes para matar e/ou estragar um equipamento próximo.

Em todo caso, o transformador de corrente em aberto não pode interferir com a carga principal, visto que seu primário (comumente de apenas uma espira) continua apresentando reatância muito baixa.

Fundamentos

A equação do transformador não é uma fórmula fundamental como outras, então é interessante deduzir de onde ela vem. Relembrando:

E = 4.44 N.f.A.B = √2.π.N.f.A.B

E: tensão RMS gerada pelo enrolamento
N: número de espiras do enrolamento
f: freqüência da corrente alternada
A: área do núcleo
B: valor máximo de densidade de fluxo magnético observado no núcleo

O primeiro ponto é que "B" é o fluxo máximo, observado no pico de tensão, enquanto "E" é tensão RMS. Para o fabricante, é melhor assim pois o fluxo máximo é que determina a área e o material do núcleo. Mas existe um desalinhamento de unidades aí, o que explica a raiz de 2.

Se adotarmos a média RMS também para "B", simplificamos para

E = 2.π.N.f.A.B

Lembrando da lei de Ohm, E=I.R, então podemos estabelecer uma relação entre esta equação e a fórmula da reatância indutiva, e ver se as contas fecham:

E = I.XL = 2.π.N.f.A.B = I.2.π.f.L

XL: reatância indutiva (análoga à resistência da lei de Ohm)
L: indutância

Cancelando o que está igual nos dois lados, temos:

2.π.N.f.A.B = I.2.π.f.L
N.A.B = I.L

portanto na equação do transformador o fator N.A.B é igual a I.L, ou seja, indutância do enrolamento (fácil de medir) multiplicada pela corrente RMS de serviço.

A fórmula da densidade de fluxo magnético "B" para um solenóide é

B = μ.N.I / l

μ: constante de permissividade do material do núcleo (ar = 1)
N: número de espiras
I: corrente
l: comprimento da solenóide

Substituindo na fórmula anterior, temos que

N.A.B = I.L
N.A.μ.N.I / l = I.L

L = μ.N².A / l

que é exatamente a fórmula da indutância para um solenóide, e portanto as contas fecham. Note que a indutância é proporcional ao quadrado do número de espiras.

É interessante ainda falar sobre quais são as unidades de medida de cada grandeza, e o que significam.

O fluxo magnético absoluto Φ é expresso em Webers. 1 Weber produz uma tensão de 1V num indutor de 1 volta durante 1 segundo, se o fluxo for reduzido linearmente de 1 Weber até zero durante esse tempo. (Lembrando do mantra: a variação de um campo magnético gera um campo elétrico.)

A densidade de fluxo magnético B é expresso em Teslas. 1 Tesla é igual a 1 Weber por metro quadrado. Alternativamente, uma carga de 1 Coulomb movendo-se a uma velocidade de 1 m/s perpendicularmente a um campo magnético de 1 Tesla, experimenta uma força de 1 Newton.

O campo magnético também é expresso por H em alguns compêndios. H é igual a B dividido pela constante de permeabilidade μ, e sua unidade é ampères por metro. Em outras palavras, μ é uma relação de proporção entre a corrente e o campo magnético gerado por essa corrente.

Em física teórica, B é a "coisa real" e H é apenas uma grandeza derivada. Porém, em engenharia, H é considerado fundamental enquanto B é a medida de como o material ferromagnético reage à força magnética H.

Em um solenóide (bobina de apenas uma camada), Φ e B são linearmente proporcionais ao número de espiras.

Indutância L é a medida de quanto um indutor se opõe a uma mudança na corrente elétrica. Sua unidade é o Henry. Um indutor de 1H gera uma tensão de 1V quando a corrente varia 1A/s. Como essa tensão se opõe à corrente, é chamada de força contraeletromotriz ou FCEM.

L é proporcional ao quadrado do número de espiras, pois a FCEM parcial induzida sobre cada espira é função do fluxo magnético total (proporcional ao número de espiras), potencializando assim seu efeito.

Reatância indutiva XL é a impedância em ohms que uma indutância apresenta quando alimentada por corrente alternada, e é função da freqüência.

Notas

(*) Antigamente, como era mais difícil adquirir peças, havia um enrolador de transformadores em cada cidade. Você pedia o transformador na tensão e corrente desejados e eles fabricavam. Hoje em dia é menos comum, mas ainda existem algumas empresas nesse estilo, inclusive no Mercado Livre.

(**) Em que pese que a corrente de magnetização do transformador possui fator de potência zero, ou seja, ela não é consumida, ela é totalmente devolvida à fonte a cada semiciclo. Mesmo assim ela é indesejável, pois corrente circulando acaba sendo dissipada longo das resistências parasitas do circuito.

(***) O que significa que a "equação do transformador" possui uma relação quadrática com o número de espiras, visto que N aparece duas vezes: uma vez explicitamente, e também implicitamente como fator de B ou Φ.

(****) Solenóide é uma bobina cujo enrolamento possui apenas uma camada.