Site menu 2+2=5

É curioso como os ativistas barulhentos ganham essa aura de imunidade. Uma ativista do BLM diz que pessoas brancas são defeitos genéticos, e logo outro idiota assina embaixo, dizendo que gente branca não tem lugar de fala para considerar absurdo esse evidente absurdo.

Noutro dia, uma professora-ativista disse que colocar 2+2=4 como uma verdade absoluta é uma forma de opressão cultural. Que a equação só é verdadeira de um ponto de vista branco e ocidental. (Muhammad al-Khwarizmi deve ter virado no túmulo.) Alguns SJWzinhos tentaram defender a professora no Twitter, usando argumentos muito fracos a meu ver, e.g. invocando sistemas não-decimais.

Outros invocaram a famigerada apropriação cultural, que usar símbolos arábicos para impor uma verdade branca é feio e tal. (Na verdade o sistema decimal posicional foi criado na Índia; al-Khwarizmi foi o responsável por difundí-la na direção oeste.)

Esta equação elementar me lembra algo que tenho repetido com alguma freqüência nos últimos meses, por conta da política local. Se um comunista me diz que 2+2=4, e um conservador me diz que 2+2=5, eu fico com o primeiro. Não vou tolerar anti-intelectualismo só porque existem intelectualóides. No lugar do "2+2=5", substitua por "acredita que o Sol gira em torno da Terra", "acredita em Terra plana", "acredita na cloroquina"... acho que deu pra entender, né?

Uma interpretação benevolente da associação de 2+2=4 à cultura ocidental, é que de fato a nossa cultura matemática valoriza mais certos objetos em detrimento de outros.

Por exemplo, a análise, o cálculo, a matemática do contínuo tem mais "audiência" nos bancos escolares que a matemática discreta. O medir é mais valorizado que o contar. Toda graduação em exatas tem cadeiras de cálculo; eu me formei contador e tive aulas de cálculo, e ainda não sei por quê. Mesmo no campo da engenharia de software é difícil pensar numa situação em que seja preciso saber cálculo. Um computador é uma máquina composta unicamente de estados discretos.

Ok, admito, o cálculo foi uma grande conquista da humanidade pela sua capacidade de modelar fenômenos físicos. Newton e Leibniz eram famosos e admirados em sua época, como hoje são Steve Jobs ou Jeff Bezos. Talvez por isso o cálculo tenha hoje esse peso desproporcional nos currículos — porque os pais fundadores do cálculo viveram e morreram como pessoas respeitáveis, enquanto os pilares da matemática discreta tiveram vidas trágicas (Galois duelou por rixa política, morrendo aos 20; Abel morreu aos 27 de tuberculose; Cantor passou pelo manicômio, por depressivo; Gödel ficou louco de pedra; e por aí vai).

Ensinar cálculo é mais compatível com um sistema educacional hierárquico, "de cima para baixo", pois é basicamente decorar e aplicar regras de integração e diferenciação que foram inventadas há séculos. Já a matemática discreta é um desafio para professores e alunos, uma vez que trata-se, em última instância, de aprender a pensar. Os axiomas são poucos e auto-evidentes.

Para completar, o cálculo é uma invenção moderna e bastante eurocêntrica; dar foco ao cálculo em detrimento de outros ramos da matemática tem o efeito indireto de ofuscar a colaboração das culturas não-europeias. Por exemplo, a matemática africana é muitíssimo mais antiga do que a maioria supõe. Não sou um esquerdopata, não entrevejo nenhuma conspiração imperialista; é apenas uma coincidência infeliz.

Dito tudo isso, vamos aceitar a provocação e analisar por que consideramos que 2+2 é igual a 4, e em que situações 2+2 poderia ser igual a 5. Porque você precisa provar que sabe justificar 2+2=4, para então lançar teses, imaginar situações onde 2+2=5. Fumar um baseado e sair falando por aí que 2+2=5 não faz de você um intelectual :) E todo mundo sabe que matemáticos de verdade preferem drogas estimulantes. (Erdös era viciado em café e benzedrina.)

Em primeiro lugar, precisamos definir o que é 2 ou "dois". Dois é um número. O que é um número? Restringindo a nossa discussão aos números naturais, podemos afirmar que número é aquilo que tem um sucessor, e esse sucessor também tem de ser um número.

As letras do alfabeto podem ser consideradas números? À primeira vista parece que sim. Porém Z não tem sucessor, portanto Z não é número. Isto prejudica Y, pois Z é o sucessor de Y, mas se o sucessor de Y não é número, Y também não pode ser número. Este defeito vai se propagando até a letra A.

Note que o fato da letra A não ter antecessor não é o que desqualifica o alfabeto como sistema numérico. É lícito a um número natural não possuir antecessor. É o caso do número zero. Por ora, definimos "zero" apenas como o primeiro número natural, que não é sucessor de ninguém. A discussão sobre quanto o zero vale, fica para depois.

Assim sendo, "dois" é simplesmente o segundo sucessor do número zero. A definição de "quatro" é análoga. Poderíamos usar quaisquer símbolos para representar 2 ou 4, mas isto não muda sua essência.

Agora, definimos o que é "igual" ou "=". Existe toda uma família de relações de equivalência. Qualquer uma delas pode ser adotada como nossa definição de "igual". Para ser de equivalência, uma relação deve ser

É possível desenvolver uma relação bem relaxada de equivalência, por exemplo, a=b se ambos são pares ou ambos são ímpares. Não parece muito útil, mas coincide com a definição de igualdade numa aritmética módulo 2.

Na definição de Peano para "=", dois números naturais equivalentes são mesmo iguais. Mas é fácil achar outros casos onde igualdade e equivalência divergem.

Por exemplo, 500 centavos são equivalentes a 5 reais, mas não são iguais a 5 reais. Em muitos países (não no Brasil) um comerciante pode recusar meios inconvenientes de pagamento, tipo pagar um carro com moedas ou mesmo com dinheiro vivo. Isso não invalida a equivalência; basta levar seu porquinho ao banco e depositá-lo na conta-corrente.

Em frações, 2/3 é equivalente, mas não igual, a 4/6. A relação de equivalência para frações é a seguinte: a/b=c/d se a.d = b.c, onde a,b,c,d são números inteiros. Esta relação particiona o campo dos números fracionários em inúmeros subconjuntos, denominados classes de equivalência, cada um contendo uma coleção infinita de frações (e.g. 2/3, 4/6, 6/9, 8/12...). Em cada classe, a fração com numerador e denominador relativamente primos (exemplo: 2/3) é a forma canônica que representa as demais.

Também se pode adicionar um requisito a mais para fazer a equivalência mais estanque, mais próxima da definição literal de igualdade. Segundo Leibniz, se x=y, então P(x)=P(y) onde P() é qualquer função imaginável. Pelo menos em se tratando de campos infinitos, este requisito bane qualquer definição "engraçadinha" de equivalência (e.g. dizer que números pares são todos "iguais") enquanto admite definições sensatas (e.g. 2/3=4/6).

Nem mesmo entre os números reais e complexos o símbolo = pode ser acreditado como igualdade absoluta. Por exemplo, o número complexo 4 pode ser representado na forma polar 4∠0°. Ou 4∠360°, ou 4∠720°, ou 4∠1080°... todas essas representações produzem o mesmo resultado se convertidas para a forma cartesiana a+bi. Podemos então dizer que são absolutamente iguais?

Bem, elas parecem iguais, até a hora em que extraímos a raiz quadrada. A raiz de 4∠0° é 2∠0° = +2. Porém a raiz de 4∠360° é 2∠180° = −2. Ora, números que têm raízes quadradas diferentes não podem ser iguais, ainda que sejam equivalentes em muitas outras situações. (*)

Quando falamos do número complexo "4", na verdade estamos falando de uma classe de equivalência; de um conjunto infinito de números na forma 4∠n.360° (com n inteiro). Ao afirmar que a raiz de +4 é "+2 ou −2", o que realmente estamos dizendo é que metade dos elementos do conjunto +4 tem raiz +2, e a outra metade tem raiz −2.

(E sim, a raiz quadrada do número real +4 é tão-somente +2. Quando dizemos que a raiz de +4 é +2 ou −2, como no caso da fórmula de Báscara, estamos admitindo implicitamente que nosso campo de operação é o dos números complexos, não o dos reais. Ademais, o próprio Teorema Fundamental da Álgebra depende dos números complexos para ser válido.)

Finalmente, podemos discutir o que significa "somar". O primeiro axioma de Peano para adição é

a + 0 = a

significando que zero não acrescenta nada, é o elemento neutro da adição. É apenas devido a este axioma que podemos dizer que zero não vale nada. O outro axioma é

a + S(b) = S(a + b)

onde S(x) é a função sucessora, por exemplo S(0)=1. Para mim este é o axioma mais profundo de Peano. É mais fácil enxergar como ele funciona na prática:

2 + 2 = ?
se 2=S(1), então
2 + S(1) = S(2 + 1)
se 1=S(0), então
2 + S(S(0)) = S(2 + S(0))
2 + S(S(0)) = S(S(2 + 0))
usando o axioma do zero,
2 + S(S(0)) = S(S(2))
2 + S(S(0)) = 4

Também podemos provar, unicamente com base nos axiomas, que a soma é associativa e comutativa.

Claro, poderíamos definir a operação binária "soma" de alguma outra forma, que talvez nem seja comutativa. Mas antes, devemos ponderar se a definição de Peano para "soma" tem valor de um ponto de vista teleológico. A teleologia mede o valor da coisa por sua conseqüência e utilidade. "A árvore se conhece pelos frutos" (Lucas 6:44).

Peano é teleologicamente válido, pois reflete o que acontece na realidade material. Se eu tenho um armário vazio (e defino isso como "zero", pois não há estado "mais vazio" que este), coloco 2 latas de comida lá dentro, fecho, abro, coloco outras 3 latas, fecho, abro de novo, vou constatar que há 5 latas dentro do armário. Se repetir a experiência inserindo 3 latas e depois 2, novamente termino com 5 latas, o que mostra que a propriedade comutativa da soma também encontra respaldo no mundo real.

Mesmo que você tente argumentar que o resultado final poderia ser algo diferente de 5, seu estômago sabe muito bem que 2+3 ou 3+2 latas significam 5 refeições, e um armário vazio significa passar fome. (Neste caso, fumar um baseado favorece o pragmatismo e prejudica a tergiversação, devido à larica.)

Uma coisa que não funciona é adicionar um axioma novo e conflitante a Peano, por exemplo prescrever que 2+2=5. Isto permitiria "provar" que S4(0)=S5(0), abrindo a porta para 0=1, x=S(x), e concluiríamos que a função sucessora S(x) é inócua e todos os números são na verdade iguais.

Mas sim, sob um outro conjunto de axiomas, podemos imaginar uma operação binária que se comporte diferente da soma, e que não seja comutativa. Por exemplo, se imaginarmos um triângulo transparente com as pontas numeradas, e os movimentos básicos de girá-lo (r, "rotação") e virar pela ponta de cima (f, "flip"):

Figura 1: Grupo S3 ou D3, formado pelos movimentos de um triângulo

Dá para ver logo que este grupo não é comutativo. Fazer f+r (virar pela ponta, e girar em seguida) dá um resultado diferente de r+f (girar e então virar pela ponta). A bem da verdade, grupos não-comutativos costumam usar a notação de "multiplicação", então seria f.r e r.f. A notação de "soma" é mais usada em grupos comutativos.

Há muitas identidades interessantes que podemos extrair, como por exemplo r2=r-1 (girar duas vezes é o mesmo que girar uma vez ao contrário) e r2f=fr (dois caminhos diferentes para chegar num mesmo triângulo) e por aí vai.

Coincide aqui que podemos reciclar as ações, usando-as para rotular as seis possíveis posições do triângulo (em amarelo). Por exemplo, "r" é a operação de rotação representada pelas setas azuis, mas também é o nome do triângulo que obtemos quando partimos do triângulo original "e" e aplicamos a rotação uma vez. O triângulo "e" faz o papel de elemento neutro nesta aritmética bizarra.

Outra opção seria rotular os triângulos lendo os números no sentido horário, por exemplo a identidade seria (123), a primeira rotação seria (312), etc. Neste caso teríamos uma notação para os estados e outra para as ações (r, f). e a notação total ficaria menos prática, algo como f(r(123))=(321). Em vez de operação binária, seria uma composição de funções, que tem de ser interpretada de dentro para fora.

Apesar de ser uma álgebra diferente da aritmética, ela tem uma ordem, uma estética, além de ser válida do ponto de vista teleológico (triângulos existem no mundo real, e são bem úteis). Para não repetir todo o argumento de novo, no final deste artigo sobre Peano a gente abordou a questão dos grupos — que ao criar um grupo novo, parece que há liberdade infinita, mas basta inserir um ou dois itens, e o grupo rapidamente coagula e ganha forma rígida.

É o mesmo que acontece com os axiomas de Peano, um conjunto aparentemente bobo de regras do qual emerge toda a aritmética dos números inteiros.

Aliás, se considerarmos que dois grupos de mesma forma são "iguais" (isomórficos), as possibilidades de como organizar um grupo são bem limitadas, e são todas conhecidas. Existem diferentes ordens, às vezes chamamos de desordem a ordem que não queremos.

Vamos tentar criar um grupo finito mod 10 em que 2+2=5, mantendo a adição comutativa, o zero como elemento neutro, e 5+5=0 (mod 10), 5 é um elemento de ordem 2 e é o seu próprio inverso. Porém 2+2+2+2=0, e 2 seria um elemento de ordem 4, o que já é sabido que não funciona num grupo — a ordem de um elemento tem de dividir o tamanho do grupo (10). Mas você pode insistir, até aceitar que nunca vai "fechar" este grupo.

Note que em nenhum momento consideramos o quanto vale 2 ou 5; consideramos apenas a sua relação com o tamanho do grupo e com o elemento neutro. Nem tampouco estamos exigindo um significado palpável dessa operação de soma. Mesmo assim já deu bolo.

Já num grupo mod 11, todos os elementos não-neutros têm ordem 11. Aí podemos fazer 2+2=5 porque nem 5 nem 2 têm uma relação próxima com 11 (5x11=2x11=0 mod 11). Porém, se 5+6=0, não podemos mais considerar que 2+2+2=6, do contrário (2+2)+(2+2+2)=0, fazendo de "2" um elemento de ordem 5, que é proibido. O "seis" tem de ser equivalente a nove vezes 2, assim como "cinco" foi definido como duas vezes 2...

Este raciocínio pode ser levado até o final, e o resultado é simplesmente uma versão da aritmética modular com os símbolos embaralhados. Continuará havendo uma relação 1:1 entre os símbolos de um grupo "tradicional" e o nosso grupo "progressista". Em particular, se 2 vale o mesmo nos dois grupos, fatalmente o 5 do grupo "progressista" fará o mesmo papel do 4 do grupo tradicional, o novo-6 funciona igual ao velho-7, e assim por diante. Não se criou algo realmente novo.

Notas

(*) Lembrando que, quando se trata de números reais e complexos, a definição de potência, incluindo raiz quadrada que é a potência 1/2, é baseada no logaritmo natural e na função exponencial:

ab = eb.ln a

Considerando que isto vale inclusive para o expoente 1, podemos dizer que todo número possui uma representação exponencial equivalente. Em particular,

(−2)1 = eln −2

Porém o logaritmo de um número negativo não tem um valor único; é qualquer número na forma

ln x = ln |x| + i(π+2πn)   (n inteiro)

Ou seja, por trás de um singelo número negativo, existe todo um conjunto de números na forma exponencial:

−2 = eln 2 + i(π + 2πn)

Uma vez que podemos expressar números positivos como um produto de dois números negativos, podemos estender esse raciocínio aos números positivos:

+2 = −1.−2 = eln 2 + i(π + π + 2πm + 2πn)
+2 = eln 2 + i(2πn)

lembrando ainda que expressar um número complexo na forma exponencial é o mesmo que expressá-lo na forma polar, o único requisito é que o ângulo na forma exponencial seja expresso em radianos:

n∠θ = eln n + i.θ

Por exemplo,

+1 = 1∠0º = eln 1 + i.0 = e0 + 0 = e0
−1 = 1∠180º = ei.π
i = 1∠90º = ei.π/2
√2+√2i = 2∠45º = eln 2 + i.π/4