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Calculando aquecimento de cabos elétricos

No outro texto sobre cabos elétricos, mencionamos que não existe uma fórmula simples, no estilo Lei de Ohm, para determinar o aquecimento de um cabo em função do tempo e da corrente.

A rigor, não precisamos de uma fórmula; todo eletricista conhece a corrente máxima contínua para cada bitola de cabo, por exemplo 21A para cabo de cobre de 2.5mm2, e temos as tabelas da norma ABNT 5410 para os fatores de correção, sem falar que existem apps que fazem esse tipo de cálculo.

Mas restam algumas perguntas que só uma fórmula responderia. Por exemplo: quanto tempo o cabo leva para atingir a temperatura final ao transmitir corrente X? Por quanto tempo o cabo pode suportar uma corrente Y de sobrecarga sem ultrapassar a temperatura recomendada? E assim por diante. Além do que deduzir tal fórmula é um exercício interessante de matemática e física de ensino médio, com uma pitada de cálculo.

TL;DR

Criamos uma planilha do Google Docs para quem só quer calcular a temperatura final.

Figura 1: Planiha para cálculo do aquecimento de um cabo em função da corrente, aba `Temperatura fio`.

Você deve preencher os itens verdes com as informações da sua instalação, e os itens vermelhos com as informações relativas ao cabo. A corrente limite para uma dada bitola deve ser obtida na norma ABNT. Em geral os itens azuis podem ser deixados como estão, a não ser que você vá empregar cabos XLPE ou EPR que suportam 90 graus em vez de 70.

A planilha retorna a temperatura final do fio (em negrito) e traça um gráfico com a evolução da temperatura conforme os minutos passam. O texto daqui por diante descreve como chegamos a este resultado.

A semente

A norma ABNT diz que um cabo de 2.5mm com isolamento de PVC suporta temperatura contínua de 70C, e corrente contínua de 21A numa temperatura ambiente de 30C. A princípio, isto significa que o cabo atinge 70C com corrente de 21A. O ideal seria testar essa afirmação da norma, mas isso exige equipamentos que pouca gente tem.

Esta é a semente que precisamos. O resto é informação fácil de achar na Wikipedia.

Na verdade, conforme vamos constatar mais tarde do jeito difícil, isto é tudo que precisamos para determinar a temperatura final para qualquer corrente. O acréscimo de temperatura é proporcional ao quadrado da corrente, então a simples fórmula

40 x I x I / (21 x 21)

nos diz quanto esquenta um cabo de 2.5mm. Por exemplo, para uma corrente I=30A,

40 x 30 x 30 / (21 x 21)
81.63

este cabo aquece 81 graus acima da temperatura ambiente, ou seja, 111 graus para um ambiente de 30C. O que ainda falta descobrir, que nos obrigará a encarar cálculo, é o tempo que o cabo leva para atingir essa temperatura.

A resistividade do cobre é 1.77 ohms por km para um cabo de 10mm. Para um cabo de 2.5mm isto se traduz em 7,08 ohms por km ou 0,00708 ohms por metro. Usando a fórmula P=I2R, determinamos que, para uma corrente de 21A, esse cabo dissipa

0,00708 x 21 x 21 = 3.12 W/metro

Pela norma, sob corrente de 21A, a temperatura do cabo estabiliza em 70C para uma temperatura ambiente de 30C. Se a temperatura é constante, isto significa que o cabo está conseguindo rejeitar calor para o ambiente na mesma taxa em que ele está sendo produzido. Podemos então calcular a condutividade térmica do cabo:

3,12 / (70 - 30) = 0,078 W/K por metro

O número acima signfica que, se o cabo estiver 1C acima da temperatura ambiente, ele dissipa 0,078W. Se estiver 2C acima, dissipa 0,156W por metro, e assim por diante.

Poderíamos tentar generalizar essa condutividade para qualquer bitola de cabo, levando em conta a área externa do isolante. Porém, diferentes bitolas usam diferentes espessuras de isolante, então é melhor partir de uma semente nova para cada bitola. Por exemplo, para um cabo de 10mm, adotamos a corrente máxima contínua de 50A e refazemos os cálculos.

Se o isolante de PVC fosse um isolante térmico perfeito, o aquecimento Joule seria adiabático. É aproximadamente o que acontece no caso de curto-circuito, onde o aquecimento é muito rápido. A temperatura subiria em linha reta, mas a que taxa? Para determinar isso, precisamos calcular a capacidade térmica do cobre, que é o produto da massa pelo calor específico:

volume = 2.5 x 1000 = 2500mm3 = 2.5cm2 por metro
massa especifica = 8.93 g/cm2
massa = 2.5 x 8.93 = 22.325 g/metro
calor específico do cobre = 0.385 J/g.K
capacidade térmica = 0.385 x 22.325 = 8.6 J/K por metro

O número 8.6 significa que, para elevar adiabaticamente a temperatura de 1 metro desse cabo em 1 grau, precisamos aplicar 8.6 Joules de energia. Isto não é 100% correto pois estamos ignorando a massa do isolante; mas é perto o suficiente.

Equação diferencial

Como vimos, na corrente máxima de 21A, o cabo esquenta 3,12W por metro. Dividindo pela capacidade térmica de um metro de cabo, temos

q = 3,12 / 8.6 = 0,3627 K/s

ou seja, o aquecimento adiabático é de 0,3627 grau por segundo. Vamos chamar esta constante de "q".

Do lado do resfriamento, temos a condutividade térmica de 0,078 W/K. Também podemos dividir pela capacidade térmica do cabo, obtendo a constante "k":

k = 0,078 / 8.6 = 0.00908 K/s

Este número significa que, se o fio estiver 1C acima da temperatura ambiente, a taxa de resfriamento é de 0,00908 graus por segundo. Se estiver 2C acima, a taxa é o dobro, e assim por diante.

Note que as constantes "q" e "k" são ambas em graus por segundo. Com elas, podemos montar uma equação diferencial conhecida como lei de resfriamento de Newton:

T' = q - (T - T0).k

Esta equação nos diz que a variação da temperatura T' é a constante "q", menos a constante "k" devidamente multiplicada pela diferença entre a temperatura ambiente T0 e a temperatura do fio T.

Ela é uma equação diferencial porque estabelece uma relação entre a temperatura T e sua derivada T'. A solução, se houver, nos dará uma fórmula para T em função do tempo. Por ser uma equação diferencial simples, o método de resolução pode ser encontrado em qualquer material didático sobre cálculo, e o resultado é

T = T0 + q/k + A.exp(-k.t)

onde "t" é o tempo em segundos, exp() é a função exponencial e "A" é uma constante que depende da condição inicial do sistema. Se presumirmos que a temperatura inicial do cabo T(0) é igual à temperatura ambiente T0,

T(0) = T0 + q/k + A.exp(-k.t)
mas t=0 e T(0)=T0, então
T0 = T0 + q/k + A.exp(-k.0)
T0 = T0 + q/k + A
A + q/k = 0
A = -q/k

T = T0 + q/k - q/k.exp(-k.t)
T = T0 + q/k.(1 - exp(-k.t))

Note que o valor de exp(-k.t) tende a zero na medida que o tempo passa e "t" aumenta de valor, então a temperatura de equilíbrio do fio é simplesmente

T = T0 + q/k

lembrando que, dada uma bitola de fio, "k" é constante e "q" é função da corrente. Isto nos diz que o incremento de temperatura provocado por uma certa corrente é sempre o mesmo, independente da temperatura ambiente. No exemplo que temos usado (corrente de 21A, cabo de 2.5mm) o acréscimo é sempre 40C. Se a temperatura ambiente T0 for 15 graus em vez de 30, a temperatura final T será 55 em vez de 70.

Uma forma de resolver a equação diferencial original sem ter de encarar cálculo é simular o que acontece com a temperatura em inúmeros passos discretos pequenos. Partimos de T0, e determinamos T para o instante seguinte adicionando "q" e subtraindo (T-T0).k. Demonstramos esse método na aba "Método numérico" da planilha fornecida lá no início do texto.

Figura 2: Planilha de cálculo do aquecimento do fio, aba `Método numérico`, que determina a evolução da temperatura de forma incremental, sem operações transcendentais.

A precisão do método numérico depende de usarmos um passo pequeno (quanto menor, melhor). Um segundo é bom o suficiente para correntes normais, mas não para correntes de curto-circuito. A coluna "Erro temp" da planilha indica o desvio. Você pode experimentar com diversos valores de passo e corrente, se quiser.

O método numérico parece a forma "burra" de fazer a coisa, mas ele é largamente utilizado em controle linear. Muitas vezes, ele é o único caminho, pois há muitas equações diferenciais por aí que não têm solução analítica.

Por exemplo, se quisermos observar o que acontece com a temperatura do cabo numa situação de corrente intermitente, é fácil achar a resposta via método numérico, enquanto achar uma fórmula fechada exigiria ter um matemático ao alcance do braço.

Bônus: fator de potência e correntes pulsantes

Chuveiros eletrônicos controlam a potência usando um "chopper", que funciona como uma chave que liga e desliga muitas vezes por segundo. Por exemplo, um chuveiro de 36A pode reduzir a potência a 1/3 conduzindo corrente por apenas 1/3 do tempo. O resultado final é equivalente a uma corrente média de 12A, mas a corrente instantânea no cabo será de 36A, ou zero.

Dispositivos eletrônicos em geral, inclusive lâmpadas LED, absorvem energia da rede de forma pulsante devido ao seu funcionamento interno. De forma análoga ao chuveiro, eles apresentam baixo fator de potência (FP). Lâmpadas LED costumam ter FP de apenas 0,5, o que grosso modo significa que a corrente instantânea é o dobro da corrente média.

A pergunta é a seguinte: como dimensionar a bitola do cabo para tais circuitos? Um cabo conduzindo 36A por 1/3 do tempo esquenta mais, menos ou igual a uma corrente constante de 12A?

Infelizmente, o cabo aquece mais. Apesar do fator de potência de uma carga pulsante ser de natureza diferente de uma carga reativa, o impacto é o mesmo: a bitola do fio tem de aumentar para suportar uma corrente que não produz trabalho útil. No caso da carga pulsante, isto acontece porque o aquecimento é proporcional ao quadrado da corrente.

Claro que um chuveiro eletrônico trabalhando a meia potência aquece menos a fiação do que se estivesse a plena potência. Porém, a relação é linear: 1/3 de potência significa 1/3 de aquecimento na fiação. Numa carga linear (como um chuveiro mais antigo, daqueles com chave verão/inverno) a relação é quadrática: 1/3 de potência significa apenas 1/9 de aquecimento no fio.

Fios de 1.5mm, comumente usados em iluminação, suportam 14A em instalações típicas. Porém, se a carga for lâmpadas LED, só podemos contar com 7A líquidos, devido ao fator de potência 0,5. Colocando de outra forma: 1000W de iluminação tem de ser dimensionada como se tivesse 2000W.

Bônus II: prevendo a corrente de qualquer cabo

Lá no começo do texto, afirmamos que os cálculos para cada bitola de cabo devem começar com uma "semente" própria, obtida da norma ABNT. Agora, vamos explorar a possibilidade de encontrar a corrente máxima para qualquer bitola, com base unicamente na corrente de norma para a bitola 2.5mm.

Para fazer isso, retomamos o raciocínio a partir do ponto em que determinamos a condutividade térmica do cabo, por metro linear:

3,12 / (70 - 30) = 0,078 W/K por metro

Mas o correto seria estimar esse valor pela área externa do cabo, pois a transmissão de calor é proporcional à área. Essa área é função da circunferência total do cabo. O diâmetro interno de um cabo de 2.5mm, assumindo que ele seja redondo, é

sqrt(2.5 / 3.14) x 2 = 1.78mm

Assumindo que a espessura do isolante é 0.8mm,

diâmetro total = 0.8 + 1.78 + 0.8 = 3.38mm
circunferência = 3.38 x 3.14 = 10.61mm
Área externa = 10610mm2, ou 0.01061m2, por metro linear

A condutividade térmica por metro quadrado é

3,12 / (70 - 30) / 0.01061 = 7.35 W/K.m2

Agora vamos ver se este número nos permite estimar a corrente máxima de outras bitolas. Vamos testar as bitolas 0.75mm (9A pela norma) e 10mm (50A pela norma).

A área externa de um cabo 0.75mm é

Diâmetro = sqrt(0.75 / 3.14) x 2 = 0.977mm
Diâmetro total = 0.8 + 0.977 + 0.8 = 2.577mm
Circunferência = 2.577 x 3.14 = 8.09mm
Área externa = 8090mm2 ou 0.00809m2

Quando o cobre está a 70 graus, num ambiente de 30 graus, esse cabo dissipa

7.35 W/K.m2 x (70 - 30) x 0.00809 = 2.378W

A resistência desse cabo é

Cabo 10mm = 1.77 ohms/km
Cabo 0.75mm = 1.77 x 10 / 0.75 = 23.6 ohms/km

A corrente correspondente a uma dissipação de 2.378W é

P = I.I.R
2.378 = I x I x 0,0236
I x I = 100,76
I = sqrt(100,76) = 10,03A

Achamos uma corrente de 10A, bastante próxima ao patamar de 9A sugerido pela norma. Vemos que dois fatores concorrem para a baixa capacidade de corrente do cabo 0,75mm: área externa diminuída, e resistência aumentada.

Agora, vamos repetir o raciocínio para o cabo de 10mm:

Diâmetro = sqrt(10 / 3.14) x 2 = 3.569mm
Diâmetro total = 0.8 + 3.569 + 0.8 = 5.169mm
(na verdade é maior pois cabos dessa bitola têm isolante mais grosso)
Circunferência = 5.169 x 3.14 = 16.23mm
Área externa = 16230mm2 ou 0.01623m2
7.35 W/K.m2 x (70 - 30) x 0.01623 = 4.77W

Cabo 10mm = 1.77 ohms/km

P = I.I.R
4.77 = I x I x 0,00177
I x I = 2694,91
I = sqrt(2694,91) = 51,9A

Novamente, o cálculo baseado em dissipação por área chegou a um valor (51,9A) bem próximo ao patamar sugerido pela norma (50A). Sabemos que o cálculo está errado pois um condutor de 10mm possui isolante mais espesso que 0,8mm, e mesmo assim o desvio foi pequeno.

Os desvios foram para cima em ambas as extrapolações. Isto sugere que o patamar de 21A para 2.5mm que usamos como semente, é levemente otimista. Se adotássemos 20A para 2.5mm, as extrapolações resultariam em 9.5A e 49.2A, muito mais próximas dos valores da norma.

Provavelmente as tabelas da norma não foram 100% geradas com base em experimentos; uma parte dos números é produzida por cálculos, e a proximidade dos valores obtidos sugere que o raciocínio desenvolvido por eles é parecido com o nosso.